Reportagens

Água benta

Autor de estudo pioneiro sobre onças-pintadas no Pantanal volta a região para nova investigação e constata que a população desses felinos vai muito bem, obrigado.

Manoel Francisco Brito ·
8 de novembro de 2006 · 18 anos atrás

Vinte oito anos depois de desembarcar no Pantanal para participar de um estudo pioneiro, sob a orientação do americano George Schaller, sobre a ecologia das onças do Pantanal (foto), o biólogo Peter Crawshaw está de volta à região. Chegou lá em julho, como o mais novo membro da equipe de funcionários do Ibama no Parque Nacional do Pantanal Matogrossense e a missão de fazer um novo levantamento sobre a situação do felino naquela área. Seu trabalho está dividido em duas partes. A primeira, prevista para terminar em julho do ano que vem, consiste numa investigação preliminar sobre a abundância de onças no local, fundamental para justificar a execução da segunda parte do projeto – um estudo de longo prazo em que os animais serão acompanhados com GPS instalados em coleiras atadas aos seus pescoços.

É uma mudança e tanto em relação ao equipamento que tinha à disposição há quase três décadas. Naquela época, os colares carregavam radio-transmissores VHS. Para captar os sinais, era preciso estar relativamente próximo de bichos que têm o hábito de patrulhar territórios que passam de 100 quilômetros quadrados – coisa que na maioria das vezes não era possível. Com o GPS, que é monitorado via satélite, impossível é o animal sumir completamente. “Dá para saber passo a passo tudo o que ela faz 24 horas por dia, 7 dias por semana”, diz Crawshaw. “Com isso, pode-se descobrir em três meses coisa que talvez nem em dois anos seria possível saber”. É o tipo de informação que ajuda muito a formular políticas mais precisas de proteção à espécie.

Talvez mais importante até do que a tecnologia empregada, é que Crawshaw quer investigar o comportamento das onças numa região que está em situação privilegiada do ponto de vista da conservação. Os 135 mil hectares do Parque Nacional, bem como os quase 60 mil hectares de Reservas Particulares no seu entorno, viram a presença humana minguar vertiginosamente ao longo das últimas três décadas. É como se naquele pedacinho de pouco mais de 1% da área total do Pantanal, a natureza tivesse conseguido o milagre de voltar no tempo e recriar o contexto que lá havia há 200 anos, quando o gado e o homem começaram a ocupá-lo atrás de suas pradarias de pasto natural.

Claro, não se trata de um retorno as condições exatas que existiam antigamente. Mas pelo menos, um dos principais fatores da mortalidade de onças no Pantanal, o homem e seus rebanhos, se foram dali. “Isso é uma das características do local que torna o estudo de longo prazo tão importante”, diz Crawshaw. Vai dar para acompanhar a vida de predadores de topo sem a sombra de seu pior inimigo. Isso, por si só, já justificaria o estudo. Mas Crawshaw, mesmo sem ter terminado o seu levantamento preliminar sobre o estado da população local de onças, já tem indícios suficientes que lhe dão mais um motivo para levar adiante uma investigação de mais fôlego. Os sinais de que as onças voltaram a ser abundantes na região são acachapantes. “Não só aqui na área do Parque, mas no Pantanal como um todo”, diz o biólogo.

Tropeçando em onças

E olha que ele e sua assistente de campo, a bióloga Micheline Vergara, ainda nem concluíram a sua investigação preliminar. “Não colocamos as armadilhas fotográficas”, conta ela. Serão 12 no total e breve deverão estar instaladas. Mas os dois não precisam das imagens para saber que onça é coisa que, ainda bem, não anda em falta no Pantanal. A facilidade com que se ouve os esturros de pintadas ou se acham pegadas, inclusive de onças pardas, nas áreas mais secas da região, são evidências de que a densidade populacional dessas espécies anda alta. Numa passagem rápida, de menos de uma hora no rio Taquaralzinho, o casal de pesquisadores parou três vezes para examinar duas praias e uma barranca. Em todas encontrou pegadas de onça (foto).

