O bicho foi descrito pela primeira vez em 1920, quando ganhou seu nome científico, Melanophryniscus moreirae. Mas parou aí. A ciência só se recordou da sua existência 47 anos mais tarde graças ao zoólogo W. Bokermann, que lhe dedicou um curto estudo. O trabalho, no entanto, foi incapaz de resgatá-lo do esquecimento. Seus hábitos e atividades continuaram envoltos no mais puro mistério. Ninguém sabe explicar muito bem por quê. Talvez por implicância. Afinal, trata-se de um sapo, animal ao qual a esmagadora maioria dos homens dedica uma mistura de nojo e desprezo. Ou quem sabe sua condenação à insignificância histórica resida no fato de existir num único lugar em todo o mundo, e ainda por cima de difícil acesso: os campos de planalto que cercam as Agulhas Negras, no Parque Nacional do Itatiaia, a 2 mil e 400 metros de altitude.
Há quem diga que a culpa por tudo isso é das suas dimensões diminutas – mede 1,3 centímetros e pesa 2,5 gramas na média. E da sua cor. Tem a barriga vermelha. Mas o dorso é escuro, o que ao olho humano desavisado lhe faz parecer um pedregulho e torna os eventuais encontros com quem anda pelo seu território arriscados. Não raro, terminam com o animal esmagado na sola de uma bota. Antiga freqüentadora de Itatiaia, a bióloga paulista Pilar Guido Castro (na foto, com o sapo nas mãos), 35 anos, já estava cansada de ver o sapinho. Mas também nunca tinha lhe dispensado muita atenção. Só se deu conta de que criatura tão óbvia no Parque era um ilustre desconhecido por volta de 2003. Recém-mudada para o Rio de Janeiro, ela buscava um objeto para sua tese de mestrado em Ecologia na UERJ.
“Havia alguns raros estudos sobre o bicho. Mas são trabalhos mais descritivos, coisa de naturalista”, lembra ela. O que não deixa de ser incrível. Afinal, sua área de ocorrência fica bem na fronteira de São Paulo, Minas e Rio, os três estados mais ricos do país e onde não faltam universidades e muito menos cientistas ávidos por descobrir algo que ninguém nunca estudou. Pilar, que desde pequena, como diz, gostava de “bichinhos esdrúxulos” e depois de formada em Biologia foi trabalhar com anfíbios no Instituto Butantã, na capital paulista, pensou em toda essa charada e enxergou uma imensa oportunidade. Decidiu assumir a responsabilidade de tirar o Melanophryniscus moreirae do anonimato. Ele virou seu objeto de estudo.
Sorte do sapo. Além da disciplina científica, tão cara à Academia, Pilar tem nas veias o sangue de quem é talhado para relatar a vida de uma criatura. Ela é filha de um dos mais importantes escritores da atualidade no Brasil, o jornalista Ruy Castro, autor de monumentais biografias de Nelson Rodrigues, Garrincha e, mais recentemente, Carmem Miranda. Para “biografar” o bicho, ela cortou um dobrado. Durante dois anos, pelo menos duas vezes por mês, passou 20 horas por dia, das 5 da matina até a uma da madrugada, seguindo seus passos no planalto de Itatiaia. No inverno, encarou frio às vezes muito abaixo de zero. No verão, chuva torrencial, muita lama e nevoeiro (foto). Chegou lamber um para ver se tinha gosto. “Não tem. Mas tem cheiro de amendoim cru”.
Desespero
Pilar capturou, marcou, pesou e mediu mais de 400 sapinhos. Observou outros milhares.
Na sexta-feira, 9 de dezembro, ela apresentou os principais resultados de seu trabalho como parte de uma série de palestras organizadas pelo coordenador de pesquisas do Parque Nacional do Itatiaia, Leo Nascimento, no auditório do Centro de Visitantes. A platéia era eclética. Incluía funcionários do Parque, cientistas e ambientalistas importantes como Alceo Magnanini, gente ligada a operações de ecoturismo e freqüentadores da região.
