Há mais de dois séculos a região da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, atrai aventureiros de todo tipo. A maioria veio em busca de solos férteis e riquezas minerais. De uns tempos para cá, ganharam a companhia dos místicos, que vislumbraram energias cósmicas no lugar, uma das formações geológicas mais antigas do planeta. O casal Richard Avolio e Carla Daronco faz parte de um terceiro grupo: o daqueles que decidiram agir contra a destruição do Cerrado.
Richard é engenheiro e trocou o trabalho em uma petroquímica no cinza barulhento de São Paulo pelas belezas naturais de Goiás em 2001, depois de perambular com a mulher por vários cantos do país. Compraram a Chácara Vera Cruz, no município de Cavalcante, a 300 quilômetros de Brasília, e lá deram forma a um antigo sonho: ter um negócio que aliasse preservação ambiental e ecoturismo.
Para isso, criaram na chácara uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), com 31 hectares. A RPPN Vale das Araras está bem acompanhada. Na região há nada menos do que 14 reservas particulares destinadas à preservação ambiental. É a maior concentração de RPPNs de Goiás, por sua vez um dos estados que mais tem reservas desse tipo.
Localizadas nos municípios de Alto Paraíso, Cavalcante, Colinas e São João d’Aliança, as reservas particulares, que somam quase 12 mil hectares, ajudam a manter a saúde do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. A área federal encolheu ao longo dos anos pela pressão do agronegócio, grilagem de terras e descaso de sucessivos governos. Sobraram apenas 65 mil dos 625 mil hectares originais do parque, criado em 1961.
As RPPNs conservam Cerrado, campos de altitude e nascentes que abastecem os vales dos rios Tocantins, Tocantinzinho, Paranã, Preto, São Bartolomeu e das Almas. Elas formam “corredores verdes” que servem de abrigo para bichos acuados pelo homem, permitindo a circulação dessas espécies entre o parque federal e outras regiões próximas.
Desistências
Apesar de sua importância para a conservação ambiental, ter uma propriedade reconhecida como RPPN ainda é tarefa para poucos. O tempo de espera na fila do Ibama é de três a quatro anos, em média, denuncia Donizete Tokarski (foto), dono de três reservas e presidente da Associação de RPPNs de Goiás e do Distrito Federal. Segundo ele, proprietários de terras em cidades goianas como Formosa, Água Fria e Planaltina foram vencidos pelo tempo e desistiram da empreitada de ter a área reconhecida pelo Ibama.
Outros ainda insistem. Na região de Serranópolis, a 600 quilômetros da capital federal, Othon Henry Leonardos, professor do Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da Universidade de Brasília (UnB), alimenta há oito anos o sonho de transformar sua propriedade em RPPN. A região fica próxima ao Parque Nacional das Emas e abriga parte do patrimônio pré-histórico nacional em serras, rochas e cavernas. Lá foram encontradas pinturas rupestres e até o esqueleto humano mais antigo do país, com 11 mil anos.
Os 150 hectares de Leonardos, um dos maiores geólogos do país, são uma verdadeira Arca de Noé. A área é cheia de bichos do Cerrado, mas cercada por canaviais, carvoarias e fazendas. “A ordem é desmatar. Nada sobra aqui em volta”, diz o professor. “Sofro cada vez mais com isso. Mas não dá para desistir de preservar. É uma coisa que vem de dentro”, afirma.
A história se repete a 80 quilômetros de Brasília, no município de Alexânia, onde a Fazenda Raizama enfrenta uma via crucis que já dura seis anos. Segundo Jorge Vargas, um dos donos da área, tanto o Ibama quanto organizações não-governamentais e empresas de consultoria não desataram o nó para a implementação de uma RPPN no local. “Estamos desmotivados pela falta de interesse e de apoio dos órgãos ambientais”, lamentou.
