Reportagens

Estado de sítio

Áreas de madeira certificada, exemplo de conservação e adesão às leis na Amazônia, estão sob pressão de invasores. Os suspeitos são os madeireiros clandestinos.

Manoel Francisco Brito ·
1 de julho de 2005 · 19 anos atrás

As madeireiras certificadas, principais baluartes da legalidade na indústria de madeira do Pará, estão sitiadas. Duas, a Cikel e a Orsa, tiveram áreas onde realizam a extração de madeira sob regime de manejo invadidas. Outras três – Juruá, Precious Woods e IBL – estão sob a ameaça de sofrerem invasões. A invasão nas terras da Orsa, 445 mil hectares certificados que pertenceram ao antigo Projeto Jari, está acontecendo no “pingadinho” desde o ano passado, tão logo a empresa terminou sua obras de infra-estrutura, como estradas, necessárias à exploração da madeira no local.

Até agora, aconteceram dezenas delas. Foram 40 em 2004 e 47 este ano. A Orsa conseguiu barrar outras 50 tentativas de invasão. “Os invasores vem em grupos pequenos, instalam algumas casinhas para dar uma cara de posse à ocupação e começam a explorar a área”, conta Roberto Waack, diretor da empresa, que tem no ramo de papel e celulose o seu principal gerador de caixa (foto acima). Em meados de junho, entretanto, os invasores deram sinal claro que iriam recrudescer suas ações, concentrando cerca de mil pessoas nos limites da área e fazendo ameaças à Orsa. Mas a invasão maior não aconteceu.

Onde ela ocorreu foi na fazenda Martins, em Portel, no Pará, área de 164 mil hectares, considerada uma jóia da conservação ambiental e onde o manejo da extração de madeira estava a cargo da Cikel. A entrada à força na Martins aconteceu no dia 18 de junho. “Eram 300 pessoas, nenhuma mulher ou criança entre eles”, conta Leonardo Sobral, diretor da Cikel. “Já são 900”, informava na sexta-feira, dia 1º de julho, Adriana Nozela, diretora da Martins. Como anda ocorrendo na área da Orsa, a invasão na fazenda foi precedida de pequenas invasões, ocorridas desde janeiro, nos seus limites. Sobral e Nozela não sabem exatamente dizer quem são os invasores. A presença maciça de homens indica que eles não tem nada a ver com os movimentos sociais.

Suas lideranças são indício de que eles tem conexão com os madeireiros ilegais da região. “Há entre eles um senhor, Eliezer, que fez da invasão de áreas públicas para extração de madeira um modo de vida”, diz Nozela. “Não há ligação deles com os movimentos sociais”, afirma Sobral. “O governo não identificou bandeiras entre esses invasores de áreas certificadas”, afirma Tasso Azevedo, diretor de Florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Na Orsa, Waack também não tem a menor dúvida de que as invasões são insufladas por gente que quer grilar as terras e tirar a madeira da área.

Até agora, tudo que as madeireiras certificadas puderam fazer foi entrar na justiça para distribuir notificações e conseguir decisões de reintegração de posse. Têm tido sucesso. O problema é implementá-las. “Nós não trabalhamos com pistoleiros”, diz Tim van Eldik, holandês, diretor da Ecoflorestal, empresa que presta serviços de manejo certificado à madeireiras e que nesse momento trabalha numa área da Precious Woods, também localizada em Tucuruí, próximo a área invadida operada pela Cikel. Eldik conta que seu terreno está sob ameaça direta desde a última semana de junho, quando homens começaram a se concentrar nos seus limites.

A direção das madeireiras certificadas e dos donos das áreas invadidas ou sob ameaça de invasão, de posse de decisões judiciais, têm recorrido aos governos estadual e federal para não apenas implementá-las, mas para exigir maior controle afim de evitar futuras invasões. A diretoria da Cikel, na segunda-feira 27 de junho, esteve com o secretário de segurança do Pará para pedir que ele usasse logo a polícia para excutar a decisão da Justiça sobre a reintegração de posse. Ouviram que isso só seria possível daqui a 60 dias, pois a tropa especializada nesse tipo de ação está em operação em Marabá, no sul do estado. “Em 60 dias, a área vai estar completamente degradada e a invasão será irreversível”, diz Sobral.

Waack, da Orsa, teve experiência semelhante, só que em Brasília, na sede do Ibama, onde se reuniu com seu presidente, Marcus Barros, e representantes da procuradoria do órgão. Foi lá pedir apoio contra as invasões e ver se Barros se apiedava de sua situação e poderia ajudá-lo a obter o seu Plano Operativo Anual (POA) para a área do Jari – documento que serve para autorizar a execução de planos de manejo ou conservação anualmente. Waack aguarda uma resposta ao seu do Ibama no Pará desde o começo do ano. Sabe que tem tudo para não obtê-lo. Uma das demandas do órgão foi uma carta da Funai dizendo que não ha índios na área que está sendo explorada. “Eles conhecem muito bem o terreno”, diz Waack, que supeita que o pedido foi feito para dar ao órgão boa desculpa para sentar em cima de seu POA. A útlima declaração que ele pediu à Funai foi enviada ao órgãoo em 1992. Até agora não obteve resposta.

Waack saiu de sua reunião no Ibama frustrado. Barros não deu uma palavra durante a conversa. E de um procurador do Ibama, ouviu que ele é contra qualquer propriedade com mais de 3 mil hectares. Sobre seu POA e sobre ajuda contra os invasores, nem um pio. “A gente nota que o Ibama está parado”, diz Nozela, da Martins, que cansou-se de ir buscar ajuda junto ao órgão. Waack fez 43 denúncias sobre desmatamentos ou queimadas ilegais em áreas invadidas. Nada aconteceu. Se a questão fosse apenas a inércia governamental, até que não seria mal. Mas há indícios de que funcionários do governo, federal e estadual, no Pará, estão dando ou um discreto apoio ou uma força mesmo aos invasores. Onde houve invasão, funcionários do Instituto de Terras do Pará aparecem dizendo que eles estão em terra pública e que há chances de ganharem a posse.

