Imagine a Terra como um restaurante e à nossa frente um cardápio bem diverso. Em vez de comer um prato de petróleo regado a carvão mineral, podemos passar a comer os pratos com sabor de energia renovável. Ao invés do prato do desmatamento, podemos experimentar o banquete da conservação, das reduções das emissões de gases de efeito estufa. Essas novas opções são mais caras, porém mais saudáveis. Mas quem vai pagar a conta?
A analogia, feita por Marcelo Rocha, pesquisador do IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas) e pesquisador da ESALQ/USP, dá o gosto de uma receita que o Brasil está provando em Nairóbi, Quênia, na COP 12/MOP 2, a 12ª Conferência das Partes signatárias da Convenção do Clima e o 2º Encontro das Partes signatárias do Protocolo de Quioto.
Para começar esta dieta alguns países terão que abrir mão de pratos tentadores, porém “gordurosos”. Quando pensamos nos causadores do aquecimento global, os suspeitos de sempre são os países desenvolvidos (ou do Anexo 1, no linguajar do Protocolo de Quioto) porque têm o mais alto padrão de consumo de combustíveis fósseis. Só que o Brasil também está na lista dos que mais contribuem para o aquecimento global. Apesar de ter uma matriz energética relativamente “limpa”, o país apresenta os índices mais altos de emissão por desmatamento. A proporção é de 75% das emissões para derrubada de florestas e 25% para os combustíveis fósseis. O que agrava o nível de carbono na atmosfera são as queimadas no processo de conversão da mata em terra para agricultura e pecuária. Ou, em outras palavras, a expansão da fronteira agrícola.
O desmatamento tropical está ocorrendo a taxas nunca antes observadas. No relatório State of the World’s Forests 2005, a FAO indica que apenas 7 países (Brasil, Indonésia, Sudão, Zâmbia, México, República Democrática de Congo, e Myanmar) perderam mais do que 71 milhões de hectares de florestas entre 1990 e 2000. De acordo com o relatório, cada um desses países perdeu uma média anual de pelo menos 500.000 ha de florestas. O Brasil (desmatamento anual médio de 2,3 milhões de ha) e Indonésia (1,3 milhões de ha) lideram a lista de destruição. O relatório também mostra que vários outros países perderam uma parte absurda de suas florestas em um período de apenas 10 anos: Burundi, 90%; Haiti, 57%; Santa Lúcia, 49%; Micronésia, 45%; El Salvador, 43%; Ilhas Comores 40%; Ruanda 39%; Níger, 37%; Togo 34%; Costa do Marfim, 31%; Nicarágua, 30%, para mencionar apenas os países com índices de destruição igual ou superior a 30%. Os dados estão no documento do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para Ambiente e Desenvolvimento.
Mas há boas notícias no cardápio. Em Nairóbi pretende-se aprofundar a discussão sobre formas de incentivar economicamente a redução do desmatamento tropical. Nessa história, o governo brasileiro parece que resolveu começar a mudar sua dieta. Isso porque na COP de Montreal, em 2005, um bloco de nações em desenvolvimento representadas por Papua Nova Guiné e Costa Rica apresentou uma proposta considerada pioneira na conferência: receber dinheiro para manter as florestas em pé. O “Coalizão das Florestas Tropicais” argumentou que os países tropicais estão servindo como reguladores do clima aos países desenvolvidos, mas sem dividir os custos. A proposta seria de que o desmatamento evitado gerasse créditos de carbono comercializáveis. Este era o pontapé inicial das discussões incluindo o instrumento “verde”. A partir daí, as florestas passaram a ganhar atenção ainda que pequena no âmbito das reduções mundiais. O Brasil, que tem a maior floresta tropical do mundo, entrou no “bolo”, mas depois de resistir a criar mecanismos de diminuição dos gases de efeito estufa a partir da redução do desmatamento.
Pensamento arcaico
Em 1999, o documento oficial ¨Ponto de vista do Brasil sobre o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo¨, preparado pela Coordenação Geral de Mudanças Globais do Ministério Ciência e Tecnologia, mostrou que o Brasil não parecia estar muito disposto a incluir a conservação na pauta das mudanças climáticas. Defendiam que o desmatamento não contribuía para a mitigação do efeito estufa. “(…) sob o ponto de vista estrito da atmosfera, ou ainda da Convenção do Clima, o fato de se conservar uma floresta existente não contribui para mitigar o efeito estufa, ou em outras palavras, tornar a mudança do clima menos severa. Não há variação na concentração de nenhum gás de efeito estufa na atmosfera pelo simples fato de cercar uma floresta e, supostamente, impedir que ela seja devastada¨.
A posição brasileira parecia confusa em relação ao assunto. Por um lado, se considerava que fazer conservação florestal não era uma ação, pois bastava ¨botar uma cerca na floresta¨ e tudo estava resolvido. Por outro lado, a conservação seria irrelevante. “(…) Não há como se garantir que um projeto de preservação de florestas evite o desflorestamento. Primeiramente, seria necessário uma rigorosa fiscalização da área, e, ainda que isso seja feito de forma eficiente, é uma tarefa praticamente impossível evitar queimadas, tanto provocadas pelo homem, quanto por causas naturais. Além do mais, ainda que se consiga preservar uma área, não se pode garantir que o entorno da mesma seja desmatado, sendo que este entorno pode, inclusive, envolver países vizinhos”.