O engenheiro florestal Fernando Lima, da Fundação Pró-Natureza (Funatura), conhece o problema de perto. Ele coordenou um projeto que investiu 750 mil dólares (cerca de R$ 1,6 milhão) para implementar cinco RPPNs no entorno do Parque Nacional. Nem com essa ajuda a burocracia andou mais rápido. “Demoramos quatro anos para reconhecer as cinco reservas. No entanto, quem entra com um pedido de desmatamento, consegue a licença em dois ou três meses”, disse. Lima diz que o Ibama não tem capacidade para analisar o grande número de pedidos para reconhecimento de RPPNs e ainda gerenciar as outras unidades de conservação do país.
O diretor de Ecossistemas do Ibama, Valmir Ortega, reconhece que o órgão “está longe do ideal”, mas garante que o governo está trabalhando para agilizar o reconhecimento das RPPNs em todo o país. “Comprovar a titularidade das terras é sempre difícil”, argumenta. Segundo ele, o Ministério do Meio Ambiente deve encaminhar “o mais rápido possível” à Casa Civil uma proposta de decreto para regulamentar a criação de RPPNs junto ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC, Lei 9985/2000). O decreto servirá para definir de forma mais clara as atividades que podem acontecer nessas reservas, por exemplo.
Reserva atropelada
Se para criar uma reserva particular é preciso paciência de Jó, manter a área livre da sanha desenvolvimentista não é menos complicado. Há quatro anos, em Morrinhos, a 120 quilômetros de Goiânia, a RPPN Sobrado foi dilapidada pelo prefeito Joaquim Guilherme Barboza de Souza (PSDB). Alegando “interesse público”, a reserva de 1,25 hectare foi destruída para a construção de uma avenida e de um lago. Nascentes, buritis, córregos e até um sobrado do Século XIX estão ameaçados em uma das raras RPPNs urbanas do país. “O Ibama foi informado, mas trabalhou para desconstituir a reserva, pois isso lhe eximiria de mal-estar. Estamos há mais de três anos lutando na Justiça para fazer valer o princípio da preservação”, disse um dos proprietários da área, Marcel Bursztyn, diretor do CDS da UnB.
Contra todos os percalços, as RPPN goianas seguem em frente tentando cumprir seu papel. Bichos ameaçados do Cerrado, como lobo-guará (foto), tamanduá-bandeira, seriema, anta, arara-vermelha, arara-canindé e cachorro-vinagre são avistados com freqüência nessas reservas.
Na Fazenda Campo Alegre, a maior reserva da região, sobrevivem algumas das últimas famílias do pato-mergulhão (Mergus octosetaceus) no Hemisfério Sul. A espécie está criticamente ameaçada de extinção e só vive em águas realmente puras, em locais intocados. Fora da Campo Alegre, só existem patos-mergulhões em algumas áreas do Tocantins e na Serra da Canastra, em Minas.
Para (tentar) criar uma RPPN
As RPPNs são unidades de conservação reconhecidas pela legislação federal e também por alguns estados, como Paraná, Minas Gerais, Pernambuco e Mato Grosso do Sul. Para que fazendas, sítios ou outras áreas sejam reconhecidas como reservas particulares, o proprietário deve procurar o órgão ambiental local (nos estados onde a legislação já foi modernizada), o Ibama ou empresas de consultoria que cobram para encaminhar os processos.
Em seguida, preencher a papelada, requerimentos e termos de compromisso, providenciar cópias de documentos e dar início aos trâmites, que incluem “visitas técnicas”. O reconhecimento da reserva é feito com uma portaria do Ibama ou do órgão estadual.
Como o reconhecimento de uma RPPN é perpétuo, passa de pai para filho, sua implementação acaba trazendo não só benefícios ambientais, mas também econômicos. Há isenção do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), preferência na análise de projetos enviados ao Fundo Nacional do Meio Ambiente e de pedidos de concessão de crédito agrícola, e ainda possíveis parcerias com entidades públicas e privadas para proteção, gestão e manejo das reservas.
A primeira reserva particular do país foi criada em 1990, em Pirenópolis, Goiás. Hoje, já são mais de 700 RPPNs federais e estaduais, num total de 500 mil hectares protegidos.
* Aldem Bourscheit é jornalista em Brasília.
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