Reportagens

Futuro azul

A possível ampliação do mar brasileiro em 900 mil km2 abre enorme potencial de exploração de riquezas biológicas, minerais e energéticas em água, solo e subsolo.

Marina Lemle ·
29 de junho de 2006 · 18 anos atrás

Enorme, rica, estratégica e cobiçada, seu nome não poderia ser mais sugestivo: Amazônia Azul. Maior do que a Amazônia verde, ela compreende o mar, o solo e o subsolo da plataforma continental brasileira – prolongamento submerso da massa terrestre do país. Mas o Brasil ainda não a detém. 

Em março de 2007, uma decisão da ONU determinará a expansão, ou não, desses 900 mil km2 de mar nacional. Além das 200 milhas náuticas de Zona Econômica Exclusiva (ZEE). Com a aquisição, as águas jurisdicionais brasileiras crescerão de 3,6 milhões de km² para quase 4,5 milhões de km² – ou 50% do território nacional. Uma área com enorme biodiversidade e a presença de pelo menos 73 metais que poderão ser explorados economicamente. Com direito à descoberta de petróleo e gás natural.

A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, ratificada por quase cem países, inclusive o Brasil, afirma que todos os bens econômicos existentes na água, sobre o solo e no subsolo marinho ao longo da faixa litorânea de 200 milhas – 370 km de distância da costa – são propriedade exclusiva do país costeiro. Às vezes, porém, a plataforma continental ultrapassa essa distância. É o caso do Brasil.

“A natureza não obedece Convenção da ONU”, afirma o secretário da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, Contra-Almirante José Eduardo Borges de Souza. De fato, a própria ONU prevê a possibilidade de estender a propriedade econômica do Estado a até 350 milhas marítimas, equivalentes a 678 km de distância da costa.

Em setembro de 2004, o Brasil tornou-se o segundo país a pleitear, junto à Comissão de Limites da Plataforma Continental da ONU, o direito à expansão do seu território marítimo. O primeiro foi a Rússia, que teve o pedido negado por causa de litígios com as nações com que mantém fronteiras marítimas.

Para o Contra-Almirante Borges de Souza, as chances brasileiras são boas, já que o Brasil possui fronteiras bem definidas e acordadas tanto ao norte, com a Guiana Francesa, quanto ao sul, com o Uruguai. Além disso, a documentação apresentada à ONU é resultado de um trabalho que reúne dados e mapas oceanográficos de toda a margem continental do país. O Plano de Levantamento da Plataforma Continental Brasileira (Leplac) foi desenvolvido ao longo de dez anos por cientistas de diversos centros de pesquisa, técnicos da Petrobras, oficiais da Diretoria de Hidrografia e Navegação da Marinha e membros do governo.

De acordo com o geólogo Marcus Aguiar Gorini, integrante da delegação brasileira junto à ONU, é muito positivo o fato de o Brasil ter sido o segundo país a apresentar o seu pleito e a fazê-lo ainda em 2004 – data limite estipulada pela organização, posteriormente estendida a 2009. “É uma oportunidade única de os estados costeiros terem as suas fronteiras submarinas determinadas pacificamente, de acordo com a Lei do Mar (Unclos)”, afirma o pesquisador do Laboratório de Geologia Marinha da Universidade Federal Fluminense (Lagemar/UFF).

Riqueza mineral

Segundo Gorini, diversos ambientes do solo marinho sugerem a presença de minerais que, no futuro, com novas tecnologias de exploração e novas conjunturas econômicas mundiais, poderão substituir as jazidas continentais. Ele destaca os nódulos polimetálicos, que são associações de diversos metais, como manganês, cobalto, níquel e vanádio, em regiões abissais.

Entre outros ambientes propícios estão montanhas submarinas vulcânicas, com seus flancos ricos em crostas manganesíferas com elementos metálicos associados, áreas de cordilheiras submarinas com fontes hidrotermais e outras ocorrências formando jazimentos polimetálicos. Além disso, há margens continentais com potencialidades de óleo e gás, já atualmente sendo explotadas, e com possibilidades de jazimentos consideráveis de gases congelados que podem ser uma grande fonte de energia no futuro, além de ocorrências abundantes de sedimentos com minerais raros (pláceres).

Um levantamento detalhado está sendo realizado pelo Programa Avaliação da Potencialidade Mineral da Plataforma Continental Jurídica Brasileira (Remplac), mas a falta de recursos e infra-estrutura atrasa os trabalhos.

“Os recursos minerais presentes na plataforma continental brasileira, em adição a óleo e gás, certamente serão explorados no futuro. O primeiro passo é a avaliação desses recursos no território submerso brasileiro. Para isso, o Remplac está sendo, com dificuldades, transformado em realidade. “Esse programa precisa ser encarado como prioritário, e a comunidade científica nacional voltada para a oceanografia deverá se desenvolver ainda mais”, defende Gorini.

