Reportagens

Uma verdade inconveniente

Al Gore não é um político tentando refazer sua carreira com um filme, mas um homem inteligente que usou a indústria cinematográfica americana para contar uma verdade ao mundo.

René Capriles ·
20 de outubro de 2006 · 18 anos atrás

Lançado em fevereiro passado no Festival Sundance e celebrado como uma obra cult no último Festival de Cinema de Cannes, o filme “Uma Verdade Inconveniente” já foi visto por milhões de pessoas, principalmente nos Estados Unidos. Protagonizado por Al Gore, o filme é uma severa advertência para a Humanidade sobre a responsabilidade do Homem nas mudanças climáticas. É um documentário ambientalista e, por isso mesmo, político. As imagens, chocantes, mostram as atuais alterações que o nosso Planeta está experimentando e elas são, também, a evidência da irresponsabilidade dos políticos que se negam a reconhecer a urgência de tocar no assunto e o pouco tempo que resta para evitar a catástrofe total.

No início é um plácido rio. Assim começa o filme “Uma Verdade Inconveniente”. São as imagens de um rio cujas mansas águas deslizam despreocupadamente na alegria de uma estação primaveril, com um estilo de narrativa digno do classicismo dos melhores westerns. A realidade mostrada é um bucólico mundo inspirado na visão pastoril do mundo de Virgílio, que depois migra para uma legião de referências que são parte inalienável da cultura estadunidense, desde Whitman até Bradbury, na ficção, e culmina na bíblia ambientalista “Primavera Silenciosa”, o documento-denúncia de Rachel Carson, na não-ficção. Isso tudo está intrinsecamente presente no documentário “Uma Verdade Inconveniente”. O filme, protagonizado por Al Gore e dirigido por Davis Guggenheim, ao contrário dos de Michael Moore, não retrata a verdade do passado recente, mas a verdade do futuro imediato.

Em 2008, Al Gore fará 60 anos, quarenta deles dedicados à ecologia. A Humanidade estará no linde dos 8 bilhões de pessoas e as mudanças climáticas terão avançado de tal forma que será irreversível a catástrofe há tempos anunciada pelos cientistas de todo o mundo. Mesmo que existam influentes vozes contrárias, como a do ambientalista de “direita” Bjorn Lomborg, ou a do romancista Michael Crichton, autor de “O Estado do Medo”, livro que faz parte das leituras prediletas de George W. Bush, “Uma Verdade Inconveniente”, pelo caminho contrário ao da ficção e das especulações, é uma denúncia feroz da insensatez do “homem viciado em petróleo” – segundo as palavras de Bush – e do estilo de vida do homem consumista, fundamento do desenvolvimento dos países mais industrializados.

Em “O Ambientalista Cético”, Lomborg sustenta a teoria de que as mudanças climáticas globais é uma invenção de um grupo de cientistas mal informados e de ecologistas catastrofistas. Em “O Estado do Medo”, Crichton imagina uma trama na qual uma sociedade secreta de guerrilheiros ecologistas planeja um atentado ambiental que é abortado por outro ambientalista “racional e equilibrado” surgido do Silicon Valley, no qual se pode entrever o rosto de Gordon Moore, presidente da Intel e ambientalista-filantropo da Conservation International, proprietário de um bom pedaço do Pantanal Mato-grossense.

Segundo o escritor Fred Barnes, no livro “Rebel in Chef”, Bush e Crichton, falaram o ano passado “durante uma hora na Casa Branca e no fim concluíram estarem completamente de acordo sobre a mínima responsabilidade humana no agravamento do efeito estufa”. A data coincide com a negativa final do presidente em assinar o Protocolo de Kyoto justificando que “seria danoso para a economia dos EUA”.

Depois de ter perdido a eleição presidencial do ano 2000 – mesmo tendo vencido no voto popular-, e após ter sido defenestrado pelo seu próprio partido, Al Gore retirou-se para sua fazenda no estado do Tennessee para repensar a vida. Foi ali, olhando o rio que corre ao longo de sua fazenda, um rio similar àquele que desce mansamente no início de “Uma Verdade Inconveniente” que decidiu assumir definitivamente a sua condição de ambientalista; uma filosofia de vida que começou quando era um universitário contestador na Universidade de Vanderbilt, em Nashville, pátria da country music.

Ao avaliar profundamente o rumo que daria à sua vida de “feijão verde” – como Bush costuma apelidá-lo – nesse segundo retiro espiritual à semelhança de um lama, decidiu se dedicar integralmente a esclarecer aos seus compatriotas, e ao resto do mundo, que o principal problema que a Humanidade enfrenta hoje é a mudança climática.

