Reportagens

A coisa está preta

Queimadas aumentam a poluição do ar e prejudicam a saúde da população do estado de São Paulo. Moradores do entorno de usinas canavieiras sofrem ainda mais.

Aline Ribeiro ·
4 de agosto de 2006 · 18 anos atrás

A aparência cansada e a respiração ofegante impediram que Maria José de Souza, 53 anos, contasse mais detalhes sobre sua condição. Moradora de um sítio nos arredores de Ourinhos (370 km a oeste de São Paulo), ela é uma das milhares de pessoas que, entre abril e novembro, sofrem com as queimadas da palha de cana-de-açúcar na região. Com o tempo seco do último mês, a situação ficou mais grave. Nem mesmo as chuvas do final de semana passado foram suficientes para evitar que, mais uma vez, a dona-de-casa fosse parar na Santa Casa da cidade. “Piora muito nos dias secos. E, quando queimam cana, fica bastante complicado.”

Também no hospital, alguns quartos à frente, Maria Alves, 57 anos, estava internada há mais de uma semana. Assim como a vizinha de leito, ela sofre de uma doença crônica dos pulmões que diminui a capacidade para a respiração. “Fico bastante atacada quando passo perto das queimadas.” O quadro de Alves é preocupante porque ela fuma há 50 anos. “Quer dizer que a senhora começou a fumar aos sete? E seu pai não ficava bravo?”, pergunta a repórter de O Eco. “Ele é que dava cigarro pra gente. Naquela época, eu trabalhava na roça cortando cana. Meu pai dizia que ajudava a espantar as muriçocas.”

A região de Ourinhos concentra boa parte das usinas canavieiras do país e, no ano passado, representou quase 2% da safra total do estado. Lá, mais especificamente no município de Ipaussu, está instalada uma das unidades da empresa Cosan – maior produtora brasileira de açúcar e álcool. Procurada para falar sobre as medidas para diminuir os impactos das queimadas sobre os moradores, a assessoria do grupo não retornou a ligação. Fomos buscar resposta na União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica), que se limitou à seguinte nota: “O aumento dos problemas respiratórios é próprio do período de inverno, com clima seco e a ocorrência das chamadas inversões térmicas. Esse aumento é observado indistintamente nas áreas nas quais a cultura da cana prevalece e naquelas onde a atividade econômica principal é outra.”

Não é o que mostram os dados dos hospitais da região de Ourinhos. O número de atendimentos relacionados ao aparelho respiratório na Santa Casa subiu 12% entre abril e junho. No Centro de Saúde de Ipaussu, a média de pacientes consultados por esse mesmo motivo cresceu 30%. “Além das crianças e idosos, recebemos aqui muitos cortadores de cana. Eles são bastante propensos às doenças respiratórias, porque apresentam imunidade baixa por não se alimentarem bem. Na região, temos uns 500 trabalhadores nessas condições, a maioria vinda de Minas Gerais e Bahia”, conta o médico plantonista do Centro de Saúde Koiti Takagi.

Por toda parte

Ao percorrer as estradas que ligam as cidades do entorno de Ourinhos, o que mais se vê são grandes plantações de cana e caminhões levando a planta recém-cortada. O cheiro azedo exalado pelo vinhoto – líquido que sobra do processo de destilação e depois utilizado como adubo – está em toda parte. Em determinado momento da viagem, um grupo de cortadores que trabalhava próximo à estrada aceitou dar uma entrevista. A queimada tinha acabado de ocorrer e a fuligem ainda rodeava o local.

Intimidado, um dos cortadores, que atende por Marquinhos, restringiu-se a contar que é de Minas Gerais e que participa pela terceira vez de colheitas no estado. “A fumaça não faz mal não”, enfatiza. O fiscal do grupo está ao lado. Ele autoriza que os cortadores falem, mas permanece presente o tempo todo, como se vistoriasse os comentários de seus subordinados. Num trecho de roça ao lado, um cortador que não quis se identificar discorda do colega. “Dá gripe sim.” Desta vez, o supervisor encontrava-se mais afastado.

Perto das queimadas, costuma haver sempre um caminhão-pipa para apagar eventuais incêndios. Nesta plantação, o motorista José Carlos Mussi observava atento os caminhos que o fogo percorria. “Na semana passada, tivemos quatro incêndios. Quando o clima está mais úmido, quase não tem.” O carro-tanque tem capacidade para armazenar 12 mil litros de água e fica sempre a postos para acabar com as chamas na pista, em brejos e matos vizinhos.

Impactos comprovados

O retrato acima não se restringe à região de Ourinhos. Responsável por 60% da safra de cana-de-açúcar do país, o estado de São Paulo tem hoje milhares de habitantes que todos os anos sofrem com problemas respiratórios agravados pelas queimadas no interior. Durante a época da safra, os cortadores colocam fogo na palha da cana para facilitar a colheita e reduzir acidentes de trabalho. A nuvem negra que se forma no céu carrega a fuligem expelida na combustão, que é prejudicial à saúde humana e ao meio ambiente. As grandes vilãs são as partículas ultrafinas, invisíveis a olho nu, que quando inaladas atingem os alvéolos e chegam até à corrente sanguínea, desencadeando processos inflamatórios.

