Se tudo correr bem, o Brasil ganhará em breve duas novas unidades de conservação marinhas: a Área de Proteção Ambiental (APA) Costa dos Corais, com 112,5 mil hectares, e, contíguo a ela, o Refúgio de Vida Silvestre de Santa Cruz, com 32,5 mil hectares. A APA será, de longe, a maior unidade de conservação capixaba. E o Refúgio de Santa Cruz, a terceira maior reserva marinha de proteção integral do país, atrás apenas de Abrolhos e Atol das Rocas.
Ambas ficam no litoral norte do Espírito Santo e têm como área central o bucólico balneário de Santa Cruz, com cerca de 8 mil habitantes. Trata-se de uma das primeiras vilas jesuítas do Brasil, fundada na primeira metade do século XVI às margens do rio Piraquê-açu e seu enorme manguezal, dos maiores do país.
O projeto já foi enviado para Brasília e aguarda a lenta tramitação característica desse período pré-carnaval. O pior já passou: numa briga que foi parar nas altas esferas da Justiça e durou sete anos, organizações locais conseguiram impedir uma grande mineradora de se instalar na região. Agora, falta resolver a demanda dos pescadores.
Eles apóiam a APA integralmente, pois ela vai permitir apenas a pesca artesanal. Os barcos de fora, especialmente aqueles que vêm do Rio de Janeiro e Santa Catarina, terão que buscar outros portos. O conflito que ainda existe é com relação ao Refúgio de Vida Silvestre, que proíbe qualquer tipo de pesca.
Prestes a perder um bocado de mar, os pescadores esperam receber indenização pelo que deixarão de lucrar com os peixes da área. Seus líderes tentam adotar discurso conciliatório. “Se o cachorro é mal-tratado, ele vai pro vizinho. Assim é o peixe. Se ele ficar mais seguro dentro do Refúgio, vai haver mais peixe lá dentro”, compara Manoel Bueno dos Santos, presidente da Associação de Pescadores de Jacaraípe e um dos porta-vozes das cerca de 5 mil famílias envolvidas diretamente com pesca nos municípios de Serra, Fundão e Aracruz. Mas o próprio Manoel endossa ameaças de protesto caso as negociações com o Ibama não seja bem-sucedidas.
Custo e benefício
Tradicionalmente uma das áreas mais generosas para pesca no país, o norte capixaba sofre redução drástica da oferta de peixe. Os pescadores têm consciência de que, a médio prazo, a moratória tornará a pescaria mais farta nos arredores do Refúgio. A questão é saber quanto tempo precisarão esperar.
Segundo o oceanólogo Roberto Sforza, analista ambiental do Ibama, é muito provável que num prazo de cinco anos aumente o número e tamanho dos peixes dentro do Refúgio de Santa Cruz. Dentro da APA, por sua vez, a quantidade deve permanecer a mesma – o que pode ser interpretado como ganho, pois a tendência hoje é de queda nos estoques – e provavelmente haverá aumento do tamanho dos peixes e o retorno de algumas espécies que desapareceram devido à sobrepesca. “Tudo isso vai resultar em melhoria da renda dos pescadores a médio e longo prazo”, aposta Roberto. Hoje, ela está em torno de 2 salários mínimos.
Enquanto isso não acontece, a conta é negativa: os pescadores terão dezenas de pesqueiros a menos para trabalhar. Não é possível afirmar com certeza quantos pontos de pesca estão dentro da área do Refúgio, ou seja, o tamanho exato da restrição, muito menos quantos ou mesmo se haverá pescadores que perderão sua fonte de subsistência. A maioria tem em média cinco pesqueiros pra trabalhar, portanto é possível que aqueles proibidos sejam substituíveis. Mas, diante da incerteza, os pescadores temem prejuízos. “A preocupação é procedente. O Ministério de Meio Ambiente e o Ibama estão sensíveis a isso”, afirma Sforza.
