Reportagens

Guardião infrator

Pessoas que mantêm animais silvestres em casa podem ser nomeadas guardiões da fauna, segundo proposta do Ibama ao Conama. Ambientalistas contestam a medida.

Aline Ribeiro ·
4 de maio de 2006 · 18 anos atrás

Uma proposta do Ibama ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) pode nomear como “guardião” uma pessoa que mantêm animais silvestres em casa adquiridos de forma ilegal. Trocando em miúdos, um bicho flagrado sem licença do instituto terá chances de continuar com o dono em vez de ser apreendido. A medida despertou revolta em ongs e ambientalistas. Eles acreditam que a iniciativa é uma forma de o Ibama se isentar do dever de conseguir um destino apropriado aos animais em situação irregular. A Renctas, uma das mais importantes redes de combate ao tráfico de animais silvestres do país, está à frente da discussão e considera a proposta “o maior atentado já realizado contra a biodiversidade brasileira”.

Segundo o diretor de Fauna e Recursos Pesqueiros do Ibama, Rômulo Mello, o benefício só seria concedido em última instância, depois de rigorosa análise técnica do caso. “Se o animal não tiver condições de ser re-introduzido na natureza ou não encontrarmos um local apropriado para destiná-lo, aí sim permanece na casa em que foi achado. Desde que seja avaliado que está recebendo os cuidados necessários”, afirma. Outro fator que contribuiria para a decisão é a ligação emocional que o animal tem com seu dono. “Em muitos casos, a separação é ruim tanto para o animal quanto para a pessoa. O hábito de criar bichos silvestres em casa é ancestral, foi herdado dos índios. Não podemos continuar confundindo gente idônea com traficante.”

De acordo com a Lei de Fauna, quem cria animais silvestres em casa sem licença do Ibama está cometendo crime ambiental. Apesar de ilícito, mais de 5 milhões de pessoas (quase 3% da população brasileira) encontram-se nesta situação, segundo Mello. Ele reconhece que o instituto não teria estrutura suficiente para dar o destino correto a esses animais. “Se fôssemos apreender, encheríamos os centros de triagem e teríamos bichos maltratados.” O Ibama conta hoje com 55 locais onde os animais recebem os primeiros cuidados antes de ser encaminhados para zoológicos ou soltos na natureza. Outros 11 prédios estão sendo construídos em diferentes regiões do Brasil e mais 13 serão reformados. “Ainda não é suficiente”, admite o diretor.

Ponto de vista

O coordenador-geral da Renctas, Dener Giovanini, diz que a proposta quer relativizar a lei. “Se é crime ambiental ter animais em casa, não podemos abrir exceções. É proibido pra todo mundo. Não temos de separar quem tem boas ou más intenções.” Para ele, a medida é uma forma de o Ibama se abster da responsabilidade de cuidar da fauna brasileira. “É um desastre ambiental. Em vez de resolver o problema, varrem tudo para debaixo do tapete.”

Pela proposta, cada cidadão terá direito de criar dois animais em casa, mesmo depois de autuado pelo Ibama por manter os bichos sem licença. Giovanini compara a situação com a de um traficante de drogas que, depois de flagrado pela polícia, tem a opção de ficar ou não com os entorpecentes. “Isso é juridicamente inaceitável, uma forma de abrir as portas para o tráfico de animais”, destaca.

Como soluções para o problema, Giovanini aponta que o Ibama deveria concentrar esforços em campanhas de conscientização da população, a fim de inibir a prática. “Eles precisam mostrar para as pessoas que manter animais silvestres em casa é sinônimo de riscos. O macaco, por exemplo, pode transmitir doenças como raiva e febre amarela.” Segundo ele, o instituto ainda deveria investir na fiscalização. “Eles têm é de correr atrás dos grandes traficantes, das cerca de 450 quadrilhas especializadas em tráfico de espécies silvestres no Brasil.”

