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Entregue à própria sorte

Área de mata no Sul do Amazonas que está sendo devastada pelo garimpo e a inoperância das autoridades só sobreviverá se a natureza não lhe tiver dado grande depósito de ouro.

Leandro Prazeres ·
24 de janeiro de 2007 · 18 anos atrás

Mesmo de olhos fechados, dá para perceber que o Vale do rio Juma, no Sul do Amazonas, deixou de ser a área de floresta razoavelmente preservada que era até três meses atrás. Lá, o som que mais se ouve atualmente vem de gritos humanos e dos motores de sucção que 5 mil garimpeiros utilizam para revolver leitos de igarapés em busca de ouro. Mas é preciso abrir os olhos para se ter a real dimensão da devastação que chegou com os novos ruídos. O Juma, um tributário da bacia do rio Aripuanã, virou sério candidato a embicar num caminho sem volta rumo ao assoreamento. A mata local já perdeu cerca de 50 hectares (foto). Infelizmente, não deve ficar só nisso. O governo federal prepara uma outorga que vai legalizar a exploração do ouro em 10 mil hectares da região.

O ouro no Vale do Juma foi descoberto por meia dúzia de assentados que, cansados de tentar viver da agropecuária, chegaram no local em busca de nova fonte de renda. No final de outubro, encontraram ouro nos leitos de cinco igarapés (conhecidos pelos garimpeiros como grotas) e iniciaram a extração. O teor de pureza e a facilidade com que o ouro podia ser explorado encantou quem se aventurou na empreitada. “Eu já trabalhei em Serra Pelada e nem lá eu tinha visto coisa parecida. O ouro aqui é fácil de extrair e seu grau de pureza chega a 99%. A gente nem precisa usar o azougue (mercúrio) para limpar”, diz José Ribamar, um pioneiro do Juma.

Claro que seria impossível guardar segredo sobre algo tão promissor. Em dezembro, a notícia sobre a existência de um novo eldorado na área do Juma se espalhou pela Amazônia. No Sul do Amazonas, agricultores largaram as enxadas e acorreram ao novo garimpo. De Rondônia, Mato Grosso e Pará, vieram garimpeiros “rodados” (desempregados) – que continuam chegando a região na esperança de que ela contenha ouro suficiente para encher os bolsos dessa multidão. Todos os dias, dezenas de ônibus e caminhões abarrotados de gente chegam à cidade de Apuí, escala obrigatória para quem se desloca em direção ao garimpo.

Até o momento, a exploração do ouro é feita de maneira artesanal, sem o auxílio de dragas. Mas nem por isso seu impacto pode ser considerado tolerável. Os leitos dos igarapés por onde os garimpeiros passam ficam completamente destruídos. O ouro no Juma se encontra em uma camada de cascalho que fica sob terra e o húmus que dão fertilidade à floresta. Os garimpeiros retiram essa camada com pás e picaretas e fazem montes de terra que depois serão “lavados”, um processo em que o ouro é separado da terra e de outros minerais por meio da decantação.

Visão do inferno

Para se chegar ao garimpo, é preciso pegar um dos “paus-de-arara” que saem de Apuí durante a manhã. Entrei num deles e encarei 70 quilômetros de uma estrada de barro esburacada que termina numa margem do Juma, terra pública onde deveria haver apenas um assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Em seu lugar, subiu uma acampamento improvisado, onde dezenas de pessoas aguardam uma vaga para entrar na área do garimpo, que já está superlotada. Para chegar lá, só de barco. Peguei uma voadeira para percorrer a distância até o novo eldorado e me deparei inicialmente com um cenário natural espetacular.

O Juma tem águas levemente escuras que durante a seca, formam pequenas corredeiras. A mata ao longo de suas margens está bastante preservada (foto) e a presença da fauna nela, principalmente aves, ainda é marcante. Mas quanto mais a embarcação se aproxima do garimpo, mais dominante fica o som das bombas de sucção. De certo modo, ele serve para preparar os olhos para o baque visual que qualquer um sofre depois de saltar num porto improvisado próximo do qual milhares de garimpeiros construíram barracões de madeira para lhes servirem de abrigo. Uma trilha de 200 metros entre galhos e muita lama leva à primeira grota. Destruição é a palavra exata para definir o que se enxerga.

O leito do igarapé simplesmente não existe mais. Foi totalmente desviado pelos buracos abertos em busca do minério. Alguns buracos têm 25 metros quadrados e chegam a ter seis metros de profundidade. Toda a vegetação das margens foi devastada e a água, antes límpida e potável, hoje não passa de uma massa líquida repleta do barro revirado pelos garimpeiros. Mais adiante, chega-se ao espaço mais cobiçado desse novo eldorado, a grota rica, assim batizada porque é lá que fica o igarapé com maior concentração de ouro. Nele, trabalha um milhar de homens com água pela cintura.

