O desenho de Mato Grosso tem uma característica singular. No extremo norte do estado, uma ponta em formato de triângulo marca a junção dos rios Juruena e Teles Pires, que entram no Pará já com nome de Tapajós. Justamente ali, entre esses dois importantes rios, o governo federal pretende criar um parque nacional com pouco mais de 1,5 milhões de hectares, envolvendo também parte do Amazonas. A região, ainda quase toda intocada, é considerada de altíssima prioridade para conservação da biodiversidade, com muitas espécies raras ou endêmicas de primatas, anfíbios e répteis, principalmente.
Beleza e importância semelhantes têm uma outra área entre o sul do Amazonas e o norte de Rondônia que também está na lista de prioridades do governo para se tornar legalmente protegida: os campos amazônicos. Trata-se de uma mancha de cerrado no meio da floresta densa, de beleza inquestionável, com flora e fauna muito particulares. Foi o que motivou o Ministério do Meio Ambiente (MMA) a querer criar, em vez de um parque nacional, um refúgio da vida silvestre com 700 mil hectares – categoria de unidade de conservação pouco usada em âmbito federal no Brasil, que prioriza proteção integral de tipos específicos de flora e fauna.
Antes de ser descoberta pelo poder público e por pesquisadores, a exuberância dessas duas áreas atraiu madeireiros, no norte de Mato Grosso, e sojicultores, nos campos amazônicos. Eles estão dispostos a brigar para ocupar estas terras. Na última quarta-feira, cerca de 600 pessoas aguardavam na cidade de Apiacás (MT) o início da primeira consulta pública para a criação do Parque Nacional Juruena, algumas com camisetas estampadas com mensagens do tipo “Não ao Parque”, segundo relata Rodrigo Dutra, chefe do escritório do Ibama de Alta Floresta.
Ameaças ao parque
A consulta acabou não acontecendo porque o representante do Ibama de Brasília, Sergio Brant, se atrasou por causa do mau tempo. Deve ser remarcada só para depois do Carnaval. Mas Dutra, que estava no local desde cedo, diz que madeireiros e os prefeitos da região que estavam reunidos em Apiacás mobilizaram a cidade inteira contra o parque. Segundo um estudo sócio-econômico feito pelo WWF-Brasil e o Instituto Centro Vida (ICV), o município vai perder 48% de sua área para a unidade de conservação. “A gente queria mostrar que a exploração madeireira não está distribuindo melhor a renda. Eles continuam pobres e estão ameaçando uma importante área de floresta”, diz Dutra. Como alternativa econômica, o ICV estima que Apiacás será beneficiada com R$95 mil reais mensais em compensações do ICMS ecológico.
Mas esse argumento ainda parece fraco para o setor, diante da possibilidade de retirar madeira por um tempo razoável quando diversas outras cidades da Amazônia mato-grossense já exauriram suas florestas. Dutra diz que existem pelo menos 200 madeireiras em atividade na área prevista para virar parque. “Não tenho notícias de que essas empresas atuem com autorização para corte lá, então se tiram alguma coisa de lá, é ilegal”, explica Dutra.
Além da madeira, a questão fundiária na área do parque vai ser um problema à parte. Laurent Micol, que dirige o escritório do ICV em Alta Floresta, lembra que um levantamento do Instituto de Terras de Mato Grosso indicou que dois terços da região estão em mãos privadas, com titulação dada na década de 80, mas ainda intocadas. Isso significa algo em torno de 750 mil hectares de floresta virgem. Segundo ele, há também uma área de 128 mil hectares que pertencem ao INSS, dada como pagamento de dívida.
O fato de a região, mesmo cobiçada por desmatadores, estar ainda intocada tem uma explicação simples. Está longe de tudo (suas bordas começam a 100 quilômetros de Apiacás) e a infra-estrutura de transporte é inexistente. Embora existam três grandes proprietários – que juntos têm 170 mil hectares de terras – com intenção de dar partida em atividades econômicas, nenhum deles iniciou qualquer projeto por conta da possibilidade de se criar o parque. E é difícil para eles não contestar a criação do Juruena sem que a questão das suas indenizações esteja definida.
Na área prevista para o parque dentro do estado do Amazonas a situação é diferente. Cláudio Maretti, coordenador de áreas protegidas do WWF-Brasil, não acha que vá haver qualquer problema social local, até porque a área é pequena em relação à porção mato-grossense do parque, e está cercada pelo mosaico de unidades de conservação, criado pelo governo estadual em 2004. No entanto, Lucio Carril, delegado do Ministério do Desenvolvimento Agrário do Amazonas, diz que a área está ocupada irregularmente e, assim que a Justiça der reintegração de posse para a União, o Incra destinar a área para reforma agrária.