O futuro é motivo de preocupação para o geólogo. Ele considera fundamental o aumento dos investimentos em pesquisa e formação de pessoal nas diversas áreas das ciências ligadas à oceanografia, como a geologia, a física, a química e a biologia, assim como em navios e equipamentos.

Um aspecto importante previsto pela Lei do Mar é a liberdade de qualquer Estado Costeiro pleitear, junto à Autoridade sobre os Leitos Marinhos da ONU, a exploração e a explotação de minerais em qualquer área oceânica fora de suas respectivas jurisdições, isto é, em áreas de Patrimônio Comum da Humanidade. “Considerando que a capacidade de exploração e de explotação dos oceanos será determinante para o equilíbrio entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, o Brasil tem que estar preparado para o futuro. A comunidade oceanográfica brasileira tem que estar atenta às mudanças na economia mundial, mantendo a chama viva da formação e desenvolvimento de pessoal. O que for feito hoje terá conseqüências diretas no porvir”, ressalta Gorini.

Países como o Japão, França, Inglaterra, Estados Unidos, Holanda e Dinamarca já se destacam na exploração de cascalhos, areias e argilas, usados principalmente na construção civil e na fabricação de cerâmicas. Também já exploram, em diversas partes do mundo, depósitos de minerais pesados, derivados da erosão de rochas continentais, como ouro, platina, magnetita, óxidos de titânio e mesmo diamantes.

Riqueza viva

Quem lida com recursos vivos marinhos também torce pela consolidação da Amazônia Azul. Afinal, em cada camada de água, assim como no leito do mar, existem espécies diferentes. Para Carmen Rossi-Wongtschowski, coordenadora para a costa sul do Programa de Avaliação do Potencial Sustentável dos Recursos Vivos da Zona Econômica Exclusiva Brasileira (Revizee), a expansão do território será estratégica. “Não sabemos as riquezas que podemos encontrar além dos mil metros de profundidade já explorados pelo programa”, afirma. Pesquisadora do Instituto Oceanográfico da USP, Carmen considera as perspectivas animadoras, tendo como base o que já foi descoberto na ZEE. “Identificamos espécies de alto valor comercial, como namorado, camarões, peixe-sapo e até caranguejos de alta profundidade, vendidos a cerca de 50 dólares o quilo, quase o peso de cada animal”, diz.

Em fase final, o Revizee está sendo substituído pela Ação de Avaliação do Potencial Sustentável e do Monitoramento dos Recursos Vivos do Mar (Revimar), que vai monitorar o crescimento (ou não) das colônias de peixes e informar os pescadores sobre como fazer da pesca uma atividade sustentável. Segundo o Direito do Mar, caso o país costeiro não realize a captura dos recursos vivos marinhos de acordo com as cotas internacionais, ele é obrigado a autorizar que outras nações o façam em suas águas. No prolongamento da plataforma continental, a regra é ainda mais rígida: o país só tem direitos exclusivos sobre o solo e o subsolo, mas não sobre a coluna d’água. Assim, incentivar o desenvolvimento da pesca sustentável é uma questão estratégica.

O pesquisador Roberto Berlinck, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos, lembra que, ao longo dos dez anos do Programa Revizee, muitas espécies ainda desconhecidas no litoral do Brasil foram descritas, além de várias novas, nunca antes encontradas na natureza. “O aumento da área marinha do Brasil será extremamente importante para a realização de pesquisas e para o gerenciamento de recursos naturais ecologicamente importantes, como recifes de corais, e economicamente relevantes, como o pescado”, diz.

Berlinck ressalta a necessidade de se controlar o pescado, explorado de maneira irracional e muitas vezes predatória na costa brasileira. E de se desenvolver estudos que levem à exploração racional e sustentada do pescado e de outros recursos marinhos. Como exemplo, a “criação” de algas marinhas para a produção de polissacarídeos, usados na composição de produtos tão diversos como sorvetes e materiais odontológicos. Ou a criação de moluscos e crustáceos e a exploração de invertebrados com potencial químico para indústria farmacêutica, cosmética e alimentícia.

Berlinck estuda esponjas. Algumas espécies têm moléculas que são a senha para o desenvolvimento de medicamentos, como é o caso do antiviral Acyclovir (Zovirax), contra herpes, produzido a partir da esponja Cryptotethya crypta. Cientistas apostam que as esponjas trazem substâncias que, sintetizadas, são aplicáveis contra diversas doenças, como câncer, tuberculose, leishmaniose, malária e mal de Chagas.