Conseqüentemente, as internações e atendimentos hospitalares aumentam, de acordo com estudos desenvolvidos por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Nos dias com mais partículas, há um crescimento de 20% no número de inalações feitas nos prontos-socorros, que são marcadores de processos agudos respiratórios, como asma, enfisema e bronquite crônica”, explica o médico Marcos Arbex, um dos autores de estudo desenvolvido no Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental da Faculdade de Medicina da USP. Segundo ele, os efeitos das queimadas podem ser sentidos a até 40 km de distância dos focos de incêndio, dependendo das variações meteorológicas.

Na região de Piracicaba, uma pesquisa realizada pelo médico pneumologista José Eduardo Cançado constatou que, no período da safra, o número de internações de crianças e idosos é 3,5 vezes maior do que nos outros meses do ano. Estudos da Unesp apontaram ainda o aumento de HPAs (Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos) – componentes altamente cancerígenos – no organismo de cortadores de cana e no ar das imediações de canaviais, durante a época de corte. A tese de doutorado de Rosa Bosso analisou a urina de 41 cortadores de cana não-fumantes da região de Catanduva, nos períodos de safra e entressafra. Na safra, o nível de HPAs na urina foi nove vezes maior do que na entressafra.

Alerta

Em pleno inverno, desde 21 de junho, São Paulo vinha apresentando temperaturas de verão e clima seco. A umidade do ar na capital paulista no mês de julho chegou a menos de 20%, índice considerado estado de alerta pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Este ano está sendo mais crítico, mas a maior parte das queimadas ainda está para acontecer. Desta forma, é cedo para dizer se será pior do que nos outros anos”, explica Alberto Setzer, coordenador de Monitoramento de Queimadas por Satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Até agora, o total de queimadas monitoradas por satélites no estado aumentou cerca de 35% se comparado com o mesmo período de 2005. Foram 10.744 focos até a última quinta-feira, dia 3 de agosto. Segundo Setzer, os casos de queimadas mais preocupantes são os ocorridos em áreas de preservação. “Se as pessoas colocam fogo para plantar roça ou cana, ainda existe um certo espaço para debate, ainda que saibam que é errado. Mas queimar unidades de conservação não dá. É crime e ponto.” O Inpe localizou 309 queimadas em unidades estaduais e federais localizadas no estado até o momento, contra 155 no mesmo período do ano passado.

Setzer diz que, somente com o sistema de monitoramento do Inpe, não é possível identificar as causas das queimadas. Ainda assim, aponta os principais responsáveis pelos focos de fogo no estado. “Na região norte, a grande maioria é devido à queima de cana-de-açúcar. Já no Vale do Paraíba, as queimadas geralmente são feitas para a renovação de pastagem. Na Serra do Mar, por outro lado, são conseqüentes de desmatamentos ilegais.” Ele alerta ainda que cerca de 80% das emissões do Brasil que contribuem para o aquecimento global vêm das queimadas.

Medidas O decreto estadual 47.700 /2003, que regulamenta a lei 11.241, determina que a colheita não deverá mais ser feita utilizando-se de queimadas. Gradualmente, os usineiros terão de aumentar a porcentagem da área colhida por máquinas. Segundo o documento, os terrenos mecanizáveis (relativamente planos e maiores do que 150 hectares) devem deixar as queimadas até o ano de 2021. Já as áreas menores e com declividade, ou seja, as não mecanizáveis, têm prazo estendido até 2031. A lei determina também que a extinção deverá ser escalonada, de maneira que há metas anuais de diminuição de queimada. Para 2006, a redução deve ser de 20%.

Com base nesse texto, a Secretaria de Estado do Meio Ambiente proibiu no dia 26 de julho a queima em todo o estado por tempo indeterminado, logo após a Defesa Civil confirmar as mais baixas taxas de umidade nas áreas produtoras. Com as chuvas do final de semana e o conseqüente aumento da umidade relativa do ar, o governo de São Paulo liberou as queimadas três dias depois. Neste período de suspensão, a Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) registrou 15 focos de queima, oito deles em Ribeirão Preto. A multa para os infratores varia de 70 a 130 mil reais.

Segundo a secretaria, o veto pode ser retomado a qualquer momento, dependendo das condições meteorológicas para os próximos dias. A medida causou certo reboliço entre o setor canavieiro. Não é para menos. Diariamente, o estado recebe de 1.500 a 2.000 comunicações de queimadas para cana. Enquanto a lei não proibir de vez as queimadas, quem fica no sufoco é a população, acompanhada da inflamável natureza.

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