Soja nos campos amazônicos
Bem mais preocupante promete ser a criação do Refúgio de Vida Silvestre dos Campos Amazônicos. Para começar, a região é cortada por uma estrada que não está no mapa conhecida como “Rodovia do Estanho”. Antes, ela ligava a Transamazônica, a 150 quilômetros da cidade de Humaitá, até zonas de garimpo no norte de Mato Grosso. Agora serve para chegar a grandes propriedades que já tascaram soja naquela singular região amazônica.
Em 2003, o Ibama identificou pelo menos duas fazendas, com tratores em plena atividade. Na época, foram multadas por desmatamento ilegal. E, embora não se saiba exatamente a área já destruída pelas plantações, a área, desprotegida, é uma porta escancarada para a expansão da fronteira agrícola. “Sabemos que a área do parque está totalmente grilada”, diz a bióloga Rita Mesquita, chefe do departamento de programas especiais da Secretaria de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas.
Segundo a chefia do escritório do Ibama de Humaitá, os sojicultores estão organizados numa associação, e foram à Brasília contestar a criação da unidade de conservação. Na terça-feira, dia 21 de fevereiro, acontece a terceira consulta pública para a criação da unidade. Há quase um ano, ocorreram as duas anteriores. E, desta vez, o governo estadual já avisou que não vai participar. “Fomos avisados em cima da hora, por isso também não fomos a Apuí participar da consulta pública para criação do Juruena. Agora, além da urgência, nossa segurança não está garantida em Humaitá”, revela Rita.
Falta de informação
A surpresa da retomada do processo de criação parque Juruena e do RVS Campos Amazônicos não foi só do governo do estado do Amazonas, mas dos próprios escritórios do Ibama em Humaitá (AM), Juína (MT) e Alta Floresta (MT). O escritório de Humaitá não mandou representante nem para a consulta pública que estava marcada para a última sexta-feira, em Apuí, embora a área esteja sob sua jurisdição “São 400 quilômetros até lá, e com apenas cinco funcionários não temos condições de ir. Ainda mais agora. Soubemos há apenas uma semana dessa consulta”, diz a chefe do Ibama local. O governo estadual também ficou de fora. “Não estamos nem sabendo que a idéia é criar um refúgio da vida silvestre. Até onde fomos informados, é o parque nacional dos campos amazônicos”, diz Rita Mesquita.
Ninguém também tem certeza sobre a proposta atual que o Ibama está apresentando para criar as unidades de conservação. Desde 2004, esse processo está rolando. Inicialmente pensado para ter três milhões de hectares, o governo federal foi obrigado a diminuir a proposta para algo entre 1,8 milhões e 1,5 milhões de hectares porque, em dezembro daquele ano, o governo do Amazonas criou seu mosaico de unidades de conservação, envolvendo a área que seria do Juruena. Mas segundo Laurant Micol, do ICV, o governador de Mato Grosso fez forte oposição ao parque, e o governo federal cedeu. Em meados do ano passado, no entanto, depois dos escândalos da Operação Curupira e com a divulgação dos altos índices de desmatamento em seu estado, Blairo Maggi quis recuperar credibilidade na área ambiental diante do governo federal. Fez acordo com o MMA para assumir a gestão florestal de Mato Grosso e acertaram criar o parque.
O governo do Amazonas chegou a propor que em seu estado, em vez do parque do Juruena, fosse implantado um projeto de assentamento florestal, onde seriam permitidas atividades de manejo e agricultura familiar, sob a administração do Incra. A Assembléia Legislativa de Mato Grosso, por sua vez, propôs que parte da área do parque fosse uma floresta estadual. Os deputados de lá apresentaram a proposta à Marina Silva, embora Blairo Maggi não tenha defendido a idéia como sua. Mas o ministério promete insistir até o final em seu parque nacional. Segundo Maurício Mercadante, diretor do Programa Nacional de Áreas Protegidas do MMA, as duas unidades de conservação estão em estado avançado e, por mais que as consultas estejam acontecendo na mesma época, elas não necessariamente precisam sair ao mesmo tempo. E quanto mais rápido, melhor.
Leia também
Entrando no Clima#41 – COP29: O jogo só acaba quando termina
A 29ª Conferência do Clima chegou ao seu último dia, sem vislumbres de que ela vai, de fato, acabar. →
Supremo garante a proteção de manguezais no país todo
Decisão do STF proíbe criação de camarão em manguezais, ecossistemas de rica biodiversidade, berçários de variadas espécies e que estocam grandes quantidades de carbono →
A Floresta vista da favela
Turismo de base comunitária nas favelas do Guararapes e Cerro-Corá, no Rio de Janeiro, mostra a relação direta dos moradores com a Floresta da Tijuca →