Reportagens

Escola de índios

Índios da Amazônia ganham centro de formação de líderes para aprender a explorar de forma sustentável os recursos de Terras Indígenas sem a interferência dos vizinhos brancos.

Vandré Fonseca ·
22 de setembro de 2006 · 18 anos atrás

Em uma casa recém reformada no conjunto Vieiralves, um dos mais valorizados de Manaus, na Zona Centro-Sul da cidade, 12 índios de estados da Amazônia Legal começam a aprender como defender as reservas onde vivem da ameaça de madeireiros, de garimpeiros e do agronegócio. Eles formam a primeira turma do Centro Amazônico de Formação Indígena, inaugurado em agosto e mantido por uma parceria entre a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), The Nature Conservancy (TNC) e a organização Amigos da Terra, da Suécia.

Durante cinco meses, esses 12 índios vão ter aula de manhã e à tarde. O objetivo é transformá-los em lideranças indígenas, ensinando noções de política, lições sobre a sociedade não-índia e ferramentas para a preservação e exploração sustentável das Terras Indígenas, como Sistemas de Informações Georreferenciadas (SIG). Os alunos foram selecionados entre 60 currículos enviados por organizações indígenas à Coiab.

O programa inclui atividades práticas em Roraima, região de cerrado, e na Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá, no Amazonas, área de floresta alagada. Enquanto estiverem em Manaus, os alunos recebem uma bolsa de estudos (R$ 350,00 por mês), alimentação e lugar para dormir.

“Agora que 70% das Terras Indígenas na Amazônia estão demarcadas, o desafio que a gente enfrenta é o desenvolvimento sustentável”, avalia Darcy Marubo, coordenador do Departamento Etnoambiental da Coiab. “Para os índios ficarem na terra e cuidar da conservação, precisam de formação”, completa o líder indígena.

“Os índios sentem a necessidade de autonomia e enfrentam a defasagem na capacidade técnica. A universidade e o ensino normal não têm a visão indígena. Daí, a necessidade de ter um centro próprio de formação”, afirma Marcio Sztutman, coordenador do Programa Terras Indígenas da Amazônia TNC. A proposta pedagógica foi criada por Lúcio Terena, hoje diretor do Cafi.

O conceito utilizado na formação dos líderes indígenas é o “etnoambiental”, que leva em conta as tradições das comunidades tradicionais. “Nas Terras Indígenas não dá para usar o mesmo raciocínio de outras áreas, são necessárias regras indígenas, que levam em conta os tabus, as leis indígenas de utilização dos recursos, aspectos técnicos e políticos”, explica Marcio Sztutman.

Para os índios, é o começo de um trabalho para que eles possam desenvolver ações próprias para a preservação do meio ambiente e melhorar a qualidade de vida nas reservas. Eles são críticos em relação aos projetos oficiais e mesmo experiências desenvolvidas entre comunidades indígenas. “Os projetos não têm continuidade, vivem dos reais do governo”, avalia Darcy Marubo.

No Vale do Jauari, onde vivem os índios Marubo, como Darcy, o diretor da Coiab conta que o próprio governo incentivava a retirada de madeira, que era negociada pela Funai. “Acho que o índio tem que se formar, aprender como sobreviver da mata, conhecer o valor da natureza e voltar para sua área”, diz o índio. “Dizem que não podem extrair madeira ou diamante, mas não dão subsídios para sobreviver. Isto facilita a cooptação. Os índios são fragilizados”, acredita Marubo.

Voltar para a aldeia onde vive e ajudar os parentes a usar melhor os recursos naturais é o plano de Jenivaldo Zezokaecê, índio paresi da reserva Formoso, Tangará da Serra (MT). “Quero elaborar projetos auto-sustentáveis e saber manuseio da natureza”, diz Zezokaecê. A Terra Indígena onde vive é cercada por lavouras de soja. O pareci reclama que o uso de agrotóxico e o desmatamento prejudicam as nascentes dos rios que passam pela reserva. “As águas já saem contaminadas. Usam agrotóxicos na beira das reservas”, conta o índio.

Francisco Meireles Mamalota, índio suruí de Cacoal (RO), fala da falta de unidade entre as lideranças indígenas da região. As comunidades indígenas têm apoio para a lavoura e produzem feijão, arroz, mandioca e amendoim. Mas a agricultura e a pesca nos lagos da região não são suficientes para fazer os índios resistirem às investidas externas. “Lá existem madeireiros e garimpeiros explorando as terras. Eles se aproveitam da falta de unidade entre os clãs e cooptam chefes”, lamenta.

A presença no curso, para ele, é oportunidade para tomar consciência dos problemas que afetam os índios de todo o país. “Vim tentar conhecer o que é movimento indígena e mostrar o que está acontecendo, para ajudar meu povo”, diz.

