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Sojicultores de Santarém rejeitam a pecha de grileiros e dizem que nunca derrubaram uma árvore. Estudo de funcionário do Ibama mostra cenário bem diferente.

Manoel Francisco Brito ·
11 de maio de 2006 · 18 anos atrás

No Sindicato dos Produtores Rurais de Santarém, Pará, o clima entre os seus diretores varia da indignação ao estupefato em relação ao fato do Greenpeace ter escolhido o desmatamento causado pelo avanço da fronteira agrícola em Santarém como um dos dois palcos primordiais – o outro é a Papua-Nova Guiné, na Ásia – de sua Campanha de Florestas deste ano. Eu estive lá no fim da tarde de terça-feira e confesso que bati na porta com um pé atrás. Tinha a informação que a equipe de reportagem da TV Globo que passou por lá a cerca de dez dias para entrevistar sua diretoria sobre os efeitos da presença da soja no município tinha se sentido intimidada. No meu caso, devo reconhecer que fui muitíssimo bem tratado. Apesar de ter chegado sem aviso, fui imediatamente recebido pelo seu presidente, Adinor Batista dos Santos, e outros três diretores, que se esmeraram em não deixar nenhuma de minhas perguntas sem resposta.

Um deles, aliás, o vice-presidente João Clóvis, adiantou-se e foi respondendo antes mesmo que eu perguntasse qualquer coisa. “Essa campanha contra nós”, diz ele, “é absurda. Nunca derrubamos uma árvore em área de mata”. Santos, o presidente, reitera a afirmação: “só plantamos em áreas que já foram há muito antropizadas”. Marcio Cesaroto, gaúcho e outro dos diretores, garante que não compensa plantar sobre área de floresta. “Se você me der um terreno de graça com floresta em cima, eu não quero”, insiste. Clóvis conta que o plantio da soja em Santarém e no município vizinho de Belterra começou em 1998, mas foi precedido por um relatório encomendado a consultores pela prefeitura local em 1993. Foram, segundo ele, feitos diversos estudos, entre eles um que apontava para o potencial agrícola do solo plano que forma o chamado planalto santarino.

O trabalho identificou o potencial para o plantio de grãos numa área de 600 mil hectares que passaram por ciclos sucessivos de desmatamento desde a chegada à região, em 1637, do português Pedro Teixeira, segundo colonizador a fincar raízes por ali depois dos índios Tapajós. “O plantio foi incentivado pela chegada à região de produtores vindos do Sul e do Mato Grosso”, diz Clóvis. Com o porto da Cargill, a expansão da agricultura se consolidou. “Mas ainda há muito para crescer. Estamos usando apenas 80 mil hectares, 60 mil para arroz e milho e 20 mil para a soja”. O ciclo agrícola em Santarém e Belterra vai de janeiro a junho e permite dois plantios por ano. Primeiro vem o arroz. Em abril, ele começa ser colhido em processo simultâneo com o plantio da soja, cuja colheita acontece lá para junho. Clóvis chama a atenção para essas datas. Acha que elas indicam a razão pela qual a soja da região virou alvo do Greenpeace.

“Essa campanha é movida pela ameaça que representamos para a soja americana. A nossa chega ao mercado justamente antes da safra deles, ocupando seu espaço”, diz. Lembro que a Cargill é americana e que se a situação fosse realmente de guerra comercial entre nações, ela nem deveria estar por aqui. “Mas ela não planta. Não tem interesse direto nesse jogo”. Os diretores do sindicato insistem também que além de não desmatarem, nunca se utilizaram de trabalho escravo e nunca expulsaram ninguém de suas terras. “Você pode ir à polícia”, sugere César Augusto Lopes, secretário do Sindicato. “Garanto que você não vai encontrar nenhuma ocorrência desse tipo contra nós. As acusações do Greenpeace são falsas”.

