Reportagens

Mosquitos saudáveis

Cientistas brasileiros e americanos criam insetos transgênicos que não transmitem dengue e malária. Agora será preciso pesquisar seus efeitos na natureza.

Marina Lemle ·
5 de abril de 2006 · 18 anos atrás

A introdução na natureza de dois mosquitos transgênicos recém-criados em laboratório pode inibir a propagação da dengue e da malária, doenças que vitimam milhões de pessoas por ano no mundo.

No último mês, cientistas anunciaram o desenvolvimento de um Aedes aegypti imune à dengue e de um Anopheles spp resistente à malária. A idéia é que, ao inserir os insetos modificados num habitat natural, eles se reproduzam e se estabeleçam, levando à extinção ou à diminuição significativa dos mosquitos originais, transmissores das doenças. O problema é que não se sabe ao certo que conseqüências tais interferências podem acarretar. A polêmica está lançada, no mundo acadêmico e entre ambientalistas.

A edição de 14 de março da revista Proceedings of the National Academy of Sciences, da Academia Nacional de Ciências dos EUA, traz artigo de Ken Olson, Anthony James e colaboradores anunciando a obtenção de um Aedes aegypti resistente ao vírus da dengue tipo 2, o causador mais freqüente da doença.

A novidade empolgou o biólogo molecular Elói de Souza Garcia, ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e membro da Academia Brasileira de Ciências. “Os mosquitos que sobreviveram à transformação gênica foram capazes de se reproduzir e estabelecer colônia em laboratório, tornando-se assim uma ferramenta genética e uma estratégia importante para o controle da dengue, doença que afeta aproximadamente 50 milhões de pessoas por ano, e mata cerca de 20 mil, em todos os continentes. A sociedade deve começar a avaliar os resultados e impactos da liberação de insetos transgênicos na natureza”, defende Garcia, que é superintendente de Desenvolvimento Científico da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado do Rio de Janeiro.

Desde a década de 90, cientistas de diversas partes do mundo vêm desenvolvendo metodologias para modificar o genoma de mosquitos, inserindo genes artificiais ou de outros seres vivos. No caso da dengue, para que a doença seja transmitida é necessário que o vírus infecte as células do intestino do Aedes aegypti. Explorando características do processo de multiplicação do vírus da dengue nas células do inseto, pesquisadores do Colorado e da Califórnia, autores do estudo, conseguiram produzir uma linhagem de mosquitos geneticamente modificados resistentes ao vírus.

Os pesquisadores clonaram parte do RNA do vírus, utilizando-o para produzir um gene artificial. Então inseriram esse material genético em embriões do mosquito. O gene aciona um mecanismo de defesa nas células do mosquito que faz com que elas, ao serem infectada com o vírus, imediatamente reconheçam o RNA duplicado e o destruam. Assim interrompem o processo infeccioso e portanto a transmissão da doença.

O grande sucesso da experiência está no fato de que os descendentes dos embriões transformados também apresentaram o RNA modificado e ficaram altamente resistentes à infecção da dengue. A transmissão do material genético para a prole significa que disseminação dessa variante de mosquito na natureza é uma possibilidade real.

Veneno de abelha

Esta semana, pesquisadores do Laboratório de Malária do Centro de Pesquisa René Rachou (CPqRR), unidade da Fiocruz em Minas Gerais, anunciaram a criação de um mosquito transgênico do gênero Anopheles spp., transmissor da malária. O mosquito – o primeiro geneticamente modificado na América Latina – é resistente à infecção pelo protozoário Plasmodium spp, parasita da doença. A pesquisa representa o primeiro passo em busca de uma nova estratégia para bloquear a propagação da malária.

