O Rio de Janeiro está ganhando uma nova geografia urbana, e ela passa longe dos olhos do Cristo Redentor. Todos os bairros que mais crescem na cidade, crescem em torno do Maciço da Pedra Branca, que ocupa 16% do território carioca e abriga sua maior floresta.
São matas pouco conhecidas, distantes que sempre estiveram da expansão urbana durante quase todo o século passado. Agora que ocupam o centro do crucial embate entre cidade e natureza, elas ganham enfim uma série de estudos científicos dedicada a contar sua história. O livro As marcas do homem na floresta, recém-lançado pela Editora PUC-Rio sob coordenação de Rogério Ribeiro de Oliveira, recorre a diversos saberes para mostrar que a ocupação humana da Zona Oeste, embora lenta, causou grande degradação ambiental.
Durante dois anos, professores e alunos dedicaram-se especialmente ao pequeno bairro do Camorim. Lá, além das análises ecológicas da vegetação, fauna, recursos hídricos e vestígios arqueológicos, colheram relatos de antigos moradores para reconstruir as relações sociais e atividades econômicas que alteraram o ambiente.
A floresta do Camorim, com seus 1.200 hectares espalhados ao redor da bacia hidrográfica de mesmo nome, é a parte melhor conservada dentro dos 12 mil hectares do Maciço da Pedra Branca. Encravada entre picos e com poucos atrativos à visitação, ela abriga espécies da flora ameaçadas de extinção no país e árvores nobres e de grande porte, como jacarandá, cedro, peroba e jatobá. Um jequitibá de 45 metros de altura atesta a saúde da floresta. Uma bromélia rara, Vriesea amestisthina, redescoberta ali depois de 130 anos de seu registro original, também. A fauna é muito prejudicada pela caça, mas até rastro de jaguatirica os pesquisadores encontraram por lá.
Registrada a importância ecológica da floresta, o livro volta ao passado para revelar cada um dos estágios da transformação daquilo que um dia já foi natureza intocada. Muito antes da chegada dos europeus. Quatro mil anos atrás, a Baixada de Jacarepaguá recebia os primeiros sinais da presença humana. Artefatos de pedra polida, ossos e sambaquis (moradias feitas com conchas e material orgânico) revelam uma complexa estrutura social daqueles homens que viviam entre o mar e as restingas, mangues e florestas costeiras, à base da pesca e de moluscos, mas também recorrendo à caça e à coleta de vegetais. A cultura indígena dos Una e Tupi-guarani, no início da era cristã, trouxe as primeiras práticas agrícolas.
Vale pelo registro, mas as marcas humanas na natureza começam a se fazer sentir, pra valer, durante o Brasil Colônia. Foi quando o primeiro governador do Rio de Janeiro, Salvador Correia de Sá, dividiu entre os filhos as terras hoje ocupadas pelos bairros de Vargem Grande, Vargem Pequena e Camorim. Elas acabaram doadas para um mosteiro beneditino, em 1667.
Por 200 anos, os monges fizeram funcionar ali um engenho de cana-de-açúcar. Além dos canaviais, plantaram “milhares e milhares de pés de mandioca”, para a produção de farinha, e também milho, feijão e arroz. Fora os cultivos de subsistência dos escravos e cerca de 100 cabeças de gado.
Mais do que perder espaço para as plantações, a floresta foi drasticamente subtraída devido à forma de produção de açúcar e aguardente no engenho. Para alimentar a fornalha dia e noite, era preciso lenha, muita lenha. Arquivos do Mosteiro possibilitaram aos pesquisadores fazer cálculos impressionantes. Em cada safra eram utilizadas em média 2.600 carradas de madeira (um carro de boi cheio), o que equivale a algo entre 4 e 22 hectares de floresta no chão (dependendo do seu grau de conservação), todos os anos. Calcularam também a produção das caixas de madeira que transportavam a cana. A cada safra, eram fabricadas de 400 a 600 caixas. Isso requeria a derrubada de pelo menos 12 árvores de grande porte, com mais de 70cm de diâmetro, todo ano. Multiplique-se essas estimativas por 200 anos de atividade ininterrupta… e ainda não é tudo. Os próprios carros de boi, as cercas, as reformas das construções, toda a vida do engenho e das fazendas demandava uma quantidade de madeira que não deixa dúvida aos autores: “Parte considerável da mata atlântica foi derrubada” naquele período, que durou até quase o fim da escravidão.
O paradeiro dos escravos e sua relação com o meio ambiente, antes e depois da alforria, foram tema de outra pesquisa, baseada nos registros de casamento, nascimento e batismo da igreja local. Os escravos colonizaram a área com as concessões que recebiam para o cultivo de subsistência, com o tempo transformadas em produção para lucro, ainda que módico. Ainda assim, o fim do engenho beneditino significou alívio para a floresta, que teve a chance de se regenerar por alguns anos. Vendidos para a Cia. Engenho Central de Jacarepaguá e desta para o Banco de Crédito Móvel, os latifúndios viraram loteamentos arrendados, mas a crise econômica na época fez escassear a produção local, reduzida a “laranja e talvez banana”, por volta da década de 1920.
