Numa minúscula poça d’água, pode estar escondida uma história de evolução animal que faria Darwin ficar de queixo caído. Basta que ali dentro esteja um peixinho da família Rivulidae.
Acontece assim: lá está a poça, e dentro dela peixinhos coloridos. Em alguns meses, a água seca e os peixes morrem. No ano que vem, volta a chover, volta a existir a mesma poça. E voltam os mesmos peixes. Quer dizer, não os mesmos, mas os descendentes daqueles, que ficaram reservados em ovos na terra, como sementes, durante todo o período seco. Quando chove, eles eclodem. E recomeça o ciclo. Por terem uma existência assim intermitente, são chamados de peixes anuais.
Sua história de sucesso biológico remonta a mais de 120 milhões de anos atrás, quando África e América do Sul eram um só continente. Sucessivas mudanças ambientais provocaram no grupo ancestral uma excepcional capacidade adaptativa a situações adversas. As elevações e retrações do nível dos oceanos, o surgimento de novas vegetações e formações geológicas e a mudança no curso dos rios “ensinaram” aos seus genes que não é prudente contar com água permanente.
Além dos ovos-sementes à prova de seca, eles se especializaram em técnicas reprodutivas sofisticadas. Assim se desenvolveram as famílias Rivulidae (na América do Sul, principalmente Brasil) e Nothobranchidae (na África), as únicas duas linhagens existentes dos incríveis peixes anuais.
Bem-sucedidos na odisséia evolutiva que garantiu seu lugar na Terra, no último século os peixes anuais descobriram o que é perigo pra valer. Nestes tempos de aterros, dragagens, desmatamento, barragens, asfaltamento e transposição, está cada vez mais complicado depender de uma pobre lagoa ou brejo sazonal. Num piscar de olhos, vem a obra humana e vão pelo ralo milhões de anos de história natural. Muitas vezes, antes mesmo que a ciência tome ciência do fato.
Mas ela, a ciência, que sempre discriminou aqueles “peixinhos de aquário” como tema menor, agora acertou o passo. Nos últimos anos, não pára de desvendar novas espécies e propor novas teorias sobre eles. Se ocorresse aos peixes anuais agradecer por estarem finalmente saindo do anonimato, seria fácil escolher seu herói. Ele é o professor Wilson José Eduardo Moreira da Costa (foto), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De 1998 a 2004, ele vasculhou margens de rio, várzeas e áreas alagadiças de todos os estados brasileiros para realizar a primeira sistematização das espécies de rivulídeos conhecidas por estas bandas.
Além de descobrir peixes nunca vistos antes, reencontrou animais que tinham sido coletados pela última vez há quase um século e refez os estudos de várias espécies, muitas vezes alterando seu lugar na cadeia evolutiva, outras vezes inaugurando, ele mesmo, novos gêneros de Rivulidae. Resultado: das 107 espécies de peixes anuais identificadas no Brasil até o momento, 69 vieram a público por obra e graça do professor Costa.
Dizer “até o momento” é necessário porque nem ele próprio sabe afirmar, com precisão, quantas espécies já foram descobertas. Tem peixe recolhido em 1999 que até hoje espera que Wilson tenha tempo de esmiuçá-lo, nos mais de 500 caracteres diferentes necessários à validação científica das espécies. Todos os dias chegam-lhe mais remessas de coletas feitas por outros pesquisadores e aquariófilos, vindas de todas regiões e até de outros países. Num fim-de-semana trabalhando em casa, foi flagrado com um lote de 300 vidrinhos com peixes para analisar. Por que não contrata alguém ou recruta um estagiário para ajudá-lo? “Não me contento que outra pessoa meça os peixes. Faço questão de fazer tudo sozinho. Desenhar, fotografar, ir às últimas conseqüências”, explica o metódico ictiólogo.
Quando não está caçando poças Brasil afora, o maior especialista do mundo em peixes anuais esconde-se em uma pequena saleta de um reduzido laboratório numa das últimas portas de um corredor de subsolo da UFRJ. Em volta dele, uma “ictioteca” com mais de 6 mil peixes conservados em álcool. Cabelos longos presos em rabo de cavalo, com a serenidade arquetípica dos sábios, daqueles que não gargalham mas estão sempre com um meio-sorriso satisfeito nos lábios, Wilson Costa resume sua sina: “Quem estuda peixes anuais não pode fazer outra coisa na vida”.
O que viu de tão especial naqueles bichinhos, para fazer deles sua razão de viver? Pra começar, são peixes. E peixe, para Wilson, sempre foi um capítulo à parte no mundo animal. Ele se lembra nitidamente de quando ganhou seu primeiro aquário, no aniversário de 3 anos. Também se lembra, é claro, da trágica experiência por que passa todo aquarista iniciante: o trauma do peixe morto. “Acordei cedo e encontrei o peixe boiando. Foi uma cena horrorosa, muito triste para mim”, relata, assumindo que as escolhas de vida “nunca são frias, têm elementos emocionais”.
Os anuais merecem do especialista uma distinção especial. Representam uma evolução no curso natural dos peixes. “Eles são observadores, nadam mais lentamente e usam as nadadeiras para se deslocar, o que não acontece nos grupos mais primitivos”, ensina. Mas o que têm de mais impressionante é o potencial reprodutivo, qualidade indispensável para animais que não têm tempo a perder. O mérito é dos machos, que desenvolveram variados padrões de cores, listras e pontos, além de vistosas nadadeiras, para atrair a atenção das fêmeas.