Sua palestra agradou à turma da ciência e eletrizou os leigos presentes. A bióloga mostrou que o Melanophryniscus não é um anfíbio único só porque ocorre exclusivamente no planalto de Itatiaia. Ao contrário de boa parte das outras espécies de anfíbios, a temperatura, umidade e precipitação não têm impacto significativo na sua atividade. “Já estive aqui no planalto, em junho, com temperatura de 15 graus, e não vi nenhum”, diz Pilar. “E já vim em janeiro, com frio a 7 graus, e estavam todos felizes nos campos”.
A luz do dia, indica sua pesquisa, é fator bem mais importante na reprodução da espécie. É ela que mais influencia nesse quesito. A atividade predomina entre 7 horas e 17 horas, com picos no meio da manhã e no meio da tarde.
Os Melanophrynisci acordam, de um período médio de quatro meses de hibernação durante o inverno, tão logo as primeiras chuvas começam a cair sobre o planalto de Itatiaia. Em geral isso acontece em outubro. Mas este ano começou a ocorrer em setembro. E a primeira ordem das coisas é a reprodução, sempre longa e, muitas vezes, frenética. A cópula dura 24 horas, pelo menos (foto). “Capturei casais em que ela durou mais tempo”, conta. Na platéia, um homem a interrompe. Diz que viu um ‘bolinho’ de sapinhos se amontoando uns sobre os outros certa vez no planalto. Mostra uma foto da cena. Quer saber se ela tem explicação para isso.
“Desespero”, retruca Pilar. “Olha, esse bicho acorda pensando em se reproduzir. O período de acasalamento dura todo esse tempo porque o macho tem que garantir que a fêmea vai por os ovos. E como em qualquer espécie de anfíbio, há muito macho para pouca fêmea. Eles ficam desesperados para achar uma e muitas vezes tentam se meter no meio do ato sexual alheio”. No dia seguinte, andando pelo planalto de Itatiaia, a bióloga dá uma medida até maior desse desespero reprodutivo. Certa vez, ao investigar um desses “bolinhos”, só encontrou machos.
Destampado
O frenesi reprodutivo segue até o fim de novembro, comecinho de dezembro. Termina com o aumento da intensidade das chuvas de verão sobre o Parque. Os bichos então se afastam das áreas mais alagadas, onde as fêmeas desovam seus “projetos” de girino nas poças (foto) e se dirigem para locais mais secos onde há abundância de sua dieta: formigas. A bióloga diz que seu estudo se propôs a levantar os parâmetros fundamentais da ecologia do bicho, coisa que nunca tinha sido feita e que lhe permitiu chegar a várias conclusões importantes. Como por exemplo, que a espécie não tem predadores naturais na sua região de ocorrência e tampouco está ameaçada.
“Mas é vulnerável, porque ocorre em uma região limitada”, lembra. Sua pesquisa, além de ser fundamental para guiar futuros planos de conservação da fauna em Itatiaia, tem o mérito de ter aberto o caminho para o estudo de aspectos mais específicos da vida da espécie. Como tentar descobrir o tamanho da população de Melanophryniscus no Parque ou a razão entre machos e fêmeas dentro dela. “Não fazia parte do meu trabalho descer a tantas minúcias”, diz. Quando precisava saber o sexo, por exemplo, recorria a um método mais falível. Entre os anfíbios, só o macho emite som. Ela punha o bicho no ouvido. Piava, macho. “Não piava, dúvida”, diz. Podia ser um macho que não estava a fim de cantar.
“Eu só destampei esse bicho para a pesquisa”, diz, modesta. De fato, na esteira de seu trabalho, já foi iniciado outro, base de uma tese de doutorado que também será defendida na UERJ. O sapinho rubro-negro (foto), uma das 19 espécies de Melanophryniscus que se espalham pela América do Sul, levou quase um século para virar objeto de interesse. Tudo indica que pelo menos nos próximos anos, ele vai ser figurinha fácil na ciência. Já não era sem tempo.
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