Reportagens

Pode pôr pó?

Em Vitória, dois bairros nobres vivem às voltas com um pó preto e brilhante lançado por sete usinas da Vale do Rio Doce. E a empresa quer construir a oitava.

Fernanda Couzemenco ·
23 de março de 2006 · 18 anos atrás

Estou pra conhecer quem, no Espírito Santo, tenha mais motivos para se sentir aliviado com o vento sul do que os moradores de duas pequenas e luxuosas ilhas da capital. Nos raros dias do ano em que o “suel” dá as caras, eles ficam livres do pó preto e brilhante que o vento nordeste traz ao passar pelo Complexo de Tubarão, onde estão instalados os portos de Tubarão e de Praia Mole e as companhias Siderúrgica de Tubarão (CST) e Vale do Rio Doce (CVRD, um dos patrocinadores deste site).

Entre o emissor e o receptor, apenas a baía de Vitória, cujo calçadão tem menos de 6 km de comprimento. Impressionante ver o gráfico com a dinâmica dos ventos. O nordeste, que predomina absoluto na costa capixaba, forma um cone que leva a poluição diretamente para as duas ilhas, sem nenhum desvio, nenhum obstáculo.

É provavelmente uma das poucas exceções à regra da distribuição geográfica da poluição no mundo, já batizada de Racismo Ambiental, em que geralmente as áreas periféricas das cidades acumulam os maiores problemas. A Ilha do Boi e a Ilha do Frade formam a maior concentração de mansões com piscina da Grande Vitória, endereço de boa parte dos ricos e poderosos do estado. No entanto, apesar de bem-informados, bem-relacionados e bem-posicionados financeiramente, os moradores nunca conseguiram resultados de peso na briga contra a poluição.

É claro que as chaminés de Tubarão já despejaram muito mais gases na atmosfera. As usinas mais antigas, instaladas há quase 40 anos, só continuam operando dentro da lei porque receberam, ao longo do tempo, sucessivos investimentos em controle ambiental. Mas a exigência foi sempre do mercado internacional, que precisa respeitar os padrões definidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Os anseios locais não costumam receber a mesma atenção.

Paulo Esteves, da Sociedade Amigos e Moradores da Ilha do Frade (Samifra), conta que o maior avanço, em todos os anos de relacionamento entre a entidade e as empresas, se deu na virada do milênio, quando foi assinado um convênio em que a Vale se comprometia a investir em pesquisas para descobrir e combater as principais fontes de emissão de poeira produzidas em Tubarão. Em 2002, saía a primeira conclusão dos estudos: mais de 80% do pó preto que chega às ilhas, chamado tecnicamente de Partículas Sedimentáveis (PS), é composto do ferro gerado no atrito entre as pelotas produzidas pela Vale. Um novo estudo concluído em 2005 baixou a participação das pelotas para 60%, mas não as tiraram do centro das atenções.

Até então, acreditava-se que as grandes vilãs eram as montanhas de minério de ferro movimentadas pelas duas multinacionais. Veio daí a inspiração para o refrão “Eu cheiro pó, pó / Pó de minério”, entoado pela extinta banda roqueira Noz Moscada em meados da década de 90 no circuito alternativo da cidade.

Mas dar nome certo ao inimigo não serve de muita coisa se os ataques continuam firmes e fortes. Obedecendo ao convênio, dois anos depois da conclusão do primeiro estudo a empresa anunciava a criação do “supressor de pó”, espécie de spray parafinado, que cria uma película protetora sobre as pelotas para reduzir a emissão de poeira. Só que na vida dos moradores não foi possível sentir melhora alguma. Provavelmente, devido aos sucessivos aumentos de produtividade da empresa. Resultado: as PS continuam brilhando sobre as piscinas, carros, chão, móveis e paredes, seja na parte externa ou interna das residências.

Cotidiano empoeirado

A sujeira se forma em questão de horas. Uma mesa limpa à tardinha estará coberta de poeira preta no café da manhã do dia seguinte. Crianças pequenas, naquela idade em que levam tudo à boca, acabam comendo a poeira que gruda nas mãos ao engatinhar. Nas paredes externas, especialmente as brancas, bastam alguns meses sem uma mão de tinta para ver a diferença entre a parte mais próxima do telhado, com a inconfundível mancha de pó de ferro, e, alguns centímetros abaixo, o branco lavado pela chuva.

A Vale anuncia que sua nova ofensiva contra o pó das pelotas deve ser, seguindo o exemplo de outros países, enclausurar os trechos descobertos das esteiras onde elas são transportadas, das usinas até o porto. Esse e outros investimentos em controle ambiental integram seu projeto de expansão industrial. Vem aí a oitava usina da empresa na região.

O licenciamento ambiental para as obras está em curso. Desde o início do mês, a população tem sido informada, por meio das audiências públicas e da imprensa, que, pasmem, o aumento de 45% na produção de pelotas vai gerar acréscimo insignificante na poluição.

