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Em Tefé, urubu é quem manda

Cidade amazônica que sedia Projeto Mamirauá depende de dar fim a lixão e a urubus para poder receber turistas normalmente em seu aeroporto.Hoje, só se pousa em Tefé à noite.

Leandro Prazeres ·
12 de setembro de 2006 · 18 anos atrás

Tefé, no Amazonas, tem no céu o sinal de um de seus piores problemas ambientais: os urubus, que sobrevoam o centro urbano atrás do lixo produzido por 70 mil habitantes. As aves, de tamanho amazônico, se proliferaram ao ponto de hoje controlarem o espaço aéreo da cidade.

Em sete de julho, o aeroporto de Tefé foi fechado por ordem da Justiça Federal – a pedido do Ministério Público – depois da colisão de um urubu com um avião, um acidente sem vítimas humanas. Permaneceu assim até o último dia cinco, quando o juiz Ricardo Augusto de Sales, da 2º Vara de Justiça Federal, decidiu pela reabertura parcial da pista. Agora, os vôos comerciais podem aterrissar e decolar na cidade, mas apenas à noite, entre seis horas da tarde e seis horas da manhã, horário em que a concentração de urubus no céu é menor.

A dois quilômetros da cabeceira da pista, há um depósito de resíduos sólidos, popularmente conhecido como lixão. Segundo a procuradora responsável pelo caso, Ariane Guebel, a reabertura integral do aeroporto depende do cumprimento de questões técnicas previstas pela legislação aeronáutica. A primeira delas é a desativação do lixão. A lei prevê que lixões ou aterros sanitários têm de ser construídos a uma distância mínima de 20 quilômetros do eixo central de uma pista de pouso. O choque de uma ave com a fuselagem de um avião pode gerar um impacto de 14 toneladas e um acidente fatal.

Ariane diz que o fechamento do aeroporto foi a única alternativa para o quadro de risco aviário que os técnicos da Infraero registram desde 2004. “Foram assinados acordos judiciais que têm sido reiteradamente descumpridos. O último acordo foi assinado em janeiro deste ano”, disse a procuradora referindo-se aos termos de ajuste de conduta desrespeitados pela prefeitura municipal de Tefé.

Com a “corda” apertada ao pescoço e o Ministério Público Federal no encalço, a prefeitura de Tefé resolveu pedir ajuda ao governo do Amazonas para solucionar o problema. O prefeito Sidônio Gonçalves declarou não ter dinheiro em caixa para construir um aterro sanitário, orçado em 600 mil reais.

Pressionado, o governo estadual iniciou há cerca de 20 dias um plano emergencial para eliminar os focos de concentração de urubus. A solução encontrada foi enterrar o problema, literalmente. Todas as 25 toneladas de lixo produzidas pela população de Tefé por dia estão sendo jogadas e aterradas em duas novas trincheiras abertas no mesmo lixão.

“Transformamos o lixão em um aterro controlado. Ao aterrarmos o lixo, eliminamos os focos de urubus próximos ao aeroporto”, diz o secretário adjunto de recursos hídricos do governo do Amazonas, Neliton Marques. O secretário admite que essa medida é paliativa, não resolve o problema da destinação do lixo em Tefé e tem como único foco a reabertura do aeroporto. “O problema do lixo em Tefé e em outras cidades do Amazonas é grave e não será resolvido da noite para o dia. Neste primeiro momento, estamos tomando medidas que visam a reabertura do aeroporto. Ao mesmo tempo, estamos fazendo estudos e análises para a construção de um novo aterro na cidade”, diz, apesar de Tefé não ter um aterro sanitário..

Um fórum municipal de gestão de resíduos sólidos foi implantado no município para discutir o problema. Chegou-se ao consenso de que é necessário construir um aterro, mas ainda não se sabe quando nem em que área ele será implantado. “Nós tínhamos duas alternativas, mas os moradores das áreas em que cogitamos construir o aterro manifestaram-se contra e nós mudamos de plano”, afirma Marques.

