Se após o VII Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (FICA), realizado na cidade histórica de Goiás entre os dias 31 de maio e 5 de junho, os crimes e as práticas agressivas contra o meio ambiente não sofrerem uma redução significativa, o evento ao menos serviu para criar uma dezena de novos vegetarianos.
A responsabilidade será sobretudo do filme A carne é fraca, de Denise Gonçalves. O média-metragem, com 52 minutos de duração, não recebeu nenhum prêmio, mas atraiu a atenção e chocou o público ao mostrar como, apesar das sofisticadas técnicas para abate nos frigoríficos-modelo, que prometem morte com o mínimo de dor, os animais ainda são vítimas de muitas crueldades.
O jornalista Washington Novaes, que gravou um depoimento para o documentário sobre os impactos ambientais do consumo de carne no mundo, depois de ver imagens, no ano passado, deixou de comer carne por seis meses. Logo após a exibição do vídeo, não eram poucos os que, na saída do Cine Teatro São Joaquim, lotado durante a sessão, prometiam se tornar vegetarianos. “Hoje tomei a decisão de não comer mais carne. Eu até já preparei as carnes para churrasco, mas vinha pensando em parar havia muito tempo. Agora estou convencido”, observou o engenheiro Marcos Ferreira.
A carne é fraca foi produzido pelo Instituto Nina Rosa, uma ong que incentiva a proteção aos animais e o vegetarianismo. A própria Nina Rosa Jacob, que preside o Instituto e aparece várias vezes ao longo do documentário, expõe os objetivos da produção: “Muitas pessoas contribuem com a indústria da crueldade, que implica em danos sérios à saúde humana e ao meio ambiente, sem ter conhecimento disso. Nossa intenção é informar para que o cidadão possa fazer escolhas conscientes”.
O vídeo, feito em quatro idiomas – português, francês, inglês e espanhol – para ser distribuído a 400 organizações em todo o mundo, é para estômagos fortes. Mostra imagens cruéis como o manejo violento dos frangos nas granjas, onde funcionários separam com brutalidade os pintinhos que apresentam alguma má-formação daqueles que servirão para consumo, descartando-os de imediato para que sejam triturados e transformados em ração. Nessas mesmas granjas, todas as aves têm os bicos cortados para se evitar a prática do canibalismo, que se torna comum nos espaços exíguos em que ficam confinadas. O vídeo também consegue chocar o público quando apresenta os métodos utilizados para a produção do “baby beef”. Bezerros recém-nascidos são acorrentados para que não se movam e não desenvolvam músculos, e produzam assim uma carne bastante macia.
Além da crueldade, são apresentados todos os impactos ambientais imagináveis associados à pecuária. Eles vão do grande consumo de água à devastação de florestas para a formação de pastagens e até a emissão de gás metano pelos bois, que contribui muito para o efeito estufa. Segundo Washington Novaes, a produção mundial de carnes praticamente dobrou em menos de dez anos.
Talvez a produção tenha perdido pontos com os jurados por seu caráter panfletário. “Em alguns momentos, o vídeo é meio piegas e procura impor que você deve ser vegetariano”, comentou Luiz Gravatá, crítico do jornal O Globo presente ao Festival.
O documentário não foi, no entanto, o único filme do Festival a promover reflexões sobre o consumo de carne. Boi, um curta-metragem de Edu Felistoque e Nereu Cordeiro, conta, de forma poética, como o boi, depois de anos servindo ao homem no trabalho, puxando arado, no carro de boi e até mesmo como animal de estimação, acaba sendo abatido numa feira ou num açougue quando começa o período de seca. “Mesmo depois de sua morte, o boi continua servindo ao homem como alimento do imaginário, na forma do boi-bumbá, do boi-mamão”, observa Felistoque.
Ainda mais poético é Aboio, que recebeu menção honrosa do júri por sua “experimentação estilística com referências ao cinema novo, a Glauber Rocha, a Nelson Pereira dos Santos e à literatura de Guimarães Rosa”. O longa mostra a comunicação peculiar dos vaqueiros do sertão de Minas, Bahia e Pernambuco por meio do aboio, uma melodia entoada para conduzir o gado até as pastagens, e que está desaparecendo com a modernização das técnicas de criação de gado.
Embora não aborde diretamente o tema do consumo da carne ou do abate dos animais, a presença do filme no Festival provocou a nostalgia de um tempo em que o vaqueiro sabia o nome de cada bezerro, cada vaca. Contrastou assim com as práticas cruéis mostradas em A carne é fraca. “Há coisas que a gente não vai ver nunca mais, mas tem sempre o direito de lembrar”, diz um dos vaqueiros em Aboio, referindo-se a uma época em que se conduziam grandes rebanhos pelo sertão. Cenas bonitas, auxiliadas por uma fotografia caprichada, que quase nos levam a acreditar que as práticas da pecuária extensiva são mais recomendáveis do que a crueldade do confinamento. Assunto delicado. Criar o bicho solto pode render boi feliz e carne macia, mas quem abre o espaço necessário são florestas que vão ao chão.
E se você acha que o meio ambiente não tem muito a ver com boi-bumbá ou com a vida dos tocadores de gado, pode se preparar para as próximas edições do FICA. Segundo o presidente do júri deste ano, o jornalista André Trigueiro, há uma tendência de tornar o Festival cada vez menos ambiental, abrindo espaço para temas sociais e culturais. O que ele lamenta, uma vez que este é o único festival do gênero no país e um dos poucos no mundo.
Em tempo: o grande vencedor do Festival deste ano é foi o filme Morte lenta, da francesa Sylvie Deleule, sobre os males à saúde causados pelo amianto. Certamente um grave problema ambiental, mas com muito mais ênfase nos aspectos social e trabalhista.
* Cássia Fernandes é jornalista e romancista. Assina uma coluna no jornal O Popular, de Goiânia.
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