Mesmo com todos os argumentos, agora começam as considerações de que evitar o desmatamento pode ser um bom negócio para o clima global e para o Brasil. O foco da proposta brasileira em Nairóbi é que as ações de redução do desmatamento devem ser financiadas voluntariamente pelos países Anexo I, mas sem representar compromissos de redução de emissões de gases de efeito estufa por parte dos países em desenvolvimento (sem gerar créditos de carbono). Para Haroldo Machado Filho, assessor especial da Coordenação-Geral de Mudança Global do Clima no Brasil, as emissões por desmatamento continuam não sendo relevantes pois os esforços mundiais estão focados nas reduções de gases de efeito estufa a partir de combustíveis fósseis. “É uma distorção perversa culpar as mudanças no uso da terra e florestas, sobretudo no Brasil, pelo aquecimento global, mesmo porque o Brasil é responsável por uma parcela ínfima das concentrações na atmosfera, considerando que os principais responsáveis pelas emissões históricas e atuais são os países desenvolvidos”.
Um tímido, porém importante, avanço já que a proposta ainda está no âmbito das idéias, sendo negociada na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, que é mais generalizada, e não do Protocolo de Quioto, que é mais específico.
Mas antes mesmo da proposta brasileira ser encampada pela ministra Marina Silva e ganhar os outros ministérios, Paulo Moutinho, coordenador do Programa de Mudança Climática do Ipam – Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, já defendia a idéia do desmatamento evitado visto o alto índice de emissões gerados pela mudança de uso da terra. Ele diz que um dos problemas na época das discussões do protocolo foi que o desmatamento evitado estava sendo proposto dentro do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). “Dizia-se não ser possível num sistema que é baseado em projetos, garantir que uma redução do desmatamento numa área não resultasse no aumento em outra área, caracterizando assim um “vazamento”. Reduz emissão aqui e aumenta ali. O balanço neste caso seria zero”. A polêmica retoma um ponto importante: por que os países ricos iriam pagar sem levar nada em troca? Os economistas já diziam que não há almoço de graça. “A proposta do Brasil contém muitos aspectos da proposta do IPAM. Nosso papel é tentar demonstrar que alguns pontos precisam de melhorias. Um deles é a questão da sustentabilidade financeira da proposta. O governo propõe um fundo. A gente acha que só o mercado de carbono pode fornecer recursos para a proposta em longo prazo”, diz Moutinho.
Licença para poluir
Em termos práticos, a diferença está no benefício que os países ricos teriam ao apoiar ações que reduzissem o desmatamento tropical. Na proposta original de Papua Nova Guiné, tais ações deveriam gerar créditos semelhantes aos obtidos através do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Na proposta brasileira, isso ¨facilitaria¨ que os países desenvolvidos pudessem atingir suas metas de emissão sem que medidas concretas fossem tomadas para reduzir os gases em seu próprio território. Para Marcelo Rocha, pesquisador do IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas) e pesquisador da ESALQ/USP, “o desafio é como viabilizar isso pausando o aumento das emissões nos países industrializados. De nada adianta conservar florestas por um lado e continuar poluindo por outro”.
Uma segunda dificuldade é de ordem técnica. Por ter sido abandonado na discussão de Protocolo de Quioto, pouco se avançou em metodologias de mensuração do resultado do desmatamento evitado. O Brasil tem tecnologia através de imagens de satélites o que o torna muito bom neste campo. Mas é preciso qualificar a redução do desmatamento, o quanto veio da ação direta do governo e o quanto é devido aos outros fatores. “Mas isto não impede a aplicação da proposta de redução compensada (que o Brasil não incorporou na versão oficial a ser apresentada em Nairóbi). Se os níveis se mantiverem, independente do mercado internacional, vão provar que as compensações são merecidas”, enfatiza Paulo Moutinho. Mas a proposta ainda não conta com esse nível de detalhe. “Ainda está se discutindo conceitos, idéias. Depois é que parte para uma discussão mais técnica, de metodologias. Também não acho que sai de Nairóbi um conceito definido”, complementa Marcelo Rocha.
Carbono amazônico
Outra questão que ainda precisa de respostas é o “carbono amazônico”. Sabe-se pouco sobre a dinâmica das florestas tropicais. Aqui no Brasil, muitos estudos propõem-se a enriquecer este lado da moeda para oferecer bases mais científicas aos debates. Um exemplo é o LBA – Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia, que foi criado em 1998 para estudar as interações entre a Floresta Amazônica e as condições atmosféricas e climáticas em escala regional e global. O projeto, que no início de 2007 começa a fazer a expedição científica BARCA – Balanço do Carbono da Bacia Amazônica, pretende chegar a números mais expressivos dos níveis de absorção do carbono nos diferentes pontos da floresta Amazônica. “O balanço que nós fizemos até agora aponta para algo em torno de meia a uma tonelada de hectare/ ano de absorção positiva de carbono em excesso, mas é preciso confirmar isso com a expedição para chegar a um número mais definitivo. Não acreditamos que o número irá variar muito” explica Flávio Luizão, coordenador regional do LBA. O estudo é complexo. Regiões ao sul do Amazonas, na transição com o Cerrado têm uma emissão basicamente igual à absorção do carbono. Outras áreas como Santarém, no Pará, têm uma emissão maior do que a absorção, ou seja é um balanço negativo, está perdendo carbono para a atmosfera. Em Manaus, mais a oeste da Amazônia, há uma absorção positiva.
Uma decisão está tomada neste restaurante. Com o agravamento do aquecimento global, ações que reduzam em larga escala as emissões oriundas do desmatamento terão que ser adotadas. Quanto mais cedo se aprender a receita, melhor será o sabor.
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