A bióloga Jaqueline Maria Goerck é um gênero raro de mulher: tem muita coisa voando na cabeça, mas age sempre com os pés no chão. Ela pertence a uma espécie disciplinada à germânica, de fala suave e firme – mistura capaz de afundar o Titanic se raspasse nele. Sua plumagem é fácil de catalogar: magra, alta, loira, olhos entre azuis e esverdeados. No ninho, ela tem duas belas bebês gêmeas, Stephanie e Sofia, nomes não-científicos para “vitoriosa” e “sábia”.
Dona Jaqueline é a representante no Brasil da ong internacional defensora de pássaros Bird Life. Para quem é do ramo, uma boa comparação é dizer que ela está para eles assim como o Núncio Apostólico para os fiéis cristãos. Se existisse um Reino das Aves, ela seria sua embaixadora no Brasil.
A Bird Life é uma das mais antigas e respeitadas ongs do mundo. Foi criada em 1922, na Inglaterra, onde ainda hoje está a sua sede. Nasceu quando alguns ornitólogos se indignaram com as madames da sociedade londrina que sacrificavam beija-flores para adornar com as penas seus chapéus. Da indignação eles passaram à ação.
A ong expandiu-se para mais de 100 países e 2,5 milhões de associados, gente que urra de solidariedade por uma pena arrancada e abre sua carteira em doações generosas ao Terceiro Mundo. Ela edita o livro vermelho das espécies ameaçadas de extinção, reconhecido como referência por todos os ornitólogos do planeta.
Jaqueline abriu os trabalhos da seção brasileira da Bird Life em 1999. Para enquadrar-se às leis do país, aqui a ong foi batizada Save Brasil (Sociedade para a Conservação das Aves do Brasil). Jaqueline conta que a Bird tinha dinheiro para investir aqui, mas não queria ser só mais uma ong conservacionista. A prioridade era atuar em áreas onde existiam espécies ameaçadas, que não estavam protegidas e onde não havia ninguém trabalhando.
O “Programa Brasil” da ong começou com um orçamento de 100 mil dólares anuais, dinheiro arrecadado por doações no exterior. No segundo ano pulou para 400 mil e de lá para cá só fez crescer. Para financiar seus projetos de 2005, a Save Brasil recebeu 1,5 milhão de euros da Comunidade Européia, quase 5 milhões de reais. A entrada da Bird no país foi pelos projetos em Murici, Alagoas, e na Serra das Lontras, Bahia – duas áreas que atendiam aos critérios de ameaça/desproteção/ninguém atuando.
Nas Alagoas, quatro espécies de pássaros estavam criticamente ameaçadas. A Bird Life agiu rápido, botou dinheiro e bateu o bumbo, em parceria com a Sociedade Nordestina de Ecologia até o governo FHC criar, em 2001, a Estação Ecológica de Murici – que abriga hoje as ameaçadas espécies Philydor novaesi (foto acima), Myrmotherila anowi, Terenura sickei e Phyllocartas ceciliae (foto).
Trabalho feito, políticos orgulhosos e ecologistas satisfeitos? Neca. A Estação nunca saiu do papel. “É uma das decepções dos ambientalistas com o governo Lula”, reclama Jaqueline. “Ele não está conseguindo fazer nada”. Ela diz que “parece que o governo tem vontade, mas a máquina não funciona”. Queixa-se de que “não há memória institucional, a gente trata de um assunto com um presidente do Ibama, ele sai, entra outro, apaga tudo e recomeçamos do zero”.
No caso de Serra das Lontras, a Save Brasil antecipou-se aos burocratas e comprou ela mesma uma área de 500 hectares. Note-se que foi a Save Brasil, entidade regularmente registrada no território nacional, porque a Bird, por ser estrangeira, não poderia ter terras. O que faz a Save: em seu pedaço está financiando projetos de cultivo de cacau e alternativas de trabalho para mulheres. Os críticos de ongs podem dizer que Jaqueline virou latifundiária – mas diversas ongs da região são parceiras e sabem que a Save não leva nada, só bota dinheiro no projeto.
Jaqueline gosta de definir sua função como “facilitadora”. É ela que identifica os projetos de ongs pobres e assina os cheques para dar-lhes vida: o dinheiro da Bird está hoje sendo aplicado do Ceará ao Rio Grande do Sul. Em Araripe (CE), na Restinga de Massambaba (RJ), nas serras capixabas, em Guaratuba (PR), nos Campos Sulinos – tudo a fundo perdido. Em regiões de pressão mais crítica sobre a floresta, adotam a solução de comprar terras. Burocrática ao extremo kafkiano, mas eficaz. Foi o caso da Serra do Urubu, em Pernambuco (foto).
De onde vem a vocação para “facilitadora”? A menina Jaqueline nasceu em Itapiranga, Santa Catarina. Cresceu no bairro do Butantã, em São Paulo. Formou-se bióloga pela USP em 1989. Não era lá uma grande fã de passarinhos. “Eu gostava imensamente da natureza, do verde, de tudo nela”, diz, sem revelar nenhuma emoção.
Foi na USP que ela fez seu primeiro contato com as aves e decidiu se especializar nelas: “Os pássaros servem como um termômetro da floresta. Uma espécie fica ameaçada quando a floresta está ameaçada”, ensina.
