Ernesto Galiotto já havia sido personagem de uma matéria de O Eco. Ele foi um importante informante sobre a extração criminosa de areia e os desmatamentos em áreas de preservação ambiental da região dos lagos, no litoral do estado do Rio. Sem querer – ou querendo – o ambientalista deixou a imagem de um ativista de primeira linha. Morador da cidade de Cabo Frio desde 1971, foi responsável por diversas denúncias que resultaram no fechamento de 23 mineradoras e, por conta de sua insistência, conseguiu impedir uma série de outros crimes ambientais. Não tardou para que ele sozinho se tornasse motivo desta reportagem.
Foi graças a um convite enviado à nossa redação que pude estabelecer contato com Galiotto. A proposta não poderia ser mais tentadora: sobrevoar Cabo Frio a bordo de um monomotor recém-comprado pelo ambientalista e apelidado de “O Asa Ambiental”, que será usado para fazer vôos de fiscalização em Cabo Frio e Búzios. “Sobrevoarei a região de 15 em 15 dias registrando, através de fotos e filmagens, tudo aquilo que me parecer errado”. A idéia é tentar identificar as irregularidades e, uma vez confirmadas, abrir inquéritos no Ministério Público. A região de Angra dos Reis, no sul do estado, será monitorada a cada dois meses.
A apresentação do “Asa Ambiental” aos jornalistas e amigos incluía um café da manhã no Aeroporto de Cabo Frio, seguido de uma demonstração de vôo e, é claro, um sobrevôo para os privilegiados. Galiotto chegou carregado de flores no carro. “Vamos jogar pétalas do alto sobre o Forte de São Matheus”. Animado com a inauguração de seu “mico-leão” – como também é chamado o monomotor, que possui a figura do animal estampada – Galiotto era só sorrisos.
Momentos antes do vôo, o ambientalista conversava com engenheiros, diretores de ONGs e profissionais de imprensa sobre a atuação do poder público nos municípios e sobre os problemas ambientais da região, como a expansão imobiliária desordenada, desmatamentos e invasão das praias por quiosques ilegais. Parece ser mesmo “terra de ninguém”, como diz o jornalista Elizio Figueiredo, dono de uma revista quinzenal em Búzios. “Sofri um atentado de morte em Búzios. É perigoso fazer jornalismo ambiental por aqui”, completa.
O dia claro e sem ventos ajudou o passeio a ser mais bonito e calmo, já que o ultraleve tem tendência a balançar em dias ventosos. O visual de Cabo Frio é composto por inúmeras salinas desativadas, que formam lagos de água da chuva. As águas transparentes da Praia do Forte, principal da região, onde se localiza o Forte de São Matheus, revelam o porquê de seu sucesso junto aos turistas. Para quem não conhecia o local, as imagens de cima são deslumbrantes. No entanto, para o olhar de Galiotto, o vôo baixo do ultraleve é capaz de revelar uma série de desmandos ambientais: construções irregulares, assoreamentos, invasões, desmatamentos, emissões de esgoto em rios e lagoas. Ao longo do tempo, ele criou um acervo com mais de 46 mil fotografias de agressões à natureza.
Gaúcho de origem e de coração, torcedor e cônsul do Grêmio, Galiotto preserva o simpático sotaque de sua terra e a alegria tão peculiar de seus conterrâneos. “Sou um Papai Noel fora de época”, brinca ele, fazendo referência à sua barba semi-branca. “Porém, sei ser bravo quando é preciso; sou um grosso necessário”. Os amigos confirmam seu bom humor: Não existe evento promovido por Galiotto que não acabe em um churrasco animado. De fato, minha visita a Cabo Frio terminou na área de lazer da família Galiotto com direito a campo de futebol, sauna e, é claro, churrasqueira servindo o legítimo corte gaúcho. Este é o espírito do nosso “bom velhinho” ambientalista.
A alegria de Galiotto pode até não ter relação com sua origem sulista, mas esta é responsável, sim, por seu amor à natureza. Criado na roça, na pequena Flores da Cunha (RS), cercado de lebres, tatus e tantos outros bichos, Ernesto sempre esteve ligado aos animais e ao meio ambiente. “Não agüentava ver meu pai matar um porco. Tinha que sair de perto!”. Foi parar em Cabo Frio por causa da bronquite grave de um filho que, por orientação médica, precisava ser curada em um ambiente como o do balneário fluminense. Ele lembra, emocionado, de quando pisou pela primeira vez na cidade: 5 de junho, dia do Meio Ambiente. A coincidência tem cheiro de destino traçado, pois o filho de Galiotto se curou e a família nunca mais quis deixar Cabo Frio.
O gaúcho é um ambientalista no estilo “justiceiro” e, como todo bom herói, trabalha sozinho. “As ONGs hoje estão saturadas, é impossível reunir várias pessoas sem que haja interesses políticos por trás. Por isso, prefiro estar só”, justifica. Não lhe faltaram, no entanto, aliados à causa. Ele destaca a atuação do promotor Luciano Mattos, atual Coordenador do Ministério Público na área ambiental. “Ele acatava minhas denúncias e eu sempre soube que juntos poderíamos fechar os areais ilegais por um simples motivo: nós não seríamos corrompidos”. As lutas judiciais já somam dez anos e 30 denúncias no Ministério Público, envolvendo desmatamentos na região do rio São João, invasões, pedreiras e obras irregulares.
