Reportagens

João do lavrado

Passarinho de 10 cm é importante aliado na defesa do lavrado, um ecossistema único de Roraima. Ele só existe lá, em terras indígenas cercadas de arrozais.

Vandré Fonseca ·
9 de março de 2006 · 18 anos atrás

No emaranhado de galhos e cipós das matas de galeria no extremo norte brasileiro, o Synallaxis kollari pula de uma árvore a outra. É um pássaro pequeno, com dez centímetros de altura, primo do joão-de-barro. Quase todo marrom, tem um detalhe que chama a atenção: a penugem grisalha na garganta. A característica serviu para dar o nome popular ao Synallaxis. É o joão-de-barba-grisalha.

Com asas curtas, não se atreve a grandes vôos. Prefere a proteção e a umidade das matas ciliares, onde encontra gravetos para construir o ninho, além de insetos e larvas para se alimentar. Mas a faixa de floresta que acompanha os rios, da qual ele depende, está sendo destruída pelas lavouras de arroz de Roraima. Só lá existe o joão-de-barba-grisalha. Mais especificamente no lavrado.

O lavrado é uma relíquia ecológica. Trata-se de um remanescente da grande savana amazônica que existia há milhares de anos e, com tempo, cedeu espaço à floresta. Foi por causa da ameaça ao passarinho que o lavrado entrou na lista das 595 áreas cuja preservação evitaria uma crise mundial de extinção de espécies. O estudo, que ganhou o nome de “Aliança pela Extinção Zero” (Alliance for Zero Extinction, AZE, em inglês), foi publicado em dezembro de 2005 e leva a assinatura de 52 organizações ambientalistas de todo o mundo.

João e seu ninho

O joão-de-barba-grisalha é conhecido pelos cientistas desde o século XVIII. Ele foi descrito em 1856, com base em exemplares coletados na região do Forte São Joaquim, em Boa Vista, capital de Roraima. Mas deixou de ser avistado por muito tempo, e os pesquisadores que passaram a acompanhá-lo nos últimos anos temem perdê-lo para sempre.

“Como a agroindústria na região tem aumentado de forma bastante acelerada, as matas de galeria, que são o único hábitat da espécie no planeta, correm sério risco de desaparecer. E conseqüentemente o S. kollari também”, afirma o ornitólogo Marcos Pérsio Silva Dantas, da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

O joão-de-barba-grisalha já esteve na lista de espécies em extinção do Brasil. Mas por falta de informações sobre ele, acabou saindo. Agora deve voltar à relação. “Na próxima lista, ele deve constar como espécie vulnerável, devido à ameaça ao seu habitat”, afirma o ornitólogo Mário Cohn-Haft, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

O passarinho pertence à família Furnariidae, que só ocorre na América Latina, do México à Argentina. No Brasil, existem 102 espécies conhecidas de Furnariidae. Normalmente eles são chamados de joão. É o caso do joão-de-barro (Furnarius rugus) e do joão-teneném (Synallaxis spixi).

Assim como os primos famosos, o joão-de-barba-grisalha é um hábil construtor. Para chocar os ovos, o casal constrói um ninho de 35 mm de diâmetro externo, com uma câmara interna de 10 cm de diâmetro e 11 cm de profundidade. O acesso a esta câmara é feito por túnel inclinado a 45º. Para fazer a estrutura, os passarinhos usam ramos da “erva de passarinho”, uma trepadeira comum na região.

O ninho de Synallaxis kollari foi identificado pela primeira vez pela bióloga Mariana Vale, que faz doutorado na Duke University, Carolina do Norte (EUA). Ela o encontrou na margem direita do Rio Uraricoera, zona rural de Boa Vista, capital de Roraima. “Não chegamos a observar filhotes. Acreditamos que o ninho tenha sido abandonado pelo casal”, afirma a pesquisadora, que está no Estados Unidos preparando a tese de doutorado para publicação. O encontrou foi descrito em um paper publicado em agosto de 2004.

Marcos Pérsio Dantas Silva, da UFPI, também teve um encontro com o S. kollari. Durante a preparação de seu estudo de doutorado, que aumentou o número de pássaros conhecidos em Roraima de cerca de 400 para mais de 700, ele atraiu um casal de barbas-grisalhas com um play-back. O registro foi feito sob a ponte da BR-174 (entre Boa Vista e a Venezuela) que atravessa o rio Uraricoera, a alguns quilômetros de onde Mariana Vale encontraria o ninho meses depois.

Ao longo do Uraricorera até as regiões mais ao sul, quando as matas ciliares da savana são substituídas pela floresta, vive outro pássaro ameaçado e pouco conhecido de Roraima, o xororó do Rio Branco (Cercomacra carbonaria). O xororó também fica nas matas perto dos rios, mas ao contrário do joão-de-barba-grisalha não se limita ao lavrado. Ele pode ser visto no Baixo Rio Branco, em plena floresta. O interessante, segundo Mariana Vale, é que a partir de algumas centenas de metros da margem do rio, ele não é mais visto. Em seu lugar, é encontrada outra espécie do mesmo gênero.