Como fazem sempre que esbarram num sinal de presença do animal, mediram a impressão das patas no terreno e marcaram sua posição no mapa com a ajuda de um GPS. Além de tantos indícios, Crawshaw e Vergara não passam uma semana sem ouvir algum relato de avistamento de onça, não apenas na região do Parque, mas pelo Pantanal como um todo. No início de outubro, Alan Rabinowitz e Luke Hunter, da Wildlife Conservation Society num espaço de quatro dias, viram três onças em margens de rios ao Norte do Parque, entre eles o macho que ilustra a abertura desta reportagem. Nessa mesma época, Vicente, um índio Guató que mora numa barranca do Paraguai ao Sul do Parque, avistou outras três atravessando o rio. No caso dos gringos, houve um excesso de sorte. No caso do índio, pelo menos de seu ponto de vista, um excesso de azar.

Ele acha que as onças querem comer sua mãe, de 102 anos de idade e lamentou estar sem bala para dar cabo dos bichos. Crawshaw, junto com Vergara, tem avistado onça em condições mais normais. Viu três desde que aportou de volta no Pantanal. A última, uma fêmea, ele fotografou em setembro, numa praia na Baía do Burro, próxima à sede do Parque (foto). Mesmo assim, é um número ótimo de avistamentos, principalmente se comparado à situação que encontrou por aqui em 1978, quando chegou na fazenda Acurizal, hoje uma das reservas no entorno da Unidade de Conservação, para trabalhar com Schaller. No ano em que passou lá, viu e colocou colares em apenas três delas, uma parda e duas pintadas. “Não foi nada fácil encontrá-las. Tivemos que correr atrás”, conta.

O que reverteu esse quadro não foi nenhuma política de conservação adotada pelo Estado brasileiro, mas uma reação da natureza. Em 1974, o Pantanal sofreu uma das maiores cheias de sua história e o volume de água que chegou com ela não recuou mais. A Baía do Burro, um imenso espelho d’água que de Norte a Sul tem 9 quilômetros de extensão era, antes da cheia, uma pradaria de capim natural coalhada de cabeças de gado. Benjamim Dias (foto), 66 anos, funcionário do Parque Nacional, cansou de cavalgar por ela quando era encarregado da antiga fazenda do Caracará, da qual a atual Baía fazia parte. Mas há muito ele se desloca por ali usando uma voadeira. A fazenda tinha 64 mil hectares e desde 1974, cerca de 70% de seu terreno original, hoje agregado à Unidade de Conservação, submergiu para nunca mais reaparecer.

Benção dupla

Quando Crawshaw chegou pela primeira vez no Pantanal, quatro anos depois da grande cheia, a guerra entre fazendeiros e a fauna local ainda estava fresca na memória de quem tinha ficado na região. “Era comum ouvir relatos de fauna sendo caçada em massa por aqui”, conta Crawshaw. E as onças sofriam duplamente. Além de serem implacavelmente perseguidas, seu estoque de comida natural passou por redução drástica. As capivaras enfrentavam a ira humana por competir pelo pasto com o gado. Não era raro testemunhar fuzilamentos em massa da espécie. O mesmo drama viviam os jacarés, cujas peles era cobiçadas pela ação de grupos de caçadores conhecidos como coureiros. Mas a subida das águas reverteu completamente esse contexto e a onça acabou duplamente abençoada.

O alagamento em massa inviabilizou a pecuária em várias partes do Pantanal e mandou seu mais mortal inimigo, o homem, para longe. Melhor ainda, ao partirem, os fazendeiros abandonaram por lá um rebanho nada desprezível, que serviu para alimentar as onças enquanto seus estoques de alimentos naturais se recuperavam. Todos esses fatores e mais uma repressão implacável à caça no início dos anos 80 criaram um círculo virtuoso que começou a mostrar sua cara em meados da década passada, quando o crescimento da população de onças ficou evidente.

Há sempre o risco de um dia as águas baixarem novamente, deixando a bicharada exposta à pressão humana. Na verdade, isto já deveria estar acontecendo, pois o regime de águas no Pantanal, historicamente, funciona em ciclos de aproximadamente 15 anos. Mas, por enquanto, não há sinal de que elas estão refluindo. Pelo contrário. “Eu acho que um dia toda essa água vai escorrer”, diz Dias, o funcionário do Parque. “Mas vai demorar muito”. Que Deus o ouça.

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