As denúncias chegam ao órgão registradas, comprovadas e datadas. Tanto cuidado e empenho dão resultado: nenhuma até hoje foi arquivada. “Antes, ninguém fazia nada contra a derrubada da Mata Atlântica. Licenças fajutas eram renovadas como se fossem Estudos de Impacto Ambiental. A Feema (Fundação Estadual de Engenharia e Meio Ambiente) assinava, o município assinava e eles detonavam”, conta Galiotto.
“Entre 1997 e 1999 tive amigos que se afastaram de mim, com medo de se envolverem. Naquela época corria risco de morrer, mas eu só tinha uma coisa na cabeça: preciso fechar os areais, nem que isto custe minha vida”, revela Galiotto. Ele diz que, no entanto, nunca tomou grandes atitudes sozinho. “Minhas operações foram sempre junto à Polícia Federal, à Marinha e ao Ministério Público, que é o órgão que funciona”.
Conhecido dos advogados e promotores, Galiotto é também figura notória entre a população de baixa renda de Cabo Frio. “O povo se habitua com quem age, e é a você que eles vão recorrer quando alguém tem uma denúncia”, afirma. “Já recebi ligação às 5 horas da manhã e às 6 já estava tirando a foice da mão do cara que destruía um manguezal”.
Casos insólitos, nessas mais de três décadas, não lhe faltaram. “Através de uma denúncia, fui atrás de uma obra que ligaria um esgoto a uma área fluvial. Cheguei lá dizendo que a obra estava moralmente embargada. Depois pedi ao operário que chegasse pro lado para eu poder fotografar”. Certa vez, convocou uma reunião com os areeiros em seu escritório, onde conversaram por duas horas. Deixou claro que não seria corrompido e que a luta deveria ser travada na justiça. “Disse para eles que, se ganhassem, a natureza pagaria caro, mas eu nada mais teria a argumentar. Porém, se eles perdessem e a natureza ganhasse, não poderiam tentar nada contra mim, nem contra minha família”. A reunião gerou o descontentamento dos areeiros, que tentaram desmoralizá-lo comprando veículos de imprensa que pudessem atrapalhar o ambientalista. Mas Galiotto tinha um espião infiltrado, que trabalhava como mecânico para eles e, ao saber do plano, resolveu agir à altura, ou melhor, nas alturas. Alugou um monomotor, carregou-o com seis jacas e sobrevoou a região de Tamoios, em Cabo Frio, onde a extração de areia pela mineradora havia formado buracos que, com a chuva, transformaram-se em verdadeiras lagoas. Ao avistar os primeiros trabalhadores da mineradora, atirou as frutas do avião, para total espanto do piloto. “Surtiu efeito, eles passaram a me respeitar, viram que eu era um cara inteligente, uma espécie de Charles Bronson brasileiro”, diverte-se o ambientalista.
Hoje já existe um cinturão verde em Tamoios e as lagoas viraram uma espécie de mini-Pantanal. “Tem até um jacaré que vive por lá, o que realmente é um mistério, pois não sabemos de onde ele veio”. Outro grande orgulho do ambientalista foi a criação da Área de Preservação Ambiental (APA) do Pau Brasil, nos municípios de Búzios e Cabo Frio e da Bacia do Rio São João/Mico-Leão-Dourado. “A APA do Pau Brasil começou graças a um ensaio fotográfico meu”, conta, satisfeito. Ele ressalta que novas APAs devem ser criadas com urgência: “Existem cinco ou seis morros na região que precisam ser transformados em áreas de preservação”.
.Em 1999, Galiotto inaugurou em Cabo Frio um centro de educação ambiental que já recebeu a visita de mais de 12 mil estudantes. “Quis fazer uma surpresa a Érico Veríssimo, conterrâneo e amigo”, conta, “por isso coloquei o nome dele no Espaço Cultural”. A homenagem foi mais do que merecida. Afinal, a primeira transmissão de rádio que escutou, ainda criança, foi na Rádio Farroupilha de Porto Alegre, comandada por Veríssimo, que falava, justamente, de meio ambiente.
Essa lógica de conhecer e comunicar inspirou o ambientalista a criar uma homepage e a assinar semanalmente uma coluna em um jornal de Cabo Frio. Além disso, faz questão de falar pessoalmente às crianças e, desde 1995, organiza “excursões” para que elas vejam máquinas derrubando árvores e extraindo areia. Muitas delas estão hoje graduadas e possuem uma mentalidade voltada para a preservação do meio ambiente. “Ensinar o que acontece de ruim é importante, mas não se pode esquecer de trazer à tona as coisas boas também”, diz. É exatamente nessa linha que pretende lançar seu primeiro livro. Ele ainda não está pronto, mas já tem título: “A natureza intacta e agredida”. A publicação deve reunir entre 600 e 800 fotos, todas tiradas nas regiões de Cabo Frio e Búzios, onde Galiotto denuncia flagrantes de desmandos ambientais, mas também revela bonitas imagens da natureza ainda conservada.
Minha ida a Cabo Frio valeu muito a pena, com direito a voltar para o Rio de Janeiro a bordo do simpático monomotor. Pude testemunhar a alegria e o entusiasmo de um ambientalista com a cara e a coragem de lutar por sua região. “Precisamos de mais gente como ele”, afirma Adair Carvalho, amiga e ex-administradora do Centro Cultural de Galiotto.
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