Justiça seja feita, a Ong nunca fez essas duas acusações aos sojicultores da região. Apenas que eles estão grilando terras e desmatando ilegalmente. Óbvio, a direção do sindicato diz que não é verdade. Batem na tecla que ocupam áreas há muito desmatadas. E rejeitam o rótulo de grileiros. Cesaroto, que chegou aqui em 1998, diz que ocupou terras devolutas, onde não havia ninguém, e que protocolou a posse no Incra e entrou no cadastro do órgão. “Agora só falta a certidão definitiva de propriedade”, diz. E quando ela sai? “Não sei. Esse governo parou tudo. Só liga para meio ambiente”. Clóvis vem em seu socorro. “O principal problema aqui é a ausência de governo”, diz, fazendo coro com um mote há muito usado pelo Greenpeace, só que por razões diferentes. “Há 20 anos o Incra não dá nenhuma posse definitiva de terra nessa região”. Segundo ele, essa é a razão pela qual, injustamente, os agricultores da região levam a fama de grileiros.

PIB alto, exportação baixa

“A gente sofre muito com isso”, diz Lopes. “Impede que consigamos financiamento dos bancos, o que nos faz dependentes da Cargill para custear a nossa produção”. Clóvis aproveita para afirmar que toda essa situação de incerteza sobre a propriedade da terra também não permite que os fazendeiros que plantam soja tenham ciência exata sobre seu passivo ambiental. O Greenpeace diz que nas terras ocupadas por eles ninguém respeita a manutenção de reserva legal, que na Amazônia é de 80% de acordo com o Código Florestal brasileiro. “O título definitivo é o nosso maior problema”, diz. “Sem ele, não temos condições de averbar a nossa reserva legal para ver se temos passivo ambiental. Tudo depende do processo de legalização no Incra”.

Por isso o sindicato dos produtores aposta muito num termo de ajuste de conduta (TAC), que vem sendo negociado através da The Nature Conservancy (TNC), uma Ong de origem americana cujo trabalho em Santarém está sendo financiado pela própria Cargill e pela embaixada da Inglaterra em Brasília, para legalizar a produção da soja na região. Lopes acha que se ele sair, vai consolidar o desenvolvimento da economia local trazido pelo plantio de grãos. “Antes da chegada da fronteira agrícola por aqui, o maior empregador da cidade era a prefeitura. Depois, a economia da cidade cresceu e se democratizou por conta dos negócios que aportaram na região junto com a soja”.

Paulo Adário, coordenador da Campanha Amazônia do Greenpeace, ouviu a mesma coisa da prefeita atual da cidade, a petista Maria do Carmo Martins Lima. Ela lhe contou que nos últimos anos, o impacto direto da soja no PIB de Santarém foi de apenas 1%. Mas que os negócios em torno do grão, entre eles o terminal da Cargill, fizeram a arrecadação dar um salto de quase 50%. Maria do Carmo disse também que a soja santarina é apenas uma fração do volume total exportado pela multinacional americana através de seu terminal na cidade, em torno de 3%. Cesaroto dá outra conta: “no ano passado, a Cargill mandou para fora 23 navios de soja. Menos de um continha soja produzida na região de Santarém”. Essa é a razão pela qual acham que o Greenpeace anda fazendo muito barulho por nada e por isso mesmo a Ong só pode estar a serviço de interesses escusos.

Clóvis insiste que os 300 produtores de soja filiados ao Sindicato são gente pequena, Davis que enfrentam um Golias financiado por dinheiro internacional. “A média do terreno que eles ocupam é de apenas 100 hectares”, diz, incluindo-se entre essa massa. Apenas 5 produtores estariam fora desse esquadro, ocupando áreas com 1 mil hectares. Cesaroto e Lopes também fogem a essa regra. Dizem que têm a posse sobre 400 hectares cada um e que hoje teriam dificuldades para expandir seus terrenos. Ninguém tem título definitivo de propriedade. A entrada da soja fez o preço da terra explodir no município. Em 1998, era possível comprar a posse de 500 hectares de primeira para o plantio do grão por apenas 30 mil reais. Hoje, segundo Clóvis, a brincadeira sairia por 1 milhão e 500 mil reais.

