Reportagens

A espera de um milagre

O governo está pronto para transformar o São Francisco em canteiro de obra, mas não para revitalizá-lo. O relatório de impacto ambiental evidencia a falta de rumo.

Carolina Elia ·
9 de outubro de 2005 · 18 anos atrás

Quem dá mais? O Ministério da Integração Nacional garantiu que até o fim do ano gastará R$ 68,5 milhões em ações para revitalizar o Rio São Francisco. O Ministério do Meio Ambiente anunciou que no máximo em 3 semanas aprovará projetos que destinam R$ 7 milhões ao plantio de árvores nas matas ciliares da bacia do Velho Chico. E para acabar com a greve de fome do frei Luiz Flávio Cappio, o presidente Luis Inácio Lula da Silva deu a sua palavra de que se esforçará para aprovar no Congresso o improvável: uma emenda constitucional que prevê investimentos anuais de R$ 300 milhões, por 20 anos, para revigorar o São Francisco. Todas essas promessas foram feitas em menos de 3 dias numa tentativa de disfarçar um escândalo: o projeto de R$ 4,5 bilhões de Integração do Rio São Francisco com Bacias do Nordeste Setentrional não inclui a revitalização do rio.

A obra que aguarda licença do Ibama para começar diz respeito especificamente à construção de canais, reservatórios e até duas usinas hidrelétricas na área do médio São Francisco, que está sendo chamada pelos engenheiros de eixos Norte e Leste do projeto. No eixo Norte será aberto um canal na altura da cidade pernambucana de Cabrobó para ligar o São Francisco a rios em Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Para tanto, serão necessários 402 km de canais artificiais, 4 estações de bombeamento, 22 aquedutos, 6 túneis, 26 reservatórios e as duas centrais hidrelétricas com 40 MW e 12 MW de capacidade. Segundo o Relatório de Impacto Ambiental do projeto, só essa parte da obra está orçada em US$ 1,03 bilhão.

O Eixo Leste vai sair mais em conta: US$ 472 milhões. O dinheiro viabilizará a integração do rio São Francisco com o rio Paraíba, no sertão paraibano. A água será captada na altura do município de Itaparica, às margens do São Francisco. Juntos (mapa em arquivo .pdf com 3.8Mb), os dois eixos compõem o grosso do que está previsto de obra de infra-estrutura hídrica e custarão US$ 1,5 bilhão. Ou seja, numa cotação de 3 para 1, R$ 4,5 bilhões. Não sobra nada para a revitalização.

Revitalizar o rio São Francisco – que sofre com assoreamento, esgoto, poluição industrial, mineração e tantas outras ações humanas – não custa pouco. No governo de Fernando Henrique Cardoso, quando o projeto, idealizado pela primeira vez por Pedro II, voltou a ser discutido, calculou-se que seria necessário investir R$ 2,2 bilhões para recuperar o rio. Pela emenda constitucional proposta pelo presidente Lula na semana passada, esse custo triplicou para R$ 6 bilhões. Sendo que o governo não apresentou um projeto que justifique o cálculo.

Pelo Relatório de Impacto Ambiental é mais difícil ainda de entender qual é o plano do governo para a revitalização. A questão é citada superficialmente no começo do documento e depois some. Segundo o Rima, “diversas ações estão sendo implantadas ou programadas” com o objetivo principal de revitalizar o rio. Mas não esclarece que ações são essas. Por outro lado, deixa explícito que a prioridade da obra no médio São Francisco é a construção dos canais e que a proteção das nascentes, a recomposição de matas ciliares e o saneamento básico da bacia serão prioritários quando se investir no alto São Francisco – o que não tem verba definida nem data para acontecer. Portanto, primeiro o governo vai sangrar as águas do Velho Chico para rios vizinhos. Depois, pensar em garantir a saúde do doador.

O Rima afirma que, depois da obra, “ Se a chuva não cair, as águas do rio São Francisco garantirão o abastecimento humano, das safras agrícolas, das atividades industriais e do turismo.” E que o projeto de integração representa uma segurança para as bacias do Nordeste Setentrional. O pesquisador pernambucano Aldo Rebouças, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e especialista em recursos hídricos e meio ambiente, atesta que o rio São Francisco está doente e que a obra agravará o quadro e não cumprirá o seu objetivo. “Não vai irrigar nada”, afirma. Segundo Rebouças, os 26m3/s de água que o governo planeja extrair da vazão do São Francisco não vão chegar ao fim dos canais por causa da evaporação muito intensa que acontece na região. “Vai é criar depósito de sal e enfraquecer o rio”, completa.

Para Rebouças, que nasceu no agreste pernambucano, uma das regiões que será beneficiada pelo projeto, o problema não é a escassez de água e sim saber usá-la. “Constroem cisternas no sertão, mas não ensinam que não se deve usar o mesmo balde para remover estrume e para captar água. Em um mês a cisterna está contaminada”, diz. Outro exemplo são os 16 maiores açudes do Ceará onde, segundo o pesquisador, sobra água por uso inadequado. O próprio relatório de impacto ambiental reconhece o desperdício do recurso na região e informa que estudos realizados em 90 açudes demonstraram que cerca de 75% da água armazenada é perdida por causa de má administração. O Rima chega a apontar o Ceará como referência administrativa de recursos hídricos. E cita o Canal do Trabalhador, construído pelo então governador Ciro Gomes, como um caso exemplar de transposição. Mas a reportagem “ Valei-nos, São Francisco”, publicada em janeiro em O Eco, revela o oposto.

