Reportagens

Mudança de hábitos

Carros movidos a tecnologia alternativa tomam de assalto o mercado americano. Até petrolíferas dizem que é preciso reduzir dependência de combustíveis fósseis.

Manoel Francisco Brito ·
7 de outubro de 2005 · 19 anos atrás

O sinal fechou uns 50 metros adiante numa rua de Austin, Texas, nos Estados Unidos. Pressionei o freio do carro de leve até ele chegar na faixa e parar. O motor entrou num silêncio sepulcral. Morreu, pensei, estendendo a mão em direção à ignição. “Não, não. Está ligado”, disse Elizabeth Munger, a representante da Honda que me levou para um test–drive no novo Civic híbrido (foto) que será lançado no fim do ano no mercado americano. Gasolina e eletricidade respondem ao mesmo tempo pelo seu funcionamento. Exceto em velocidades acima dos 90 quilômetros horários, nas quais anda só na gasolina, ou quando está parado. Nesse caso, é a sua metade elétrica que mantém o motor rodando. Daí a ausência do barulho que me fez achar que o veículo estava desligado. “Conduzir híbridos requer uma certa adaptação cultural”, diz Munger.

Não só os híbridos, como constatei depois de testar vários modelos de automóveis equipados com as chamadas tecnologias limpas –– uma soma de fontes de energias menos poluentes com motores mais eficientes. Dirigi-los exige dos motoristas mudanças de hábitos e percepções. Como, por exemplo, acreditar que é possível existir diesel sem cheiro e fumaça, coisa dura para qualquer nariz que encara diariamente a exaustão de caminhões e ônibus que circulam pelas cidades brasileiras. Ou descobrir que carros movidos a gás natural, ao contrário do que estamos acostumados vendo táxis no Brasil, não só podem ser produzidos em série como têm espaço para carga na sua mala (foto) e motores que não perdem potência quando precisam encaram uma ladeira mais íngreme. Agora, choque cultural mesmo é pilotar um carro movido a célula de hidrogênio.

Quando girei a chave num Honda desse tipo, achei que estava ligando meu computador. Ele fez um zunido típico de sistema eletrônico começando a funcionar. No painel, uma barra de luz indicava que ele estava carregando. Levou uns 40 segundos para o motor começar a roncar, não como um motor, mas como um ser humano cochilando de boca aberta. Carros a célula de hidrogênio parecem ter sido feitos para virar o nosso mundo de pernas para o ar. “O combustível pode ser produzido a partir de várias fontes diferentes, até água”, diz Marcos Frommer, da Honda. Em teoria, vai permitir que os motoristas se livrem de seus piores pesadelos nos postos de gasolina, como os países produtores de petróleo e, no caso do Brasil, a Petrobrás e os usineiros responsáveis pelo nosso álcool. Infelizmente, tudo isso vai demorar a acontecer. Esses carros ainda estão longe do mercado consumidor. Sua produção em massa hoje é economicamente inviável.

Por enquanto, são protótipos construídos por montadoras desesperadas para descobrir meios de fazerem veículos, no futuro, independerem, ou pelo menos dependerem menos, de combustíveis fósseis. A tecnologia de célula de hidrogênio vive neste momento uma espécie de infância. Ela precisa, para poder fazer parte do nosso cotidiano, passar por um processo de miniaturização semelhante ao dos computadores ao longo das últimas três décadas. O Honda (foto) que eu guiei não era maior que um Palio, da Fiat. Mas tinha o peso de um caminhão, quase duas toneladas. A culpa é das baterias que processam as células de hidrogênio e fazem o carro andar. São grandes e pesadas demais, o que obriga sua engenharia a instalar freios e amortecedores especiais, capazes de agüentar o tranco, além de colocarem o veículo, por exemplo, fora das especificações que o permitiriam circular por áreas residenciais nos Estados Unidos.

Dá para sentir a massa no volante – a sensação é a de se estar guiando um blindado – e vê-la nas suas formas. O carro, por conta de seu chassi super reforçado, parece um minitanque. Meu contato com todas essas maravilhas da tecnologia moderna de automóveis aconteceu na última semana de setembro, durante a reunião anual da Sociedade de Jornalistas Ambientas dos Estados Unidos. Loucas para divulgarem seus produtos ambientalmente corretos, as montadoras levaram para Austin seus modelos mais modernos que funcionam à base de tecnologias alternativas. Os europeus – Mercedes, Volks (foto) e BMW – compareceram em peso com a sua opção preferida, carros a diesel ou biodiesel. Americanos e japoneses trouxeram seus híbridos, de eletricidade e gasolina ou álcool e gasolina.

Eles começaram a chegar ao mercado americano há 12 meses. “Vendem como água”, diz Matthew Zuehlk, engenheiro de testes da Ford, que junto com a Toyota foi a pioneira na comercialização desses veículos. De fato, todo mundo parece querer ter uma novidade dessas na sua garagem nos Estados Unidos. Por um lado, pelas vantagens econômicas. Os carros custam entre mil e 4 mil dólares a mais que seus similares que funcionam só a gasolina. Mas, com consumo de combustível entre 30% e 40% mais baixo, e o barril de petróleo na casa dos 60 dólares, eles não só cobrem rápido essa diferença de preço, como garantem maior quilometragem ao bolso do consumidor ao longo do tempo. Não é fácil comprá-los, pelo menos ainda. Somando tudo o que está disponível, veículos movidos a tecnologias alternativas ainda não chegam a 1% dos mais de 200 milhões de carros que circulam nos Estados Unidos.