Cabe ao Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) exigir que, no mínimo, as coisas fiquem como estão. Mas o órgão ambiental parece não ter força política suficiente para exigir mais da CST e da Vale, as maiores empresas do mundo em produção de semi-acabados de aço e em exportação de minério de ferro, respectivamente. Com equipamentos e mecanismos de controle ambiental há muito tempo à sua disposição, e acumulando lucros recordes nos últimos três anos, a Vale poderia, prestes a aumentar sua produção, investir na redução do volume total de poluição empurrado goela abaixo dos capixabas.

Volume, aliás, desconhecido pela população. Incrivelmente, até hoje não se sabe quantas toneladas de poeira são lançadas diariamente na atmosfera da Grande Vitória. Muito menos se conseguiu dimensionar o tamanho do impacto desses poluentes na saúde das pessoas. Duas perguntas elementares, que, com licença para o trocadilho, continuam “no ar” há décadas.

E a saúde, como vai?

Para a primeira, certamente já há resposta, mas as empresas preferem não divulgar. Na audiência do dia 6 de março, em Vitória, o representante da Vale, Luis Soresini, fingiu confundir “índice” com “volume total em toneladas” e não respondeu ao questionamento desta repórter. Nos dias subseqüentes, a assessoria de imprensa também desconversou, mesmo após insistentes telefonemas e mensagens de correio eletrônico.

Quanto às relações entre poluição do ar e saúde, o problema é o número insuficiente de pesquisas científicas. A lacuna é tamanha que até hoje os poluidores se apóiam no mito de que as PS não afetam a saúde, por serem grandes demais para serem absorvidas pelos alvéolos pulmonares. Não existe sequer padrão no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) para elas.

Fátima Detoni, engenheira sanitarista da Secretaria Estadual de Saúde (Sesa), rebate a tese veementemente: “Toda poluição do ar afeta o sistema respiratório. As PS não são inaladas, mas são retidas na mucosa nasal, podendo provocar crises de asma e alergia, por exemplo”. Marilza Celin, presidente da Associação de Moradores da Ilha do Boi, que o diga: “Minha filha vive congestionada e eu sofro de faringite alérgica. Não posso provar, mas acho que é por causa do pó”. E Fátima arremata: “Não é preciso esperar que se prove a relação entre PS e doenças, é preciso reduzir a poluição já”.

Como isso não deve acontecer tão cedo, resta aos pesquisadores melhorar a quantidade e qualidade dos estudos. Em setembro, a OMS reunirá especialistas para rever os padrões atuais de poluição do ar. A tendência é apertar o cerco e baixar os índices máximos permitidos. Outra novidade promete ser a criação de um padrão para as PM2,5. Trata-se de um tipo de partícula inalável muito pequena, mais nociva do que as PM10, quatro vezes maiores.

Antes disso, em território brasileiro, dois eventos também devem agitar o meio científico. Em abril, será lançado oficialmente, em Brasília, o Programa de Vigilância em Saúde e Qualidade do Ar (VigiAR). Fátima Detoni, que é coordenadora estadual do VigiAR, diz que o Brasil está saindo na frente. “É o primeiro país a estabelecer um programa nacional integrando órgãos de meio ambiente e saúde para dimensionar o impacto da poluição sobre problemas respiratórios”, define. Em agosto, durante o XI Congresso Mundial de Saúde Pública, no Rio de Janeiro, serão apresentados os resultados de dois estudos epidemiológicos feitos pelo VigiAR em Vitória, considerando gases e partículas inaláveis medidos pela Rede Estadual de Monitoramento.

De sua parte, a população continua protestando e fazendo arte inspirada no pó. Está chegando a décima edição do projeto “A Vale, a Vaca e a Pena”, em que o artista plástico Kleber Galvêas protesta contra a poluição em telas, artigos e poesias. Todos os anos, desde 1997, ele deixa uma tela virgem exposta ao pó durante 50 dias, em seu ateliê. Depois, no dia 6 de maio, véspera do aniversário de privatização da Vale, desenha com o dedo algum tema sobre poluição, passa selador e verniz e expõe em galerias, feiras e internet.

Anos atrás, ao expor os quadros numa audiência pública na Câmara de Vereadores de Vitória, Kleber fez os representantes da Vale reconhecerem que o famigerado pó preto e brilhante tinha ferro. Levou, numa folha de papel, um pouco do pó usado no desenho e, ao passar um ímã de geladeira por baixo da folha, fez a poeira “dançar” e os queixos dos presentes, despencar. Independente de novas revelações bombásticas esse ano, o lançamento do projeto, classificado como uma “provocação artística” por Kleber, é sempre uma boa oportunidade de renovar a indignação. Sem perder o bom humor.


* Fernanda Couzemenco é jornalista no Espírito Santo.

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