Sob o sol quente, um grupo de meninos da periferia de Manaus se diverte com peixinhos que facilmente são retirados da água: tilápias, naturais da África. Pedaços de madeira servem de varas de pescar. Na ponta do anzol, eles usam miolo de pão ou carne. Os meninos, entre eles Mateus, de quatro anos, ficam na saída de um bueiro, passagem de um igarapé poluído por baixo de uma avenida. É difícil acreditar que, em meio à espuma, ao lodo e aos restos de lixo ainda existam peixes. Mas elas estão lá, firmes e fortes. E ainda servem de almoço para famílias que moram na beira do igarapé.
“Tem gosto de óleo diesel”, afirma a dona de casa Raimunda da Silva, que há oito anos mora na margem do igarapé. Segundo ela receita, o segredo para levar o peixe ao prato é não cozinhá-lo, mas fritá-lo. Assim o gosto fica mais suave. O alimento é farto para a família inteira. E Raimunda garante: nunca ninguém passou mal depois de comer o peixe com gosto de óleo.
Mas para o doutor em zootecnia Manoel Pereira Filho, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), o consumo dessas tilápias não é nada saudável. “O igarapé é um esgoto, cheio de fezes. O próprio manuseio do peixe deve ser ruim. Comer, então, deve ser pior”, diz o pesquisador. “Aquela água tem material de limpeza, dejetos de fábricas e metais pesados, como cádmio, chumbo e cromo”, afirma. De acordo com o zootécnico, a tilápia só sobrevive a ambientes tão poluídos porque resiste ao baixo nível de oxigênio da água.
Peixe invasor
Até chegar à mesa dos moradores da periferia de Manaus, os peixes seguiram um longo e indevido caminho. Na verdade, eles nem deveriam existir na Amazônia. Segundo Julio Alberto Dias Siqueira, chefe do Núcleo de Recursos Pesqueiros do Ibama no Amazonas, as tilápias foram introduzidas no final dos anos 80 por criadores e pelo próprio governo estadual, que pretendia usar o peixe para povoar o lago da represa de Balbina, no município de Presidente Figueiredo, a cerca de 130 quilômetros da capital amazonense. Agora elas estão espalhadas pelos principais igarapés de Manaus.
Aproveitada em empreendimentos do tipo pesque-pague, a tilápia passou a ser uma excelente opção para alimentação de pirarucus criados em cativeiros por ser uma espécie considerada rústica, fácil de ser manejada. Mesmo assim, para o engenheiro do Ibama, não havia a menor necessidade de levar um peixe exótico para esse tipo de finalidade. “Existem peixes regionais que podem ser utilizados para alimentar os pirarucus nos cativeiros, como o acarauçu e o acará-papa-terra”, orienta.
A presença da espécie é uma ameaça ao meio ambiente. “A tilápia é uma espécie voraz, que se reproduz muito cedo. E pode causar danos para o meio ambiente, pois concorre por alimentos, espaço e pode trazer parasitas que afetam espécies naturais”, adverte Siqueira. “A tilápia é uma praga para ser destruída”, diz. Segundo ele, mesmo na tentativa de eliminar os peixes através do esvaziamento dos lagos e tratamento com cal, as ovas da tilápia sobrevivem e dão origem a alevinos.
Mas Manoel Pereira Filho, do Inpa, não concorda. Para ele, o receio em relação ao peixe se deve mais à fama do que aos impactos que ele tem causado em Manaus. “Ninguém pode falar de impacto ambiental provocado pela tilápia no Mindu (um dos principais e mais poluídos igarapés da cidade). O impacto lá é provocado pelo esgoto industrial e das casas”, afirma.
E faz uma comparação para provar que está com a razão. Segundo o pesquisador, a espécie encontrada em Manaus, a tilápia-do-nilo (Oreochromis niloticus), é bem menos agressiva do que a rendali (Tilapia rendali), introduzida na represa Billings em São Paulo, por exemplo. Com aproximadamente um quilo (contra cinco das tilápias-do-nilo), a rendali procria mais cedo e mais rápido. “Lá, causou grandes problemas porque começou a se reproduzir muito pequena e em grande número. Aí, uma grande quantidade começou a concorrer com espécies nativas por alimentos e oxigênio”, conta.
Além disso, na Amazônia, a tilápia só é criada com sucesso quando bem protegida, pois ela tem inimigos naturais na região. De acordo com Manoel Pereira Filho, no ambiente natural, acarás e piabas comem larvas e ovos de tilápia, controlando a população da espécie. Mas em um ponto os dois concordam: não há necessidade dos criadouros amazonenses recorrerem à tilápia para a produção em cativeiro. Desnecessária e fora da lei. Siqueira lembra que a pena para criadores que têm peixes exóticos é multa. “Eles são enquadrados na Lei 9605, por dano ambiental”, ressalta o engenheiro do Ibama. “Ela é importante economicamente para Santa Catarina e Paraná, mas na região amazônica já temos uma quantidade enorme de peixes”.
* Vandré Fonseca é jornalista formado em São Paulo, há oito anos vivendo na Amazônia. Após sete anos em Roraima, trabalhando para a TV Roraima e jornais de movimentos populares, mudou-se para Manaus. Atualmente, é repórter da TV Amazonas.
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