Tanto que quase 50 pontos de pesca foram retirados da proposta inicial do Refúgio. O traçado foi modificado ao longo do tempo até chegar ao desenho atual, que, segundo o oceanólogo, conseguiu equilibrar a maior biodiversidade com o menor número possível de pesqueiros importantes.
Precedente e ameaças
Projeto pronto, trâmite em Brasília iniciado, agora é preciso providenciar estudos que comprovem se realmente haverá pescadores prejudicados. Em caso positivo, os defensores das unidades de conservação querem abrir um precedente no Ibama para compensar essas famílias, coisa que nunca aconteceu em áreas protegidas marinhas.
O Parque Nacional da Lagoa do Peixe, na costa do Rio Grande do Sul, é a principal referência a inspirar soluções no mar de Santa Cruz. “Os pescadores prejudicados poderão trabalhar no próprio Refúgio de Vida Silvestre, em alguma atividade de conservação ou educação ambiental, ou mesmo continuar praticando a pesca, mediante um termo de compromisso com o Ibama”, antecipa Sforza.
A próxima reunião entre as associações e colônias de pesca, o Ibama e as prefeituras deve acontecer somente depois do carnaval. Até lá, os pescadores continuam mobilizados, estão acionando a Confederação Nacional de Pesca e estudam muito sobre o assunto. Ameaçam invadir prédios públicos se não forem atendidos e impedir a criação do Refúgio se não estiverem satisfeitos com os termos do acordo. “E se ele for criado, a gente não vai respeitar a proibição de pescar”, avisa Manoel Bueno dos Santos.
Os ambientalistas de Santa Cruz também continuam mobilizados, cientes de que é preciso encontrar uma solução para os pescadores. Por mais que ainda existam riscos, eles sabem que a situação está bem melhor do que há oito anos, quando a luta começou. Na ocasião, o inimigo nem de longe queria ouvir falar de conservação ambiental.
Ação entre amigos
Dez viagens a Brasília, sete processos na Justiça, inúmeros manifestos, filmagens, fotos e reuniões. Um movimento que nasceu em 1998, ultrapassou as divisas do Estado e terminou com a vitória dos ambientalistas contra a prefeitura e uma grande indústria. A vila de Santa Cruz pode se orgulhar de ter poupado da exploração econômica uma de suas maiores riquezas naturais: as algas calcáreas (foto).
Tudo começou com um grupo de amigos veranistas que queria regularizar a situação de suas embarcações de lazer junto à Capitania dos Portos. Organizaram um curso gratuito para 110 pilotos amadores e, no almoço de entrega das habilitações, surgiu a idéia de criar uma ong para cuidar do rio Piraquê-açu. Em junho daquele ano, foi fundada a AMIP – pequena sigla para um grande nome: Associação dos Amigos do Rio Piraquê-Açu em Defesa da Natureza e do Meio Ambiente (AMIP).
Guido Martins, primeiro e atual presidente da ong, é mineiro de São Domingos do Prata. Freqüenta Santa Cruz desde 1963, quando vinha de trem com os amigos até Vitória e, de lá, enfrentava quase quatro horas em estrada de terra para curtir o verão na praia. Logo que se aposentou, transformou a paixão de tantos verões em lar. Mudou-se há dez anos para Santa Cruz com a esposa Zeni Magalhães, também mineira, antiga veranista do lugar e batalhadora de mão cheia. Ela e a amiga Tetê Vellozo, capixaba da capital e freqüentadora de Santa Cruz há mais de 40 anos, protagonizaram a primeira mobilização do futuro movimento pró-Santa Cruz.
Semanas depois da criação da AMIP, Tetê foi convidada para um jantar num restaurante requintado do balneário e estranhou a recomendação de não comunicar nada aos amigos Zeni e Guido. É claro que foi imediatamente lhes contar o ocorrido. Descobriram que o tal jantar era um pretexto para apresentar o projeto da indústria Thotham para extrair algas calcáreas do mar de Santa Cruz e usá-las como matéria-prima para fertilizantes e cosméticos.