A virada

Da mesma forma que Sidarta, Al Gore iniciou a longa viagem para o conhecimento, principalmente em auditórios universitários, como anos antes já o tinha feito no Congresso dos EUA, quando era Senador na década de 70, convencendo seus pares sobre o perigo do aumento do buraco da Camada Ozônio, que culminou, felizmente, na assinatura do Protocolo de Montreal. Naquela ocasião o inimigo principal era Bush-pai, que o apelidara de “Homem-Ozônio”. Por causa da veemência das suas palavras no Congresso, os republicanos costumavam dizer que Gore injetava lítio nas veias para ficar tão aceso.

Naquela época, também foi ridicularizado por sua campanha em favor de universalizar a internet. Para os “geeks”, os fanáticos por informática do Silicon Valley, Gore é o verdadeiro “inventor” da internet e entre seus admiradores se encontram os articulistas da própria Wired. É bom lembrar que hoje Al Gore é consultor especial de Steve Jobs, fundador da Apple. Além disso, recentemente foi chamado por Larry Page e Eric Schmidt para fazer parte do conselho consultivo do Google e, por incrível que pareça, Jerry Yang, dono do Yahoo, decidiu fazer o mesmo.

No campo das comunicações, Al Gore possui em São Francisco um canal de televisão interativo denominado “Current TV”, cuja programação está voltada para as questões ambientais, para a análise política e para as tecnologias de ponta, sejam elas na informática ou nas fontes de energia renováveis.

Anos antes, trabalhando no seu primeiro livro, “Earth in the balance”, lançado em junho de 1992, viajou ao Mar de Aral quando já não era mais o quarto maior mar interior do mundo, e sim um deserto onde repousavam as carcaças de centenas de barcos que um dia saíram à pesca. Al Gore escreveu: “Enquanto um camelo caminhava pelo fundo morto de Mar de Aral, me pus a pensar na insólita situação daqueles barcos no deserto. Onde deveria haver ondas azuis esverdeadas batendo contra o casco, só havia areia quente estendendo-se até onde a vista alcançava”. Tal como Virgílio, Al Gore sentiu que tinha descendido ao Inferno. Teve então a convicção de que a sua missão seria a luta ambiental e, durante a sua participação na RIO 92, propôs a implementação de um “Plano Marshall Global” para prevenir os desastres que se avistavam no horizonte.

Avalizado por sua experiência de ambientalista herdeiro de John Muir, o fundador do Sierra Club e ativo admirador das batalhas anti-nucleares do Greenpeace original, aquele fundado pelos idealistas Jim e Marie Bohlen, Irving e Dorothy Stowe, Paul Cote e Robert Hunter, Al Gore deixou de lado a sua frustração de ter sido “o ex-próximo presidente dos EUA” e partiu para a batalha contra as mudanças climáticas. Foi assim, com toda essa bagagem, que decidiu fazer palestras ao longo dos EUA conscientizando a população, principalmente universitária, sobre este grave problema planetário. Um fator decisivo foi a devastação de Nova Orleans pelo furacão Katrina, que além do impacto climático, revelou uma nação paralela vivendo com um estilo de vida até então desconhecido pelos estadunidenses. A miséria social revelou-se a maior tragédia provocada por uma política oficial que se nega a admitir a importância do Protocolo de Kyoto.

Com apoio da melhor tecnologia da Apple, combinando humor, desenhos animados e tabelas com comprovados dados científicos, optou por uma apresentação multimídia mediante a qual ele explica à platéia as graves conseqüências que o aquecimento global está causando no nosso Planeta. Gore já fez sua apresentação mais de mil vezes em auditórios de escolas e salas de conferência de hotéis em cidades grandes e pequenas. Agora se apresentou em São Paulo com uma versão ligeiramente mais atualizada da que é apresentada no filme.

Numa dessas palestras, o produtor Lawrence Bender (dos filmes “A Mexicana”, “Pulp Fiction”, “Anna e o Rei”, “Cães de Aluguel”, “Kill Bill”) teve a certeza de que as apresentações de Gore eram matéria-prima para um documentário e, por ser ao mesmo tempo uma palestra emocionante, ele pensou que deveria ser transmitida numa escala nacional. A recente experiência de sucessos extraordinários com documentários como os de Michel Moore animou ainda mais Bender. Davis Guggenheim foi convidado para assumir a direção do roteiro de Scott Z. Burns, com produção executiva de Jeff Skoll, especialista em filmes políticos como “Syriana” e “Boa Noite, Boa Sorte”.

