Reportagens

Em nome do patrimônio

Depois de 14 anos tramitando no Congresso, a Lei da Mata Atlântica é aprovada no Senado. O texto aposta em incentivos econômicos para manter a floresta de pé.

Lorenzo Aldé ·
16 de fevereiro de 2006 · 19 anos atrás

Em 1988, a Constituição Federal consagrou a Mata Atlântica como “patrimônio nacional”. Ela merece. É nossa segunda maior floresta tropical (já ocupou uma área equivalente a um terço da Amazônia), uma das mais ricas do mundo em biodiversidade e também uma das mais ameaçadas.

Só que, durante quase duas décadas, esse título não passou de abstração, enquanto o patrimônio real — as florestas que restaram ao longo das regiões mais povoadas do país — diminui a passos largos, do Ceará ao Rio Grande do Sul.

Pois agora o Brasil está prestes a definir, em lei, como se deve tratar a Mata Atlântica. Na terça-feira, dia 14, o Senado aprovou o Projeto de Lei 107/03, que institui regras para sua exploração sustentável, preservação e recuperação.

Não se engane com o 03 que encerra o número do projeto. Ele se refere ao ano em que a Câmara enviou a proposta para o Senado: 2003. Na Câmara, o número era 285/99. O que também não nos leva ao início da epopéia percorrida até sua iminente aprovação. O texto original surgiu, na verdade, em 1992. Foram 14 anos de tramitação, durante os quais a Mata Atlântica foi protegida apenas pelo antigo Código Florestal de 1965 e por um decreto presidencial dos anos Collor, sempre contestado judicialmente por quem não tinha interesse em cumpri-lo.

Só falta decidir sobre as emendas criadas pelos senadores, que voltam para o crivo dos deputados. Depois, uma canetada presidencial será suficiente para abrir aos brasileiros uma nova, e última, chance de se relacionar com a floresta de forma saudável para ambos.

Economia florestal

A nova lei tem o mérito de tentar superar a simples proibição da exploração das florestas, estabelecendo regras para o manejo sustentável e incentivos econômicos para quem preserva. Cria o Fundo de Restauração do Bioma Mata Atlântica, que deve financiar projetos e pesquisas voltados à proteção e recuperação ambiental. E determina limites até para o uso das florestas em solo urbano.

Falar em exploração “sustentável” da Mata Atlântica assusta muita gente, por causa da fragilidade ecológica dos 7% de remanescentes que ainda resistem, da área original. Se sobrou tão pouco, não seria o caso de mantê-la intocada?

A ambientalista Miriam Prochnow, credenciada pela batalha contra a hidrelétrica de Barra Grande como insuspeita quando o assunto é a disputa entre interesse econômico e preservação ambiental, acha que a lei é bem segura nesse aspecto. “Os planos de manejo precisam ter viabilidade técnica e científica”, pondera. O que elimina, de cara, intenções madeireiras: “Não existe estudo científico que permita fazer manejo sustentável de madeira na Mata Atlântica”, explica Miriam, coordenadora-geral da Rede de Ongs da Mata Atlântica (RMA), que reúne mais de 300 ongs, foi criada em 1992 e cuja história, obviamente, está atrelada à discussão e acompanhamento da Lei da Mata Atlântica.

Quem quiser tirar lucro da floresta terá que fazê-lo mantendo-a de pé, através da extração seletiva de produtos ou dos cultivos agroflorestais em pequenas propriedades. Para isso poderá receber crédito agrícola especial, a juros baixos, e pleitear isenção de impostos. Também poderão deduzir suas contribuições pessoas físicas ou jurídicas que investirem na preservação da Mata Atlântica. “Todos sabemos que a floresta é produtiva em pé e dá dinheiro para quem está interessado nela”, defende a ambientalista.

O texto é cheio de cuidados para não deixar o apetite econômico atropelar suas intenções sustentáveis. Entre as boas novidades, está a proibição de qualquer tipo de intervenção na floresta em propriedades que não estejam em dia com suas APPs. Traduzindo: se a fazenda já tiver desmatado beiras de rio, entornos de nascente e encostas (as áreas de preservação permanente, APPs) não pode explorar suas matas enquanto não reflorestar essas áreas estratégicas.

Matas primárias, pela nova lei, ficam integralmente protegidas. Já as matas secundárias em estágio médio ou avançado de regeneração só serão liberadas no caso da improvável combinação dos seguintes fatores: não terem bichos nem plantas ameaçados de extinção, não servirem para a proteção de mananciais ou controle de erosão, não funcionarem como corredores entre outros fragmentos de floresta, não se localizarem no entorno de unidades de conservação e não possuírem excepcional valor paisagístico.