O Rima também afirma que o desperdício de água é inevitável por causa das condições do clima da região e que a única forma de combatê-lo é através da integração dos açudes com uma fonte de água permanente e de grande volume. Essa fonte seria o reservatório de Sobradinho, localizado um pouco antes do pólo agrícola de Petrolina Juazeiro, que consome uma quantidade significativa de água do São Francisco para irrigar suas fruticulturas. Mas a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) lembra que recentemente foram registrados períodos de baixa acumulação no reservatório e que 93% da vazão máxima alocável da bacia do Rio São Francisco já estão comprometidos pelo direito dado aos setores rural, industrial e energético de utilizar suas águas.

Quanto à visão de que a transposição é essencial para resolver a questão da água, a SBPC afirma que o Ceará e Rio Grande do Norte são auto-suficientes em termos de recursos hídricos e questiona a necessidade da obra bilionária do Eixo Norte. Julga um equívoco a irrigação ser uma prioridade, alerta que a demanda provavelmente está subestimada e pede clareza sobre quem serão os verdadeiros beneficiados. Lembra ainda que parte significativa dos atuais projetos de irrigação na região usa técnicas de baixa eficiência e que existem dezenas de projetos inacabados e outros quase destruídos em função de má gestão pública. “Seriam extremamente oportunas e prioritárias ações focadas na conclusão de inúmeras obras inacabadas existentes”, concluíram os cientistas ao analisarem o projeto de integração.

Em 1999, ainda na gestão de Fernando Henrique Cardoso, o Banco Mundial também questionou o governo federal sobre a necessidade do Eixo Norte e o aconselhou considerar cuidadosamente formas menos custosas de alcançar demandas atuais e futuras de água. Sugeriu que a obra começasse pela parte baixa do rio, trabalhando primeiro com os recursos hídricos das bacias receptoras para depois construir os canais de integração que realmente se revelassem necessários. Pediu ainda que o governo definisse como e por quem a água seria gerenciada antes de iniciar as obras e que fosse assegurado a inclusão dos pobres. Seis anos depois, a equipe do governo Lula fez algumas modificações no projeto, mas não desistiu do Eixo Norte, não criou um órgão gestor e classificou as alternativas á obra como complementares. Quanto aos pobres, dificilmente eles terão propriedade sobre a água numa região de coronéis e onde o custo do recurso encarecerá.

“Concordo que às vezes é necessário fazer sacrifícios ambientais para resolver questões como fome e miséria, mas neste caso isso não vai acontecer. Se a água fosse solução não teria tanta pobreza às margens do Rio São Francisco. As pessoas precisão de educação e acesso garantido ao recurso”, diz Miguel Trefaut Rodrigues, pesquisador da USP que há 20 anos estuda a herpetofauna do maior campo de dunas continentais da América do Sul: as dunas do São Francisco. Segundo ele, a fauna da região é praticamente desconhecida e corre o risco de algumas espécies endêmicas sumirem com as mudanças ecológicas que serão provocadas pela obra. Nas dunas que chegam a 100 metros de altura ele já encontrou 40 tipos de lagarto que só existem ali. A situação dos peixes do rio São Francisco e adjacentes não é diferente. Já se sabe que uma família inteira de peixes anuais, a Rivulidae, pode sumir.

O Relatório de impacto ambiental prevê diminuição de fauna terrestre, modificação na composição das comunidades biológicas das bacias envolvidas e modificação fluvial do Rio São Francisco. Também reconhece que a obra vai acelerar os processos de erosão e sedimentação das margens e desertificação da região. E que as várzeas potencialmente irrigáveis no entorno dos canais serão alvo de especulação imobiliária, entregando a posse da água aos mais ricos. As comunidades locais ainda estarão sujeitas a um aumento significativo de poeira no ar e a doenças ligadas à água não-tratada. Como dengue, malária e febre amarela.

Mesmo com uma lista de mais de 20 impactos negativos da obra sobre o meio ambiente, os técnicos das empresas responsáveis pelo relatório e estudo de impacto ambiental (Eia-Rima) do projeto, garantem que todos os pontos poderão ser “ perfeitamente atenuados e monitorados” por meio de programas ambientais e que a perda de biodiversidade será compensada com investimento de R$ 23 milhões em Unidades de Conservação na Caatinga. Boa parte desses programas ambientais – pouco definidos – ficará a cargo dos próprios empreendedores.

A decisão de deixar na mão dos empreendedores a solução das questões ambientais levou a juíza baiana Cynthia Lopes a conceder uma liminar no dia 6 de outubro suspendendo o procedimento de licenciamento ambiental da obra em tramitação no Ibama. Ela afirma que o Instituto concedeu a licença prévia em abril sem que falhas e omissões nos estudos fossem sanados, deixando para que os problemas fossem solucionados no decorrer da obra. Pelo mesmo motivo ela impediu que o Ibama concedesse na última semana a licença de instalação.

A juíza foi uma das pouca pessoas no Brasil que teve acesso ao Estudo de Impacto Ambiental da integração do São Francisco , que são 11 volumes de 800 páginas detalhando os prós e contras da obra. O Eco tentou obter uma cópia com o Ministério da Integração, mas a assessoria se recusou a colocar o material em um cd e enviá-lo por correio. Disseram para irmos a Brasília buscar. Já a equipe técnica do Ibama responsável pela análise do Eia-Rima, que em setembro era bastante solicita, se recusou a falar sobre o assunto nos últimos dias.

Ainda que o Ibama consiga derrubar a liminar da juíza, será necessário vencer uma batalha judicial no Supremo Tribunal Federal para iniciar as obras. Uma ação civil pública contra o projeto de integração ganhou status de conflito federativo e deve se tornar a última trincheira nessa guerra de interesses onde o que está em jogo é a vida do São Francisco.

*Colaborou com esta reportagem Ana Antunes.

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