Em parceria com pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, dos EUA, a equipe mineira introduziu no genoma do mosquito uma forma modificada da proteína fosfolipase A2, retirada do veneno de abelhas, que funciona como uma vacina contra a malária no inseto, impedindo o desenvolvimento do parasita em seu organismo. Com essa interferência genética, feita através de microinjeção em embriões, os mosquitos passaram a produzir a enzima protetora por conta própria. A técnica de ponta foi financiada pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

A malária (ou paludismo) é a doença tropical e parasitária que mais causa problemas sociais e econômicos no mundo, só superada em número de mortes pela Aids. É considerada problema de saúde pública em mais de 90 países, onde 2,5 bilhões de pessoas (cerca de 40% da população mundial) convivem com o risco de infecção. Só na África, cerca de 400 milhões de pessoas são infectadas por ano, das quais 1 milhão morre. No Brasil, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) registrou 591 mil casos de malária em 2005.

De acordo com o pesquisador Luciano Andrade Moreira, coordenador do projeto no CPqRR, nesta primeira fase foram gerados mosquitos transgênicos da espécie Aedes fluviatilis, vetor da malária aviária, causada pelo Plasmodium gallinaceum. Além de ser mais seguro, uma vez que não há risco para as pessoas, é mais fácil obter o ciclo completo deste parasita em laboratório. “Já possuímos uma criação de mosquitos transmissores de malária humana, da espécie Anopheles aquasalis. Esperamos em seis meses obter as primeiras larvas transgênicas desta espécie”, diz Moreira. O trabalho é parte da tese de doutorado de Flávia Guimarães Rodrigues, aluna de Moreira.

Futuramente, os pesquisadores pretendem alimentar os mosquitos transgênicos com sangue de pacientes com malária, para confirmar a inibição do desenvolvimento do parasita. Moreira acredita que ainda serão necessários no mínimo dez anos para se ter certeza de que estes insetos podem ser introduzidos no campo, onde se misturariam aos mosquitos comuns e transmitiriam aos seus descendentes genes antimalária.

O mosquito transgênico foi recebido como alternativa promissora de combate à doença, já que não há vacina eficaz contra malária e o protozoário parasita tem se mostrado resistente aos medicamentos, assim como o mosquito aos inseticidas.

A questão agora é estudar os riscos ao meio ambiente.

Competição

Desde que surgiu o primeiro mosquito transgênico, um Aedes aegypti criado em 1998 nos Estados Unidos, nunca foram realizados testes na natureza.

Para Elói Garcia, esse tipo de manipulação da transgenia, voltada para o bloqueio do desenvolvimento do vírus ou do parasita, não representa perigo potencial. “No entanto, experimentos controlados precisam comprovar essa minha opinião. Não se sabe, por exemplo, qual a viabilidade desses insetos quando liberado na natureza. Há pesquisadores que acreditam que o melhor transgênico é o feito pela natureza nos milhões de anos do processo evolutivo. Numa competição com os insetos produzidos no laboratório, os ‘selvagens’ seriam mais ‘adequados’ para as condições naturais”, diz.

Segundo Pedro Lagerblad de Oliveira, coordenador do Instituto Virtual da Dengue do Estado do Rio de Janeiro, muitos cientistas conceituados acham que a introdução de mosquitos transgênicos na natureza para controlar a disseminação de doenças nunca vai funcionar. Ele, entretanto, acredita que a tática pode dar certo. “Mesmo que o novo mosquito não extinga o outro, poderá diminuir as taxas de transmissão. Se a estratégia funcionar, o custo será mínimo, uma vez que o mosquito se espalha. É uma questão de sobrevivência crucial para países africanos, por exemplo, onde o investimento em saúde por habitante é de dez dólares por ano, mal garantindo a vacinação antipólio”, afirma.

Antes disso, entretanto, ele defende a ampla realização de testes. “No caso da malária, uma idéia em discussão é um teste de campo numa ilha onde a doença seja endêmica. Espalharia-se o mosquito e, caso algo desse errado, a extinção seria factível com inseticida”, diz.

Lagerblad de Oliveira, que é professor do Departamento de Bioquímica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, não nega a existência do risco, mas diz que ele não é maior do que o da introdução de uma espécie exógena num ecossistema, podendo se tornar vetor de outra doença. “É um problema novo. É preciso pensar em que testes fazer e fazê-los”, defende.

* Marina Lemle é jornalista especializada em ciência e tecnologia. Trabalha na ong Viva Rio e colabora para os sites No Mínimo e SciDev.Net.

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