A mudança de nomenclatura de lixão para aterro controlado não foi bem vista pelo gerente de meio ambiente da Infraero, Hebert Jansen Oliveira. Ele discorda do tratamento dado ao lixo em Tefé. “Enterrar o lixo não é a solução. Isso pode até diminuir os focos de urubus, mas em compensação, cria um problema sério, que é o risco de o chorume de todo esse lixo atingir um lençol freático”, diz Jansen.

Risco de contaminação

A possível contaminação do lençol freático de Tefé pode gerar um problema de saúde pública grave. Toda a água consumida na cidade é proveniente de poços artesianos. Caso o lençol freático seja contaminado, a população corre sério risco, uma vez que a água de Tefé não passa por nenhum tipo de tratamento.

Neliton Marques admite que a problemática em torno da destinação dos resíduos sólidos nas cidades do Amazonas é séria. Dos 62 municípios, apenas dois (Itacoatiara e Coari) têm aterros sanitários construídos com licenciamento ambiental. “Acredito que o problema passa por duas esferas de poder. A primeira é a sociedade que precisa se mobilizar em torno do problema, e a outra é o Poder Público que tem a obrigação de oferecer alternativas para o lixo”, diz.

O professor e biólogo José Benitez Siqueira vive há cerca de cinco anos em Tefé e é enfático ao analisar a atual conjuntura. “O fechamento desse aeroporto é um sintoma do descaso do poder público com relação ao meio ambiente nessa região, o que é uma pena. O risco de contaminação do lençol freático e a má destinação do lixo urbano são uma tragédia que está em curso sem que ninguém faça nada”, avalia.

José Benitez fez uma pesquisa sobre a qualidade de vida no município. Baseando-se nesses dados, ele afirma que a maioria das crianças que procura a rede pública de saúde tem doenças como diarréia, verminoses e febre. “São doenças cujo vetor de contaminação é a água. Não podemos provar que o lençol freático está contaminado, mas o risco é muito grande”, diz .

Espanta turista

Tefé foi fundada por missionários jesuítas espanhóis, entre o fim do século XVII e o início do XVIII, à margem de um lago na calha do rio Solimões, a 525 quilômetros de Manaus. Da capital do estado até lá a viagem de avião demora 2 horas e a de barco cerca de 13 horas. Apesar da distância, o turismo é uma das principais atividades econômicas, graças à existência da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamiruauá, uma área localizada dentro do município que tem uma grande concentração de fauna e flora amazônica. Mas com o aeroporto fechado, foram poucos os turistas que mantiveram os planos de visitar o prometido paraíso. A venda de pacotes caiu 70% desde a interdição da pista. No ano passado, 830 turistas foram à reserva. Neste ano, apenas 283.

“A maioria dos turistas que vem para cá é estrangeira e não quer enfrentar 12 ou 13 horas de barco entre Manaus e Tefé para chegar à reserva”, diz a gerente de vendas e marketing da reserva, Bianca Camargo. Segundo ela, a interdição do aeroporto não surpreendeu a coordenação do projeto de ecoturismo da reserva. “Esse problema é antigo, mas ninguém fez nada para resolver o problema. Deu no que deu”, lamenta.

Tefé já foi o centro comercial mais procurado da calha do Solimões, mas vem perdendo importância econômica diante do crescimento de Coari, cidade vizinha a pouco mais de 370 quilômetros de Manaus fortalecida pela exploração do gás natural e do petróleo da província de Urucu.

A economia de Tefé é baseada no comércio de produtos da floresta, como madeira, pescado e castanha-do-pará, que são vendidos sem passar por nenhum tipo de processamento que agregue valor a essas matérias-primas. A falta de perspectiva leva a prostituição e as drogas a servirem de fonte de renda para os jovens. O rio Solimões é uma das principais rotas de escoamento da produção de cocaína vinda da Colômbia, e Tefé é um importante entreposto comercial. Nem mesmo a presença dos 1.300 militares do Exército baseados na cidade inibem a ação de traficantes na região.

*Leandro Prazeres é repórter, tem 23 anos e vive em Manaus há um ano e meio. Formou-se em Mato Grosso e atualmente é repórter do jornal A CRÍTICA.

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