O lavrado

O Uraricoera é um dos principais rios de Roraima. Nasce na Terra Indígena Yanomami, na fronteira com a Venezuela, e desce em direção ao leste, repicando em dezenas de cachoeiras até chegar à região plana do lavrado. Alguns quilômetros abaixo de onde Mariana Vale encontrou o ninho, o Uraricoera se junta ao Itacutu — que nasce na fronteira com a ex-colônia inglesa República da Guiana — para formar o rio Branco, que deste ponto corta todo o estado até desembocar cerca de 500 quilômetros ao Sul, no rio Negro. O vértice deste enorme Y fica no coração do lavrado.

Em muitos aspectos parecido com o cerrado do Brasil Central, o lavrado tem características únicas. Estes campos naturais são compartilhados por Roraima e Guiana. É uma região de árvores com galhos retorcidos e folhas grossas. Os rios são acompanhados por matas de galeria e extensos buritizais.

É também uma região mais seca do que a floresta. Enquanto no lavrado chove em média 1.600 mm por ano, na floresta a chuva anual chega a 2.500 mm. Diferença provocada pela formação Roraima, cadeia de montanhas que impede a entrada da umidade do Caribe no norte da Amazônia. Quando os ventos chegam aos campos naturais de Roraima, já deixaram a maior parte da umidade nas encostas das serras da Guiana e da Venezuela.

Em comparação com o cerrado, no lavrado existem muito mais buritis, mais banhados e mais árvores. Várias espécies arbóreas dali não podem ser encontradas no Planalto Central. Como explica o ecólogo Reinaldo Imbrózio Barbosa, do Instituto Nacional de Pesquisas Amazônicas (Inpa) em Roraima, no lavrado são mais comuns espécies pioneiras, com sementes pequenas, transportadas por pássaros.

O lavrado é uma região importante para a história e para a economia de Roraima. Graças aos campos naturais, chegaram as primeiras cabeças de gado. Hoje, as fazendas de soja, milho e arroz que se multiplicam na paisagem despertam interesse de empresários e políticos para o potencial agrícola do estado.

Índios e arrozeiros

Mas, em número bem maior do que os fazendeiros, no lavrado também vivem índios, principalmente os Macuxis e Wapichanas. É lá que fica a Raposa Serra do Sol, terra indígena com mais de 16 mil quilômetros quadrados. A área é alvo de contestação por parte de arrozeiros, que começaram a se instalar na região na década de 1990.

Para os fazendeiros e políticos de Roraima, índios e ambientalistas estão unidos para impedir o desenvolvimento econômico do estado. As terras indígenas são apontadas como um entrave para o avanço do agronegócio. A idéia de substituir os campos naturais, que pouco produzem, por soja é tudo o que vislumbram para o futuro.

Para os arrozeiros, os rios da Raposa Serra do Sol são ideais para a produção. A região é quente e o aproveitamento das margens permite a colheita duas vezes por ano. As fazendas ocuparam margens dos rios Cotingo, Itacutu, Maú e Uraricoera, os principais do norte de Roraima e onde vive o S. kollari. Para os índios ligados ao Conselho Indígena de Roraima (CIR), os fazendeiros são invasores, responsáveis pela destruição das matas e envenenamento dos rios com agrotóxicos.

Os índios nunca deram muita importância para o joão-de-barba-grisalha. Preferem caçar mutuns, capivaras, cotias e veados que se escondem nas matas do lavrado. “Normalmente, quando a ave não é muito frondosa nem tem algum uso específico, não recebe nome pelos índios”, afirma o ornitólogo Mário Cohn-Haft, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

Mas agora que o passarinho pode ser um argumento a mais contra o avanço das fazendas de arroz, o joão-de-barba-grisalha começa a ficar conhecido entre eles. Quando esteve em Roraima, Mariana Vale deixou uma coleção de três livros com centenas de espécies de Roraima e da Venezuela. Foi uma semente deixada para convencer os índios a se engajarem na preservação dos pássaros do lavrado. Os livros ainda estão com o coordenador de projetos do CIR, o macuxi Gecimar Morais Malheiro, que mantém na gaveta um projeto para fotografar pássaros da região e comparar com os registros dos livros.

“Antes a gente via muitos pássaros na região, agora não tem mais. Pensei que eles estavam desaparecendo e ninguém ia ver mais”, afirma o índio. “A gente quer preservar tanto os passarinhos quanto os animais aquáticos. Mais do que uma intenção minha, é o povo que defende a preservação”, completa.

Para Mariana Vale, o engajamento dos índios na defesa do pássaro é fundamental, pois metade da área onde o joão-de-barba-grisalha vive faz parte de Terras Indígenas. “Qualquer decisão sobre a mata ciliar, para manejo ou manter intacta, deve considerar a decisão das comunidades”, afirma a pesquisadora.

* Vandré Fonseca é jornalista formado em São Paulo, há oito anos vivendo na Amazônia. Após sete anos em Roraima, trabalhando para a TV Roraima e jornais de movimentos populares, mudou-se para Manaus. Atualmente, é repórter da TV Amazonas.

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