Lançado em fevereiro último no famoso Festival de Sundance criado por Robert Redford, o filme mereceu grandes elogios de parte da crítica estadunidense, mas a consagração foi em maio último no Festival de Cannes, onde ele virou uma verdadeira estrela hollywoodiana. Selecionado “Hors Compétition”. Nessa ocasião, Al Gore fez a seguinte declaração: “Na língua chinesa, a palavra ‘crise’ é representada par dois ideogramas: um deles significa ‘perigo’ e o outro ‘oportunidade’. Em inglês ou em francês [como também em português], a palavra ‘crise’ se entende somente sob o sentido do medo e não o da oportunidade que oferece uma crise. O que nos deve motivar é a oportunidade que nos oferece esta crise para desenvolver novas tecnologias”.

Verdades são difíceis de ouvir

O filme narra, em duas histórias paralelas, a vida de Al Gore e uma de suas palestras perante um público principalmente jovem. Al Gore fala de sua vida simultaneamente para Guggenheim e o público, revelando as surpreendentes e emocionantes etapas da sua vida pessoal. O diretor dá ênfase a três eventos-chave na vida do ex-vice-presidente que ajudaram a moldar seu envolvimento com o meio ambiente: o acidente de carro que quase tirou a vida de seu filho caçula; a morte de sua irmã com câncer de pulmão, levando em consideração que sua família tinha uma plantação de tabaco; e a derrota na campanha presidencial de 2000 contra George W. Bush. “A possibilidade de perder um filho foi uma experiência muito dolorosa que me ensinou muitas lições. Por exemplo, nunca havia compreendido até então que um dos segredos da condição humana é que o sofrimento une as pessoas. Aprendi que quando outras pessoas que experimentaram a dor que eu estava sentindo vinham até mim, acabávamos nos conectando, alma com alma, de uma forma transformadora e curadora. No final, percebi de uma maneira totalmente nova a possibilidade de perdermos a nossa preciosa Terra (ou, pelo menos, a sua condição de hábitat para os humanos) de um modo que nunca havia percebido antes, nem emocionalmente, nem espiritualmente”, disse Al Gore. Quanto ao título original do filme, “An Incovenient Truth”, ele explica: “Algumas verdades são difíceis de ouvir porque, se você realmente as ouvir, e entender que elas são realmente verdade, então você tem que mudar. E mudar pode ser muito inconveniente”.

Concebido de forma inteligentíssima como uma metalinguagem, Al Gore subliminalmente associa as mudanças climáticas ao nazi-fascismo. Não de forma explícita, evidentemente, mas através das citações históricas com as quais ele tenta motivar as pessoas a tomarem uma atitude. Tanto nas suas palestras quanto nos seus discursos políticos, ele menciona reiteradamente Winston Churchill. O premier inglês advertia a seus concidadãos e ao mundo inteiro sobre os perigos do surgimento do nazismo que culminaria na Segunda Guerra Mundial. Ele sempre menciona essa história assim: “Quando a tempestade começava a se formar na Europa continental, Churchill emitiu diversos avisos sobre o que estava em jogo; ele afirmou que o governo que então estava no poder na Inglaterra não tinha a certeza de que a ameaça era real, que persistia num estranho paradoxo apenas decidido a ficar indeciso, resolvido a ser irresoluto, firme ao ser levado pela corrente, sólido na fluidez, todo-poderoso para ser impotente”. Finaliza a citação com estas palavras: “A era do adiamento, das meias-tintas, do expediente apaziguador e dilatório está prestes a terminar; em seu lugar, estamos entrando num período de conseqüências”. Nada mais claro para se referir ao governo Bush e à sua teimosia em negar as evidências científicas da gravidade da situação provocada pelas mudanças climáticas.

Um dos líderes políticos que aderiu à sua filosofia é Arnold Schwarzenegger, governador do estado da Califórnia, e mais uma estrela de Hollywood que se soma a Jane Fonda, George Clooney, Julia Roberts, Robert Redford, Peter Brosman, Sigourney Weaver, Sean Connery, Angelina Jolie, Leonardo DiCaprio, etc. na luta ambientalista. Ao constatar essa radical mudança de rumo na influente indústria cinematográfica, Gore disse recentemente: “Acredito que estejamos nos aproximando de um ponto de virada no qual o país começará a enfrentar seriamente o problema climático e a maioria dos políticos de ambos os partidos competirá entre si para apresentar soluções significativas. Ainda não estamos perto disso, mas um ponto de virada é por definição um momento de mudanças rápidas; penso que o potencial para esta mudança está crescendo, vemos artistas, vemos intelectuais, vemos pastores evangélicos manifestarem a sua opinião; a General Electric e os republicanos administradores de empresas dizerem que temos que tratar destas questões, assim como as organizações de base. Tudo isso está acontecendo ao mesmo tempo porque, por caminhos diferentes, as pessoas estão vendo uma nova realidade. A relação entre a nossa civilização e a Terra transformou-se radicalmente”.