Chance de preservar

O curso é a continuidade de uma parceria entre a Coiab e a TNC, que começou há pelo menos três anos. Foram feitos vários convênios para a criação e apoio do Departamento Etnoambiental da Coiab. “O enfoque sempre foi a gestão ambiental em Terras Indígenas”, diz Sztutman. “A idéia é dar um apoio inicial, para que os próprios índios dêem continuidade ao processo”, destaca.

Para Marcio Sztutman, existe um enorme potencial nas Terras Indígenas para a preservação da Amazônia. “Dentro da Constituição, 22 % da Amazônia são Terras Indígenas, enquanto que as Unidades de Conservação são apenas 10 %”, calcula. Um exemplo que contribui para esta afirmação é o lavrado de Roraima, um cerrado amazônico pouco conhecido, onde não existe sequer uma Unidade de Conservação, mas protegido por Terras Indígenas como a Raposa Serra do Sol, com 1,6 milhões de hectares. O assessor do Departamento Etnoambiental da Coiab, Marcelo Gusmão, apresenta dados que colaboram com a perspectiva da TNC. De acordo com ele, 3,5 milhões de hectares de florestas podem ser protegidos nas Terras Indígenas. “Em Rondônia, as Terras Indígenas barram o avanço do desmatamento, apesar de sofrerem com a retirada ilegal de madeira”, ressalta.

A parceria já produziu um relatório sobre as ameaças e o estado de preservação em Terras Indígenas da Amazônia. De acordo com Marcelo Gusmão, o diagnóstico demonstrou que, em 76% dos casos, o desmatamento em áreas indígenas é menor do que no entorno. Esta foi uma boa notícia para as comunidades, mas não foi o principal objetivo estudo. O diagnóstico serviu para desenvolver um modelo para medir e prever os impactos de projetos oficiais.

O relatório trouxe também más notícias. Cerca de um quarto das Terras Indígenas (26% delas) estão em áreas de grande pressão de desmatamento, principalmente em Rondônia e Mato Grosso. O Parque Indígena do Xingu, entre os estados do Pará e Mato Grosso, é um exemplo. Imagens de satélites mostram o conjunto de Terras Indígenas cercado por fazendas de gado e soja. Demonstram também que existe desmatamento no interior do parque.

O modelo permite fazer projeções até 2031 para toda a Amazônia. “Ao longo da estrada do Pacífico, que começa no Acre, o verde vai ficando amarelo, demonstrando o impacto da rodovia”, conta Gusmão. Ele cita outro exemplo, a Terra Indígena Uaçá, no Oiapoque (AP).

A reserva vai ser cortada pela BR-156, que forma o Arco Norte, uma rodovia internacional que vai ligar Macapá, capital do Amapá, a Boa Vista, capital de Roraima, passando pelo litoral da Guiana Francesa, do Suriname e da República da Guiana. As conclusões vão servir também como argumentação para políticas e investimentos na preservação de áreas indígenas. “A BR 156 vai causar impacto dentro da Uaçá. O governo às vezes subestima os impactos da obra”, afirma.

Para elaborar o diagnóstico, foram feitas entrevistas com líderes indígenas que estiveram em Manaus ou grandes eventos, como o Abril Indígena. Os dois pesquisadores contratados para o trabalho usaram ainda informações oficiais do IBGE, Funai, além de dados do Instituto Socioambiental (ISA) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Entre os parâmetros usados para desenvolver o modelo, estão a proximidade das cidades, hidrelétricas, hidrovias, garimpos e, principalmente, estradas, considerado o principal fator de desmatamento na região. “Até 50 quilômetros dos dois lados da estrada, o impacto é maior. No primeiro quilômetro de distância da estrada ocorre 60% do desmatamento”, analisa Gusmão.

Durante a elaboração do diagnóstico, começou a funcionar também uma proposta piloto, que deu origem ao Cafi. Quatro estagiários indígenas da Coiab acompanharam e ajudaram nos trabalhos. Durante um ano, eles passaram também por cursos dentro da Coiab. Agora, o Cafi vai formar agentes indígenas que trabalhar com SIG e abastecer o sistema de dados.

Os índios buscam formação e tecnologia para vencer o novo desafio da sustentabilidade de suas terras. Embora este conceito ainda não esteja bem definido por cientistas, para eles é uma idéia simples: melhorar a vida, com os recursos que dispõem dentro das reservar, sem precisar de ajuda externa. Sustentável para o diretor da Coiab é: “Sempre ter caça, sempre ter roça, sempre ter nossa cultura e ter nossas festas, sem dinheiro de fora”.

* Jornalista formado em São Paulo, há oito anos vivendo na Amazônia. Atualmente, é repórter da TV Amazonas.

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