Soberania X pirataria

A existência de petróleo no subsolo além das 200 milhas ainda não foi comprovada, mas é provável. Novos estudos com alta tecnologia são necessários para esta averiguação. A Petrobras tem planos para isso. No limiar da auto-suficiência, o Brasil prospecta, nas plataformas localizadas na ZEE, mais de 80% do seu petróleo, ou cerca de 2 milhões de barris por dia. Especialistas supõem que a exploração em novas áreas vai permitir ao país aumentar suas reservas o suficiente para suprir o mercado interno e ainda exportar um excedente. Há boas perspectivas também para o gás natural.

Com toda essa riqueza natural, não é paranóia acreditar em olho grande. Nesse ponto, os discursos da Marinha e da comunidade científica reforçam-se mutuamente. A ciência depende da Marinha, uma vez que são seus poucos navios em atividade que levam os pesquisadores a pontos distantes como as ilhas oceânicas. E a Marinha reclama da falta de recursos para fazer a vigilância e proteção do patrimônio. “Estamos retirando navios de serviço”, alerta o Contra-Almirante Borges de Souza. Ele explica que o país não pode impedir a passagem “inocente” de navios estrangeiros, mas deve evitar exercícios militares, despejos ilegais de material poluente, contrabando, pirataria e pesquisas sem autorização. “Se você não ocupa um espaço, outros ocupam. Precisamos estar capacitados para patrulhar e defender a Amazônia Azul. Ou ela ficará infestada de barcos estrangeiros com fins de pesquisa e exploração”, prevê.

O Comandante da Marinha, Almirante-de-Esquadra Roberto de Guimarães Carvalho – autor do nome Amazônia Azul –, lembra que os limites das águas jurisdicionais não existem fisicamente, são linhas sobre o mar. “O que define os limites é a existência de navios patrulhando ou realizando ações de presença”, diz.

Os valores para a proteção, entretanto, são astronômicos. Segundo a Marinha, um sistema de vigilância similar ao da Amazônia (Sivam), envolvendo satélites, equipamentos avançados ao longo de toda a costa, centros regionais, estações móveis embarcadas em navios e aviões, postos nas ilhas oceânicas e alguma capacidade de vigilância submarina pode custar até dois bilhões de dólares. Um arranjo menos ambicioso, para estabelecer uma rede eletrônica primária no perímetro das províncias petrolíferas – que são vistas pelas Forças Armadas como alvos potenciais para ataques terroristas –, custaria no mínimo 250 milhões de dólares. Mas por 150 milhões da mesma moeda seria possível estabelecer um centro de coordenação exclusivo para as bacias de Santos, Campos e do Espírito Santo.

Já a comunidade científica se preocupa mais com os investimentos em logística, infra-estrutura e capacitação para pesquisa e com a pirataria científica. Segundo o professor Roberto Berlinck, a expansão do território brasileiro é desejável para que possamos pesquisar para conhecer melhor e explorar racionalmente as riquezas que, se permanecerem em território sem pátria, estarão muito mais sujeitas à exploração predatória.

“O interesse econômico em muitas espécies biológicas é real e não pode mais ser negligenciado. As indústrias farmacêutica, cosmética e alimentícia constituem uma das parcelas de maior poder econômico do planeta e continuam extremamente interessadas na descoberta de substâncias com potencial de aplicação industrial. Sendo assim, os países que apresentam uma megabiodiversidade, como é o caso do Brasil, interessam demais e diretamente a grandes grupos econômicos”, afirma.

Parceria

Um exemplo de projeto que reúne a Marinha e a comunidade científica é o Programa Arquipélago de São Pedro e São Paulo (Proarquipélago), financiado pelo CNPq e com apoio logístico da Secretaria da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (Secirm). O objetivo do programa é garantir a ocupação humana permanente no arquipélago e a realização de pesquisas que visem à exploração, ao aproveitamento, à conservação e à gestão dos recursos naturais lá existentes.

O Arquipélago de São Pedro e São Paulo é formado por um grupo de pequenas ilhas rochosas, situadas a cerca de 530 milhas náuticas (982 km) da costa do Rio Grande do Norte. A região tem recursos marinhos abundantes e está na rota de peixes migratórios de alto valor comercial. Sua ocupação permite a incorporação ao país de cerca de 450 mil km2 de ZEE. Desde 1998, uma estação científica abriga quatro pesquisadores brasileiros de diferentes universidades, que se revezam a cada 15 dias. Agora, imagine o que a Marinha e a comunidade científica brasileira terão que fazer se depender somente deles proteger uma nova Amazônia.

* Marina Lemle é jornalista especializada em ciência e tecnologia. Trabalha na ONG Viva Rio e colabora para o site SciDev.Net.

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