“Uma Verdade Inconveniente” é o primeiro depoimento franco e aberto de um dos protagonistas da política mundial das duas últimas décadas a reconhecer a possibilidade da autodestruição do Planeta. Mesmo que o caminho tivesse sido aberto por Mikhail Gorbatchov, que também está dedicando a sua vida ao meio ambiente, principalmente às questões relativas à geopolítica dos recursos hídricos na Cruz Verde Internacional, foi o ativismo de Al Gore que abriu o caminho para que a luta ambiental se instalasse dentro do próprio Congresso dos EUA. Atualmente, nos mais altos estamentos políticos, já se questiona abertamente o modo de vida das sociedades industrializadas. Com um jeito ainda tímido, em seus discursos no G-8, Tony Blair reconhece que o principal problema da humanidade hoje já não é mais o terrorismo islâmico, nem Bin Laden e sua Al Qaeda, mas o efeito estufa.

De forma clara e bastante didática no filme, Al Gore transmite aos indecisos a certeza de que caminhamos para um final apocalíptico. Sem dramatizar com palavras, o que ele mostra são as imagens. O Monte Kilimanjaro 20 anos antes com todo o esplendor do seu cone nevado e hoje, sem neve, sem vida. As geleiras da Antártica que se desmoronam em pedaços gigantescos para se desmancharem nas águas oceânicas levando ao inevitável aumento do nível do mar. É mais do que certo que nas próximas duas décadas milhões de pessoas virarão refugiados ambientais; que as águas farão desaparecer não somente Nova Iorque como grande parte dos Países Baixos e que as defesas construídas contra essa ameaça pelo governo holandês de nada servirão apesar de serem hoje as barreiras mais avançadas tecnologicamente; que Bangladesh, grande parte da Ásia, e todos os estados insulares do Pacífico Sul desaparecerão sob a água, definitivamente.

No filme e nas suas palestras, Al Gore destrói com dados concretos os três grandes mitos existentes sobre o aquecimento global:

• Sobre as dúvidas quanto à realidade do efeito estufa, ele confirma que milhares de estudos científicos provam que o aquecimento é real e que constitui uma séria ameaça para a vida no Planeta.

• Sobre se as políticas ambientais afetam a economia dos países, ele demonstra com modelos econômicos de autorizadas personalidades do mundo que as políticas públicas baseadas num planejamento ambiental estimulam as economias dos países.

• Que o aquecimento global não é somente um ciclo natural da Terra, mas o resultado das atividades humanas no campo industrial.

As informações que fornece são exaustivas e definitivas. Um dado concreto é que quase todas as atividades industriais dependem do desflorestamento e da desidratação da Terra. Além do corte das árvores para produzir madeira industrializada e carvão vegetal, a construção de hidroelétricas para gerar energia elétrica com as suas indispensáveis barragens é responsável pela inundação de enormes áreas emissoras de gases de efeito estufa, reduzindo a camada atmosférica e aumentando o nível térmico mundial. Algumas das conseqüências do desflorestamento são a desertificação, as secas, as inundações e o incremento do número de furacões, tufões e outros tipos de tempestades de grande dimensão. O aquecimento atmosférico que derrete as calotas polares leva à dessalinização das águas oceânicas e a mudanças radicais nos ecossistemas e na capacidade imunológica de todos os seres vivos.

Face a esse catastrófico cenário, Al Gore insiste em que “a solução para a crise climática global exige uma ação rápida, sábia e grande de nossa parte”. Na mensagem aos empresários, ele lembra que “se destruirmos o Planeta não haverá economia que sobreviva”. E ataca frontalmente a causa principal: a cultura dos países industrializados concentrada no consumo, na ganância e na expansão dos negócios em níveis insustentáveis. Todos esses conceitos os ambientalistas do mundo inteiro conhecem de longa data. O inédito é que um político do mais alto nível executivo e legislativo da maior potência do mundo afirme, com todas as letras, que é necessário mudar de vida para que o Planeta possa sobreviver. E assim, como se estivéssemos vendo quadros de Frederick Remington ou de John James Audubon, ele volta ao clima pastoril existente no início do filme, à beira do seu rio, depois de ter percorrido o Planeta e revelado ao mundo quão perto estamos do desastre e do fim da aventura humana.

* É editor da revista ECO•21, onde este texto também foi publicado.

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Comentários 1

  1. Roberto diz:

    O que polui mais etanol ou gasolina?