De olho nos bandidos

Ainda assim, é apenas uma lei. Mais uma boa lei entre as várias boas leis ambientais do país. Que não impedem os oportunistas de sempre de arranjarem brechas para obter vantagens pessoais às custas da natureza. A Lei da Mata Atlântica saiu da Câmara dos Deputados com um artigo que poderia causar um rombo nos combalidos cofres públicos da área ambiental. Era o de número 46, que previa indenizações em caso de prejuízo à “potencialidade econômica” das propriedades.

Um exercício de “potencialidade”: eu, um fazendeiro, posso alegar que planejava erguer um hotel de luxo em minha área de floresta, e agora que estou proibido de fazê-lo contabilizo o prejuízo dos milhares de hóspedes que deixarei de ter, de hoje em diante. Na mão de bons advogados, o artigo 46 abriria a porteira para indenizações milionárias e injustificáveis. No lugar dele, os senadores criaram uma emenda que só prevê indenizações no caso de a proibição de desmatamento impossibilitar, “de forma completa e concreta, todo o uso econômico direto e indireto do imóvel”, e apenas para projetos que já existam. Ou seja, acabou a mamata. E o líder do governo no Senado, Aluízio Mercadante, prometeu que o artigo 46 não volta de jeito nenhum. Se os deputados derrubarem a emenda do Senado e ressuscitarem a malandragem, avisa, o presidente veta o artigo e pronto.

Brechas como essa, que tenham passado despercebidas, arrepiam os ambientalistas. Mal foi divulgada a aprovação do Projeto de Lei, já circulava na internet o temor de deixar nas mãos dos órgãos ambientais locais a decisão sobre a exploração dos preciosos ecossistemas em jogo. Ou de latifundiários resolverem retalhar a propriedade em nome de laranjas para obter licença de derrubada em “pequenos lotes”. Aí, responde Miriam, o caso é de ilegalidade pura e simples. “Para bandido, não importa o que está no papel”, diz, com conhecimento de causa.

A nova lei também estipula punições para eles. Incluindo um muito bem-vindo adendo à Lei de Crimes Ambientais: não apenas os funcionários públicos que forjarem informações falsas estão sujeitos a multas e detenções, mas também “auditores ambientais, responsáveis técnicos de obras, planos ou projetos potencialmente causadores de impactos ambientais e integrantes de equipe multidisciplinar de avaliação de impactos ambientais, na medida de sua culpabilidade”. Encaixam-se perfeitamente nessa descrição os consultores privados e empresas que criam Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental (Eia-Rima) sob medida para as ambições e descompromisso ambiental de empreiteiras e congêneres.

Implementação

Miriam Prochnow destaca outra novidade promissora. Proprietários que tiverem problemas com áreas de preservação permanente ou de reserva legal (o mínimo de floresta obrigatório por lei: 20% da propriedade), podem doar parte de sua terra para uma Unidade de Conservação. Segundo Miriam, isso pode fazer andar processos de regularização fundiária de parques e reservas que se arrastam por décadas.

Ela lembra que agora parte-se para a regulamentação de vários pontos da lei. Fase importante para que seja implementada de forma eficaz. “E, como ongs, temos um desafio pela frente: criar estratégias para aproveitar as oportunidades que se abrem de promover projetos agroflorestais, de enriquecimento ecológico e de valorização dos serviços florestais de áreas privadas”. Coisas que nunca antes tinham sido contempladas por lei.

Mário Mantovani, diretor da ong S.O.S. Mata Atlântica e outro que batalha há anos pela aprovação da lei, concorda plenamente. “Hoje o meio ambiente é visto como não, não e não. Tem que ser mais propositivo, tem que viabilizar o desenvolvimento, tem que oferecer solução”. Ele vê vantagens até nos longos 14 anos que se consumiram para a aprovação da Lei da Mata Atlântica. “Tanto tempo fez com que a lei fosse aprimorada, levando em conta outras legislações que surgiram. A Lei dos Crimes Ambientais é ótima. A Lei das Águas também. O SNUC [Sistema Nacional de Unidades de Conservação] também. Estamos aproveitando essas conquistas”.

Uma semana depois de aprovar no Congresso a lei de gestão das florestas públicas, o governo comemora mais uma vitória legislativa na área ambiental. “É uma mudança que vai mexer com o aspecto cultural, a longo prazo, até que a floresta seja vista como naturalmente produtiva”, diz João Paulo Capobianco, secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente.

Nada mais justo. Patrimônio nacional que se preze merece alguma deferência.


* Colaborou Carolina Mourão.

  • Lorenzo Aldé

    Jornalista, escritor, editor e educador, atua especialmente no terceiro setor, nas áreas de educação, comunicação, arte e cultura.

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