Além das estampas que fazem a alegria de aquariófilos, a ponto de seu comércio colocar algumas espécies sob ameaça, Costa estuda outras fantásticas estratégias de reprodução dos peixes anuais. Ele descobriu que alguns deles chegam a emitir sons. “Observando o comportamento desse gênero, ficamos intrigados pelo fato de o macho ficar parado, e a fêmea simplesmente vir”, conta. Até que perceberam que os peixinhos machos faziam pequenos movimentos com a cabeça, provocando estalos graças a uma modificação morfológica de seu esqueleto. Outros dois gêneros adaptaram-se para realizar fecundação interna, algo raríssimo entre os peixes. A nadadeira dos machos transformou-se em um órgão copulatório.
A história do conhecimento científico sobre os rivulídeos começou a mudar em 1982. Wilson Costa estava concluindo o curso de Biologia na UFRJ sem contar, entre seus mestres, com um especialista à altura para orientá-lo no estudo de peixes. Até então, ele explorava a ictiologia “intuitivamente”. Mas já devia impressionar os professores, ou não ganharia de presente, aos 23 anos, um laboratório na universidade, com direito a carro, motorista e estagiários. Estes, seus próprios colegas. Foi por essa época que soube que dois peixes anuais descritos na década de 40 haviam sido reencontrados na região dos Lagos, estado do Rio. Analisando as espécies com mais cuidado, descobriu que eram diferentes daquelas descritas anteriormente. Registrou as novas espécies e decidiu que seu negócio era ser sistemata, ou seja, classificar e ordenar os elementos da família que se abria diante de seus olhos com muito mais lacunas do que respostas. Apresentou seus primeiros estudos à USP, que o acolheu diretamente no doutorado.
Mas ele precisava mesmo era cair na estrada. Nas vezes em que o fez, na base da aventura, constatou o que sua intuição já lhe soprava: onde quer que haja poças intermitentes em condições adequadas, há peixes anuais a serem descobertos. Pediu à Fundação O Boticário de Proteção à Natureza que o ajudasse a rodar o país em busca deles. Por seu ineditismo, a proposta era irrecusável. O financiamento garantiu-lhe o básico para realizar o sonho: gasolina, estadias, alimentação e quatro auxiliares (dois biólogos e dois estagiários). Carros? Usariam particulares. E foram três, arriados nos 34 mil quilômetros percorridos entre 1998 e 2000. Regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste. Todos os estados. E mais Tocantins.
O resultado está publicado no livro Peixes Anuais Brasileiros: diversidade e conservação, lançado em 2002 pela Fundação. Como diz o título, além de destrinchar, um a um, os rivulídeos que habitam os ecossistemas alagadiços do Brasil, a pesquisa aponta o estado de conservação dos peixes anuais e as principais ameaças à sua preservação. Na região da Mata Atlântica estão os maiores riscos: desmatamento, drenagens e aterros. Na Caatinga, maior fonte de espécies novas, paira a ameaça da transposição do rio São Francisco. Se realizada, diz o autor, 11 das 17 espécies de peixes anuais da região podem desaparecer. No Cerrado, o avanço da soja não deixa rastro de natureza para trás. Vê lá se o progresso vai poupar míseras poças turvas. A febre das hidrelétricas é outro sintoma do mesmo mal.
Para acabar de mapear o Brasil, faltava a Amazônia. Mais um projeto com O Boticário, realizado entre 2002 e 2004. A região Norte não é pródiga em peixes anuais. Só se conhecia seis espécies por lá. Costa achou outras oito. Ainda assim, a pesquisa trouxe à ciência novas inquietações. A primeira é justamente explicar se existe alguma incapacidade do grupo de viver em áreas de mata densa. Em contraste, abriu-se o desafio de analisar as espécies não-anuais encontradas, que aparentemente estão se tornando tão especializadas quanto as anuais. Foram encontrados peixes “não-anuais” vivendo em poças de 3 centímetros, no espaço de água acumulada em uma folha. Se não são anuais, como sobrevivem ali? Não perguntem a mim, pois nem Wilson Costa sabe a resposta. “Os limites entre anualismo e não-anualismo se tornaram quase completamente indefinidos”, escreveu no relatório do projeto.
Para a Fundação, a parceria com Costa rendeu outro motivo de orgulho. Ganharam um mascote. É o peixinho Aphyolebias boticarioi, primeiro rivulídeo encontrado no Acre, às margens do rio Purus, e recém-acolhido pela ciência. Costa conta com orgulho de Indiana Jones como teve que enfrentar uma picada de floresta cerrada atrás de um mateiro para chegar a uma lagoa de água cristalina. Em frente a ela, copulavam duas jararacas, bloqueando o acesso à água e fazendo recuar até o caboclo que os conduzira, quanto mais os estagiários. Mas não ele. “Entrei pela fissura”. E foi logo recompensado, na primeira passagem de rede, com peixes da espécie desconhecida, cujo nome homenageia a Fundação.
Em troca, a parceria também significou para Wilson Costa algo mais do que o impulso definitivo para suas pesquisas. “No projeto, eu deixei de ser só o sistemata. Passei a identificar a resposta social sobre o estado de conservação da natureza. Pude ver as diferenças regionais: quem agride no Sul é diferente de quem agride a Mata Atlântica. E comecei a pensar em políticas localizadas para cada tipo de ameaça”, analisa.
Ou seja, o ictiólogo virou conservacionista. Da espécie pessimista. “Parece que tudo isso é parte de um processo de modernização contra o qual a gente não pode fazer muita coisa”, lamenta-se. Se serve como consolo, convém lembrá-lo de que não se pode chamar de pouca coisa o que já fez até agora. Imagine o que ainda há de fazer.
* Esta reportagem faz parte de um livro sobre os 15 anos da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza.
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