Foram à internet pesquisar. Descobriram sobre a riqueza de algas calcáreas na região e vislumbraram a catástrofe sócio-ambiental que aconteceria caso a empresa se instalasse. Bancos de algas calcárias (foto) são ecossistemas que, associados aos recifes de corais, contribuem para a reprodução de diversas espécies marinhas, e têm papel fundamental na fixação de gás carbônico. As maiores formações têm no mínimo 300 anos. A de Santa Cruz é a mais importante do país, com mais de 80 espécies de algas identificadas, e uma dos maiores do mundo. Sem falar nas centenas espécies de moluscos, crustáceos, esponjas e peixes que dependem do ecossistema. A Thotham pretendia dragar nada menos que 50 mil toneladas de calcário por mês.
Guerra calcárea
Apavorados, Guido, Zeni e Tetê convidaram todos os ambientalistas que conheciam, em ongs, universidades e órgãos de governo, e armaram um batalhão verde para ir ao restaurante na hora marcada. Descobriram que o jantar era na verdade uma audiência pública, que pretendia “provar” que a empresa estava se instalando com pleno apoio da comunidade.
Só depois da audiência eles entenderam que a Thotham era a empresa que há algum tempo vinha distribuindo cestas básicas, promovendo shows e bancando reformas nos prédios da prefeitura de Aracruz, de quem, aliás, já tinha total apoio. O prefeito Luiz Carlos Gonçalves (PSDB), conhecido como Cacá, chegou a “doar” para a Thotham um terreno de 57 hectares dentro de uma Reserva Ecológica de proteção dos manguezais.
Àquela altura, era difícil acreditar que seria possível impedir a instalação da indústria milionária. Até porque havia gente na própria comunidade que preferia ficar do lado da empresa, de olho nas promessas de emprego. Os diretores da AMIP eram ridicularizados em jornais locais, chamados de “ecochatos”, chegaram a receber ameaças através de cartas anônimas. Funcionários da prefeitura que os apoiavam foram demitidos.
Mas o movimento crescia e agregava gente que trabalhava em projetos isolados. Como a ORCA (Organização Consciência Ambiental), em sua defesa do raro boto-cinza (Sotalis fluviatis) e a Estação Biologia Marinha Augusto Ruschi, dirigida pelo biólogo André Ruschi, filho do famoso naturalista, com os estudos mais antigos sobre o fundo do mar no norte do Espírito Santo, até então praticamente desconhecidos. “Ia levar o resto da minha vida para trazer essas informações a público”, conta André. As ações contra a Thotham, pondera, fez com que tudo emergisse rapidamente.
Até entidades de outros estados e nacionais, como o Projeto Baleia Franca, entraram na campanha, que além de expulsar a Thotham passou a defender a proteção ambiental da região. Foi assim que nasceu a proposta da APA e do Refúgio de Vida Silvestre.
A batalha judicial durou anos. Em 2005, chegou à instância final. No início do ano, a AMIP venceu o último processo contra a Thotham, no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), derrubando de vez a licença de exploração da empresa. Em dezembro, veio mais uma conquista, que diz muito pelo seu simbolismo: a Câmara Municipal de Aracruz aprovou projeto de lei transferindo para a Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), em comodato por 20 anos, o prédio onde funcionava o escritório da Thotham. Será a nova base oceanográfica da UFES, incluindo cursos de graduação, pós-graduação e ensino à distância. O projeto para reforma já está com verba praticamente aprovada. É só questão de tempo.
Como é questão de tempo proteger definitivamente águas tão valiosas, para o bem da pesca, do turismo e da qualidade de vida da comunidade.
* Fernanda Couzemenco é jornalista do Espírito Santo. Na revista Século, conquistou em 2003 o primeiro lugar no Prêmio de Reportagem sobre a Biodiversidade da Mata Atlântica. Produz o quadro Movimento Sustentável, na TV Gazeta/Rede Globo, onde ganhou menção honrosa do mesmo prêmio em 2005.
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