Derrubadas

A visão dos sojicultores sobre a situação em Santarém e Belterra se choca com um estudo acadêmico sobre desmatamento na região que foi apresentado como monografia na Universidade Federal de Lavras. Ele se baseou em imagens da área capturadas entre 1999 e 2004 pelo sistema Prodes, que equipa os satélites Landsat – as mesmas utilizadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) para calcular a taxa anual de desmatamento na Amazônia – e visitas a campo em 2005. Seu autor, Daniel Cohenca, é funcionário do Ibama, lotado no escritório do órgão em Santarém. Feita a pesquisa, ele não teve outro caminho a não ser concluir que “a partir de 2001, a agricultura mecanizada (leia-se monocultura de grãos) foi o maior responsável pelos desmatamentos na região de Santarém”, independente do fato de eles terem ocorrido em cima de vegetação primária ou secundária.

Essa distinção, ou no caso a falta dela, é importante para o debate sobre a expansão da fronteira agrícola nessa área da Amazônia. Santarém e Belterra sofreram sucessivos ciclos de ocupação humana desde 1637. Primeiro com o cacau e a cana-de-açúcar, que foram embora daqui por volta de 1810 e, a partir de meados do século XIX, com a borracha. Esse ciclo, que acabou em 1915, foi retomado em fins da década de 20, com o plantio de seringais em Belterra e Fordlândia levados a cabo pelo magnata americano Henry Ford. Suas operações fecharam em 1945, mas a pressão retornou com o ciclo da juta, que durou até fins dos anos cinqüenta. Ele foi substuído pelo garimpo e os assentamentos feitos pelo regime militar na década de 70. Nos anos 90, vieram os madeireiros. No fim do século XX, veio a soja, embalada pela chegada à região principalmente de gerentes de fazendas de monocultura do Norte do Mato Grosso, que primeiro compraram terras de posseiros e depois avançaram sobre as matas.

Essas diferentes formas de pressão e sua irregularidade, de acordo com o trabalho de Cohenca, permitiram que a floresta se regenarasse em várias partes das áreas antropizadas do município, criando uma vegetação secundária exuberante que passou a desempenhar importante papel ambiental, recuperando a biodiversidade, ajudando a manter a fauna e conectando fragmentos de floresta primária. A fronteira agrícola avançou sobre ela. Mas avançou mais ainda sobre áreas de mata ainda intacta. Com base nas imagens de satélite, Cohenca contabilizou 80 mil 893 hectares desmatados entre 1999 e 2004, a esmagadora maioria delas ilegais. Cinqüenta e três por cento dessas derrubadas aconteceram em florestas primárias e mais da metade delas foi convertida em fazendas para o plantio de grãos.

A primazia da transformação do solo de floresta em área de agricultura mecanizada não foi lenta nem tampouco gradual. Cohencas analisou os dez maiores desmatamentos anuais a partir de 1999 até 2004, para descobrir que destino estava sendo dado a essas terras. No primeiro biênio examinado, 1999-2000, apenas três desses desmatamentos redundaram em operações de agricultura mecanizada. No biênio seguinte, a relação se inverteu e, a partir daí, até 2003-2004, apenas uma de todas as dez maiores derrubadas anuais de floresta detectadas pelos satélites teve como destino a pecuária. Cohenca, no seu estudo, não tem dúvida que o anúncio do asfaltamento da BR-163, a vinda da Cargill para Santarém e os preços da soja em 2003 e 2004 tiveram contribuição decisiva para essa mudança no perfil do uso do solo.

Dados da Cargill e do IBGE mostram que hoje a monocultura de grãos se espalha não por 80 mil, mas por 100 mil hectares de terras na região de Santarém. Cohenca concluiu, com base em todas essas informações, “que o avanço da fronteira agrícola na região de Santarém têm causado 2 movimentos: desmatamentos diretos em áreas florestais e pressão indireta sobre áreas florestais mais distantes da infra-estrutura de cidades e estradas”. Em outras palavras, seu estudo detectou com precisão científica duas conseqüências que recentemente muito se debateu no país. A primeira é que a agricultura intensiva é de fato agente do processo de desaparecimento da mata na Amazônia. A outra, é que ao ocupar áreas mais nobres, ela empurra agricultores familiares e pecuaristas cada vez mais para dentro da floresta.

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