Aos poucos começou a “lenta e definitiva expansão imobiliária sobre as terras”. Os moradores produziam frutas e hortaliças em pequena escala. Nas matas de brejo, instalou-se uma incipiente indústria de cestos e tamancos. Mas o grande prejuízo daqueles tempos foi a exploração da floresta para fazer lenha e carvão. Como a Floresta da Tijuca já era protegida por lei, os carvoeiros instalaram-se nas encostas da Pedra Branca, de onde alimentavam a “densa rede comercial” que garantia o funcionamento dos fogões de toda a cidade.
Só em 1976 o governo decidiu proteger os mananciais do Maciço da Pedra Branca, chamado por Magalhães Corrêa, no clássico livro Sertão Carioca, de “chateau d’eau” (castelo d’água). Naquele ano foi criado o Parque Estadual da Pedra Branca, o que mudou novamente o perfil de exploração da região. As roças sumiram, o desmatamento diminuiu e “a sucessão ecológica fez a floresta retomar clareiras”. Mas nas encostas a produção migrou para bananais, cultivados em vastas áreas de forma clandestina. A criação de gado também subiu os morros, e com ela as queimadas para formar pastos.
Nas últimas duas décadas, diz o livro, o avanço da malha urbana é a principal forma de pressão sobre a floresta. Imagens do satélite Landsat, comparando o ano de 1985 ao de 1999, dividem a região em três áreas: floresta, floresta alterada e campo antrópico (urbanizado). Nestes 14 anos, a floresta preservada diminuiu de 8 mil para 5.800 hectares. A floresta com alterações aumentou de 1.800 para 2.900 hectares. E a área urbana de 2.100 para 3.300 hectares. Detalhe: isso apenas dentro dos limites do Parque da Pedra Branca, que deveriam ser integralmente protegidos.
O estudo da PUC não se dedica a estudar a urbanização recente da cidade, mas a inauguração do Elevado do Joá, na década de 70, ligando a Zona Sul à Zona Oeste, foi o ponto de partida para o fenômeno do surgimento de uma nova cidade.
A Barra da Tijuca é o bairro que mais cresceu nas últimas décadas. Numa expansão imobiliária que parece não ter fim, condomínios de classe média-alta multiplicam-se ao longo das praias espetaculares da região, e em torno deles um admirável novo mundo de serviços e comércio, capitaneado por grandes shopping-centers. Em agosto agora, bastaram poucos dias para serem vendidos todos os 1.480 apartamentos que compõem a Vila Pan-Americana, que abrigará os atletas da competição esportiva em 2007, para depois virar mais um mega-conjunto residencial.
Dados do IBGE indicam que, enquanto a média de crescimento do município, entre 1991 e 2000, ficou em 0,75% ao ano, a área que abrange Barra, Recreio dos Bandeirantes e Vargem Grande viu sua população aumentar 2,9% a cada ano. Quase quatro vezes mais. Atraídos pelo impulso econômico desta transformação, bairros antes tipicamente rurais passaram a orbitar em volta da Barra, principalmente depois da inauguração da Linha Amarela, em 1997, o passo que faltava para integrar toda a região.
Apenas sete bairros da Zona Oeste já concentram mais de 1 milhão de pessoas. São eles: Campo Grande, Santa Cruz, Bangu, Realengo, Jacarepaguá, Guaratiba e Senador Camará. Esses sete bairros têm um ponto em comum: são os mais informais da cidade. Ou seja, detêm os maiores percentuais de imóveis “invisíveis” para os registros da Prefeitura, na forma de loteamentos clandestinos e invasões. Em Guaratiba, por exemplo, mais de 79% das construções não têm cadastro no IPTU. Em Santa Cruz, cerca de 69% dos imóveis estão em situação irregular. Passa de 100 o número de favelas na região.
“A indústria das invasões é grande na área, favorecendo a sua favelização. As moradias de classe média ou de luxo promovem construções incompatíveis com a legislação e o relevo. Numerosos condomínios teimam em avançar pelas encostas, desmatando e abrindo estradas”, enumera Rogério Ribeiro de Oliveira (foto), diretor do Departamento de Geografia da PUC-Rio e organizador do livro. Ele reconhece os esforços do Instituto Estadual de Florestas (IEF), que “muito se intensificaram ultimamente”, mas os considera insuficientes. “A situação crônica de sucateamento do setor ambiental do Estado impede maiores sucessos”, afirma Rogério.
Solução? Não arrisca. “Mas certamente os caminhos possíveis se localizam no meio-termo entre os preceitos científicos da conservação da natureza e a realidade prática”, argumenta, citando como exemplo a própria iniciativa da PUC que deu origem ao livro. Entre 2002 e 2004, o projeto Voluntariado Ecológico mobilizou mais de 200 pessoas no Camorim, para que os moradores descobrissem “sua própria História Ambiental”. As pesquisas foram resultado de oficinas de História e Meio Ambiente com um total de 28 participantes. Tudo coordenado por três professores, 15 alunos e dois monitores selecionados entre os habitantes do Camorim. Ao fim do processo, foi criada uma associação comunitária. Co-autores do livro, os moradores agora conhecem profundamente e se identificam com o ambiente natural que tiveram a sorte de herdar em sua vizinhança. A mudança, para Rogério, começa aí.
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