Tudo pelo social

Apesar dos impactos ambientais inquestionáveis do garimpo, além do fato de ele estar ocorrendo sobre terras públicas, os governos Federal e Estadual, certamente sensíveis aos votos dos garimpeiros e suas famílias, estão fazendo tudo para legalizar o eldorado do Juma. Erra quem imagina que por detrás da iniciativa existe alguma preocupação ambiental. “O garimpo teve um efeito social importante naquela região. Muitas pessoas estão tirando seu sustento do ouro e da cadeia econômica que surge a partir dele. O garimpo atraiu muita gente que vivia nos bolsões de miséria que ainda existem na Amazônia e fechá-lo seria precipitado”, diz a chefe do grupo interministerial formado pelo governo federal para ordenar o garimpo, Maria José Salum, do Ministério de Minas e Energia.

“Toda atividade humana gera impacto. Não adianta pensar em fechar o garimpo porque não haveria condições materiais e físicas de se fazer isso. O mais sensato é tentar mitigar os danos”, diz o secretário de Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, Virgílio Viana. O diabo é que a história ensina que isso nunca vira ação de governo. Ao contrário. As autoridades se esmeram em ampliar a área que pode ser devastada – no caso do novo garimpo, mais 10 mil hectares – desde que dê para justificar a destruição com benefícios econômicos e sociais.

Na semana passada, representantes dos governos Federal e Estadual se reuniram com os membros da recém-criada Cooperativa dos Extrativistas Minerais Familiares do Rio Juma (ainda sem sigla). Eles até discutiram medidas imediatas que deverão ser adotadas pelos garimpeiros para minimizar os danos ambientais. Elas incluem a construção de uma barragem que impeça que a água de igarapés explorados, carregada de sedimentos, chegue até o Juma, o compromisso de extrair o ouro sem o uso de máquinas pesadas e o emprego do mercúrio, a reposição da terra retirada, reconstrução do leito natural das grotas e o reflorestamento da área desmatada.

Ninguém discordou das propostas porque no fundo os envolvidos suspeitam que os garimpeiros não farão nada e as autoridades não vão cobrar. “Em todos esse anos atuando em garimpo na Amazônia, eu ainda não vi nenhum lugar onde esses compromissos foram cumpridos”, diz o coordenador de fronteiras da Polícia Federal, Mauro Sposito, do alto de sua experiência de 26 anos trabalhando na Amazônia. Até mesmo Salum reconhece os riscos inerentes à tentativa de se criar ali no Juma um garimpo que poderia ser chamado de sustentável. “Isso nunca foi feito no Brasil. Temos algumas experiências incipientes em Minas Gerais, mas sabemos do risco que corremos. O ônus, se der errado, será sempre nosso”, avaliou.

Futuro incerto

Enquanto termos de compromisso e acordos vão sendo traçados dentro de gabinetes, o futuro do “Eldorado do Juma” vai sendo escrito à revelia do poder estatal. A recente descoberta de ouro em um igarapé ao sul da área já explorada, no igarapé do Chocolate, vai atrair mais gente para a região. O superintendente em exercício do Ibama no Amazonas, Mário Lúcio Reis, teme que a febre do ouro aumente de forma insustentável a presença do homem naquela região. “O que nos preocupa são as novas frentes de trabalho que estão surgindo no meio da mata, em áreas ainda mais distantes. O que acontece num garimpo é sempre imprevisível”, afirma.

O representante do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) em Apuí, Izac Theobald, foi um dos primeiros enviados governamentais à área. Mesmo alegando que confia no poder regulador e fiscalizador do Poder Público, Izac é enfático ao definir os riscos que a região corre. “O impacto ambiental de um garimpo é incalculável. Não temos como saber quantas espécies endêmicas já perdemos e quantas mais poderemos perder, na medida em que o garimpo aumente. Uma coisa é certa: aquela região nunca mais será a mesma”, diz.

A certeza de que se está cozinhando um desastre ambiental e social na área enquanto parte das autoridades discute como criar algo que parece impossível, um garimpo sustentável, faz com que alguns lembrem que talvez a natureza se encarregue de fazer sua própria defesa, com depósitos de ouro menores na região do Juma do que a cobiça dos homens os faz crer. “Nós estamos fazendo estudos mais aprofundados, mas até o momento, constatamos que os depósitos de ouro no Vale do Juma acontecem em um terreno que, geologicamente, não seria propício para isso. Tudo leva a crer que seja apenas um depósito superficial e que não haja grandes reservas auríferas”, explicou Walter Lins Arcoverde, diretor de Fiscalização do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Pelo bem da área, tomara que seja verdade.

* Leandro Prazeres é jornalista e trabalha no jornal A Crítica, de Manaus.

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