Aos poucos Jaqueline foi pegando gosto pelos bichos. Acabou fazendo doutorado em ornitologia numa universidade americana, com muita pesquisa e muito trabalho de campo entre bambambans. Lá, conheceu, apaixonou-se e noivou com o renomado ornitólogo americano Ted Parker, autor de trabalhos clássicos no ramo.
Em 1993, um grave acidente mudaria sua vida para sempre. Foi nos céus, sobre as florestas que tanto amava, que Jaqueline viveu sua tragédia. Ela, Ted e mais quatro colegas voavam sobre os Andes, num trabalho de pesquisa, quando o avião bateu numa montanha, em Cerro Blanco, no Equador. O noivo e três amigos morreram na hora. “Foi ao entardecer”, lembra, com os olhos marejados. Só ela e uma colega equatoriana conseguiram sair do avião espatifado. Jaqueline arrastou-se para fora, apesar de uma dolorosa fratura na coluna. Nem a dor a impediu de perceber, no silêncio que deve ter sido terrível, “o canto muito lindo de um tipo de sabiá dos Andes”.
Sabe-se lá como ela encontrou forças para descer a montanha pela mata até encontrar camponeses, 24 horas depois. Desde então ela renunciou ao glamour das roupas sujas no trabalho de campo, ao cheiro do mato, à natureza. Foram anos de fisioterapia, mais alguns de estudos – até que ela decidiu deixar a América.
Quando voltou ao Brasil, em 1999, Jaqueline Goerck já era um nome sólido entre os conservacionistas internacionais – confiável para organizar em torno de si as ongs brasileiras a serem adotadas como parceiras, com o dinheiro dos doadores do Primeiro Mundo. Ela dirige a Save Brasil de um pequeno, charmoso e quase monástico escritório numa vila de Pinheiros, Sampa. O lugar é de tijolinho aparente, tem três árvores no pátio e uma calma tensa, de quem está cercado pela cidade vibrante. Nenhum pássaro, exceto por quadros nas paredes e, na caixa de correio, uma pomba preta de metal.
A asa direita de Jaqueline é o biólogo paulista Pedro Develey (foto). Doutor em Ecologia pela USP, 36 anos, ele entrou na Bird Life/Save Brasil no ano passado, depois de quase seis anos de espera – os dois fizeram planos de trabalhar juntos em conservação quando a ong ainda não atuava no Brasil. Pedro é especialista em aves, com ênfase naquelas da Mata Atlântica. Formado em 1993, trabalhou em projetos na Amazônia, Cerrado e Pantanal. Escreveu um livro, o Guia das Aves da Grande São Paulo.
Os dois se conheceram em 1990. Jaqueline já formada, ele estudante. Tomaram um café na lanchonete da Biologia da USP e falaram sobre o tema comum: “Descobrimos que tínhamos as mesmas idéias e ideais”, lembra Pedro. Hoje ele faz parte da pequena equipe da pequena sede de Pinheiros, com o grande desafio: atuar na conservação do país que tem o maior número de espécies de aves ameaçadas: 117.
Eles trabalham com metodologia importada: priorizam as “IBAs”, sigla em inglês para “Important Bird Area”. Identificaram no país 162 delas onde os bichos correm riscos, em 15 estados. E não param de aparecer novas demandas. Como ocorreu, por exemplo, semanas atrás, quando um ornitólogo de Minas Gerais ligou. Ele tinha identificado o Merulaxis stresemanni, um passarinho que não se via há muito tempo, cujo nome popular é “entufado-baiano”. A boa surpresa da redescoberta veio acompanhada da notícia sobre o risco que o passarinho corria por causa de um desmatamento na serra Balbina Bandeira, no Vale do Jequitinhonha.
Pedro e equipe reagiram rapidamente: “Comunicamos ao Ibama da importância da mata para aquela espécie, porque ao que se sabia ela só existia em Ilhéus, na Bahia. As autoridades responderam multando o dono e interditando o desmatamento”. Problema resolvido? “Não, porque nós (ambientalistas e ongueiros) não temos poder de polícia. Os fiscais vão lá, mas depois que eles saem tudo volta a ser como era antes”, diz Pedro. Fato: o ornitólogo mineiro voltou a ligar, dizendo que o desmate continuava depois da passagem do Ibama.
A luta continua: “Estamos estudando uma fórmula de poder participar da fiscalização, ou de melhorar as coisas. A gente não pode doar uma motocicleta para um fiscal do Ibama, por exemplo, porque na burocracia não funciona assim”.
O que eles podem fazer? “O ideal, dentro das IBAs em que trabalhamos, é ter projetos de conservação sustentáveis e que envolvam as populações locais. A consciência e a luta delas vão fazer as coisas melhorarem”, espera Pedro.
Para Jaqueline, pessoalmente, as coisas melhoraram com a volta ao Brasil. Ao montar a primeira sede da versão brasileira da Bird Life, nos fundos da casa da mãe, em Alphaville, ela reencontrou o primeiro namorado, um engenheiro paulistano. É ele o pai das gêmeas, seu marido. “Estávamos predestinados”, diz ela com um leve sorriso, filhotes no colo, curtindo os últimos dias da licença-maternidade antes de voltar à ativa, adotando passarinhos por aí.
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O que devo fazer .996159350 34671367
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