Em agosto do ano passado, uma área de madeira certificada operada pela Lisboa, também no Pará, foi invadida. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) foi acionado e descobriu que o suporte jurídico para a ação vinha da representante do Incra no local. “Ela dizia aos invasores que dava para legalizar, que a terra era devoluta, que era só ocupar”, conta Tasso Azevedo, diretor de Florestas do MMA. Para resolver o problema, apelou-se ao Incra de Brasília. Na invasão na área da Martins, operada pela Cikel, o relatório feito pela PM paraense diz que os invasores mencionavam a toda a hora o nome de Soraya, chefe do escritório do Incra em Tucuruí, como a pessoa que lhes deu a certeza de que eles podiam entrar no terreno. A moça, que já foi vista várias vezes entre os invasores, disse a eles que as terras da Martins eram devolutas. Trata-se de grossa cascata. A Martins tem uma das poucas áreas no Pará com estrutura fundiária absolutamente regular.

Eldik, da Ecoflorestal, diz que não encontrou indícios de presença de gente de governo entre os invasores que estão às portas da área que ele maneja para a Precious Woods. “Mas que o fato de todas as certicadas no Pará estarem cercadas e sob ameaça me deixa desconfiado, ah isso deixa”, diz. Até o primeiro fim de semana de julho, a Ecoflorestal tinha conseguido manter a integridade de seu terreno. Seus potenciais invasores andam tentando arrancar dinheiro da empresa, uma espécie de resgate para não manter sua terra como refém. Dizem que precisam dele para deslocar o pessoal para outro lugar e alimentá-los. Eldik não tem dado papo. “Não sei fazer negócio desse jeito”, diz. A presenca de gente ligada ao governo açodando os invasores e a ausência de mulheres e criancas faz todo mundo desconfiar que quem está por trás delas é a tradicional indústria paraense de grilagem de terras e corte ilegal de madeiras. Os invasores foram apelidados de MST, o movimento dos sem tora. Sua entrada na área das certificadas já está causando graves prejuízos. Na Fazenda Martins, a invasão ameaça 400 empregos formais na Operação da Cikel. Nas terras da Orsa, onde a empresa investiu 4 milhões de dólares para criar uma estrutura de exploração da amdeira ecologicamente correta, 500 funcionários foram forçados a cruzar os braços.

“Para o madeireiro convencional”, explica Eldik, “a área explorada em regime de certificação é altamente atrativa”. Ela tem toda uma infra-estrutura construída – como estradas de baixo impacto, por exemplo – e como a madeira é retirada do local seletivamente, ainda sobra muita árvore de valor comercial para os ilegais. Ao incentivo econômico, gente da área ambiental do governo em Brasília junta também a possibilidade de haver um incentivo político. As madeireiras certificadas são vistas como o exemplo de que é possível aliar a extração de madeira à estratégias de conservação e de que vale à pena aderir à formalidade. Atacá-las é uma maneira de se opor às políticas que estão sendo desenhadas pela cúpula do MMA, na capital federal.

Sua experiência guiou inclusive a montagem de uma peça legislativa na qual Marina Silva e seus assessores diretos sempre depositaram enorme esperança, o projeto de lei sobre gestão de Florestas Públicas. Ele serviria para incentivar a exploração da floresta em regime de manejo e concessão, mas sua aprovação, num Congresso ocupado apenas com CPIs sobre corrupção, parece ter empacado. Adalberto Veríssimo, pesquisador do Instituto do Meio Ambiente e do Homem da Amazônia (Imazon) diz que o que está ocorrendo com as certificadas é um perigo. “O Brasil vai perder um esforço de uma década nessa área”, lamenta ele.

O Brasil tem hoje 2,043 milhões de hectares de florestas certificadas, a maior da América Latina, sendo 1,6 milhão de hectares de florestas naturais na Amazônia e o restante de plantações em outras partes do país, principalmente de pinus e eucalipto. A área certificada na região amazônica vem crescendo de maneira expressiva nos últimos anos. Em 1999 não passava de 9 mil hectares, atingindo 27 mil em 2000 e 29 mil no ano seguinte. Em 2002 deu um grande salto, com 430 mil hectares, chegando a 540 mil em 2003. Ano passado, a área certificada disparou, alcançando 1,68 milhão de hectares. Este ano, só nos primeiros cinco meses, já ultrapassou 1,69 milhão. Existem atualmente cerca de 300 mil hectares de florestas naturais em regime de manejo em processo de certificação. No ano passado, as madeireiras certificadas responderam por boa parte dos 600 milhões de dólares que a indústria madeireira do Pará vendeu no exterior.

A atividade madeireira certificada atraiu investidores e principalmente consumidores estrangeiros, boa parte deles governos europeus. “Os investidores estão apavorados com esta instabilidade”, diz Veríssimo. “Os clientes não estão achando nada engraçado. Os governos alemão e holandês já estão fazendo perguntas sobre nossa capacidade de garantir o fornecimento de madeira certificada”, diz Sobral, da Cikel. “Se continuar assim, vamos ter um brutal dano à nossa imagem lá fora”. Tasso Azevedo, do MMA, tem uma visão até mais sombria. “Temos que reverter isso já, se não será a sentenca de morte das certificadas”, diz. Se elas morrerem, levarão junto o sonho de que é possível explorar a Amazônia com pelo menos um grau mínimo de harmonia com o meio ambiente.

Colaborou Raimundo José Pinto.

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