A Ford produziu até agora apenas 20 mil carros do seu utilitário híbrido de gasolina e eletricidade, o Escape. Ano que vem, ela pretende implantá-la numa segunda linha, a Mercury. Mas para 2010, a montadora promete que 50% dos carros que vai produzir nos Estados Unidos serão híbridos. A Toyota começou em 2004 com um carro de passeio híbrido, o Prius, e este ano lançou um utilitário, o Highlander. Ambos trabalham com eletricidade e gasolina. A Honda entrou na corrida recentemente e, embora acredite que seu futuro está em veículos ao menos não tão dependentes de combustíveis fósseis, não está ainda certa de qual será a tecnologia vencedora. Além do Civic híbrido, venderá a partir de 2006 na Califórnia uma versão do modelo movido a gás natural. Junto com o carro, para enfrentar a falta de postos com bombas próprias para abastecer este tipo de veículo, vem um eletrodoméstico que, uma vez plugado na rede de gás residencial, permitirá que seu dono encha o tanque em casa.

A GM investiu mais nos carros que funcionam a álcool e gasolina. Já produziu um milhão deles, embalada pelos subsídios destinados a incentivar agricultores de milho a desviar sua produção para fazer o combustível. O problema é que seus consumidores preferem utilizar a gasolina apenas porque o álcool, além do consumo mais alto, provoca uma queda de rendimento no motor entre 20% e 25%. Híbridos a eletricidade e gasolina, a GM começou a fazer este ano. Foram apenas 3 mil. “É pouco, mas a empresa investirá mais a partir do ano que vem nesse segmento”, diz Connie Scarpeli, engenheira de produtos, informando que em 2007 toda a sua linha de utilitários vai oferecer os dois tipos de híbridos.

A tecnologia dos híbridos a gasolina e eletricidade faz as duas fontes de energia trabalharem em equipe para movimentar o veículo. Sua metade elétrica funciona como uma espécie de meio de campo, que aumenta a eficiência e desempenho da metade gasolina. Parado, o motor gira na eletricidade apenas. Logo que o carro começa a andar, ela vira uma auxiliar do combustível fóssil, permitindo que seu consumo caia em até 30%. Mas isso só até o carro atingir os 90 km/h. A partir dessa velocidade, ele passa a depender exclusivamente da gasolina. As baterias são recarregadas toda a vez que o motorista pisa no freio. Ele dispara um mecanismo que recicla de volta para elas até 40% da carga que foi despendida. A BMW lançou um híbrido desse tipo no mercado americano há algumas semanas.

Como as montadoras européias, sua aposta principal é que o futuro de seus produtos está no uso de um diesel tão revolucionário que ganhou o rótulo de limpo. Ele é na verdade um sistema integrado que junta um combustível de refino mais avançado, produzido com índices de enxofre bem mais baixos que o diesel feito no Brasil, e uma tecnologia de filtros e catalizadores instalados no motor que reduz substancialmente a emissão de poluentes na atmosfera. E põe substancialmente nisso. Em relação aos motores a diesel de 30 anos atrás, os que estão saindo hoje das montadoras européias emitem 98% menos de poluição no ar e economizam entre 30% 40% no consumo. O problema do diesel nos Estados Unidos é sua imagem ruim. “O cheiro e a fumaça que os carros com motores a diesel dos anos 80 exalavam ficou na cabeça da população”, diz Melinda Burpo, assessora de imprensa da Diesel Technology Forum.

A fama é injusta. Andei numa Mercedes E-320 (foto acima) e num Jetta da Volkswagen, ambos a diesel, e nenhum dos dois me lembrou o cheiro e a fumaça que me acostumei a ver e sentir saindo dos ônibus que circulam com esse combustível no Brasil. Também circulei num ônibus da GM híbrido, diesel e eletricidade (foto). O cheio e a fumaça simplesmente se evaporaram. Além da questão econômica, a chegada de veículos movidos a tecnologias alternativas nos Estados Unidos está ancorada num forte viés ambiental. Sua face mais óbvia é uma regulação cada vez mais restritiva no que diz respeito à emissão de poluentes no ar. A demanda legal pela redução é tão grande, que provavelmente ela vai inviabilizar em breve o uso de carros movidos só a gasolina. É juntando essas duas pontas da equação que as montadoras imaginam que breve os carros com combustíveis alternativos ganharão economia de escala e seus preços se tornarão mais acessíveis.

Foi apoiada nesse raciocínio que a Honda decidiu lançar o seu misto de carro a gás e bomba residencial na Califórnia. O preço do conjunto, 54 mil dólares, é salgado. “Mas se você levar em conta os benefícios de usar um combustível mais barato e que, por ser menos poluente, dá ao seu usuário mais liberdade de circulação no estado, o custo começa a fazer sentido”, diz Munger. Essa não é a única conta que montadoras, consumidores e até petrolíferas começam a fazer abertamente nos Estados Unidos. No aeroporto de Houston, Texas, capital do petróleo nos Estados Unidos, a Chevron espalhou cartazes informando que para cada dois barris de petróleo consumidos hoje em dia, o ser humano só consegue extrair um das profundezas do mar ou da terra. Essa soma, fundamental, não fecha.

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