Uma pesquisa realizada pelo Ibope no ano passado, a pedido da Renctas, mostra que 84% da população sabem que é proibido manter animais silvestres em casa. O mesmo estudo mostra que 72% dos brasileiros consideram a prática errada. “O Ibama deveria aproveitar essa consciência e investir na educação. Mas não, preferem privilegiar meia dúzia de traficantes”, aponta Giovanini. Sobre a relação de afeto do dono com o animal, mais uma vez o coordenador rebate. “Estão usando o sentimentalismo para encobrir a incapacidade de solucionar o problema. Pode até haver uma dependência, mas isso não justifica o não cumprimento da lei.”

Segundo a Renctas, mais de 38 milhões de animais silvestres são retirados da natureza todos os anos no Brasil. Desses, apenas 10% chegam a ser comercializados, sendo que o restante morre durante o transporte. “Muitos recebem espécies de calmantes para não chamar a atenção das pessoas. Acabam não resistindo. São animais que poderiam deixar descendentes e contribuir para a preservação do meio ambiente”, diz Giovanini. “É preciso que a população entenda que, para cada um animal comprado de forma irregular, outros nove morreram.”

Disparate

Na opinião de Giovanini, outro absurdo da proposta é delegar a qualquer órgão do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) o poder de nomear cidadãos como “guardiões da fauna”. Isso significa que órgãos ambientais federais, estaduais e municipais poderiam conceder o título. “Como o Ibama vai fiscalizar os mais de sete mil órgãos do Brasil? Para mim, em ano eleitoral, esta é uma ótima oportunidade para a compra de votos. O cidadão chega no comitê eleitoral com sua gaiolinha e recebe a promessa de que, se o candidato for eleito, ele vai se transformar num guardião.”

Marcelo Pavlenco Rocha, da ong S.O.S Fauna, também considera a proposta do Ibama “absurda”. Como o texto não exige a marcação dos animais com anilhas, por exemplo, as facilidades para o tráfico seriam inúmeras. “Eu compro cinco papagaios na feira do rolo, sou flagrado e multado pelo Ibama e, em seguida, me permitem ficar com os animais. Aí eu vendo esses cinco papagaios e compro outros cinco. Como o instituto vai saber que os que eu tenho em casa são os mesmos? Ninguém vai fazer DNA nos bichos, porque custa mais de 300 reais cada teste.” A proposta apresentada ao Conama exige somente que os animais mantidos pelos “guardiões” sejam fotografados, o que não alivia a situação do Ibama perante os ambientalistas. “É praticamente impossível identificar o bicho pelas características físicas. Um absurdo do ponto de vista técnico e ético. Nem mesmo especialistas conseguiriam tamanha façanha”, reforça o diretor da Renctas.

Rocha coloca outra situação que questiona a eficácia da proposta. “Eu compro um papagaio sem licença a 100 reais. O Ibama vai até a minha casa, me faz pagar multa de 500 reais. Até aí gastei 600. Se fosse comprar o bicho numa loja autorizada, pagaria 1.500 reais. Cometo uma prática ilegal e ainda saio no lucro de 900 reais.” O diretor de Fauna do Ibama, Rômulo Mello, contesta. “Esse raciocínio não é correto, já que o dono não tem garantia alguma de que vai ficar com o animal. O título não será concedido aleatoriamente. Analisaremos caso a caso.”

A concessão do título de “guardião da fauna”, mesmo ainda não aprovada pelo Conama, é uma prática já adotada em casos pontuais. Mello lembra que, em São Paulo, uma senhora de 65 anos conseguiu um parecer jurídico para continuar com a sua arara em casa – um presente dado pela filha já falecida. “Queremos que esse parecer seja transformado em norma e passe a valer em todo o país”, explica.

Desde 2004, representantes de ongs e órgãos ambientais discutem no Conama a criação do termo “guardião da fauna”. A Renctas havia sido convidada, mas não participou dos encontros por acreditar que a proposta vai contra os princípios da instituição. O texto encaminhado pelo Ibama em outubro de 2005 foi aprovado pela Câmara Técnica de Biodiversidade do conselho e desde março se encontra na Câmara Técnica Jurídica. Se for aceito, será encaminhado ao plenário do Conama – última instância antes de virar resolução e entrar em vigor.

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