Reportagens

Cerrado na berlinda

Estudo da Embrapa e do Ministério do Meio Ambiente que afirma que 39% do Cerrado foram desmatados é considerado otimista e reabre discussão sobre como barrar a degradação.

Gustavo Faleiros ·
23 de fevereiro de 2007 · 18 anos atrás

Desde que circularam pela primeira vez, no fim de 2006, os resultados da pesquisa encomendada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) à Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) sobre os remanescentes da vegetação original do Cerrado, causaram um sentimento de descofiança em pesquisadores e ambientalistas. Na segunda semana de fevereiro, quando o mapeamento foi finalizado e oficialmente divulgado, a pulga continuou atrás da orelha. A constatação de que 61% do bioma ainda se mantêm intactos tem sido considerada otimista.

Estudos anteriores encontraram resultados diferentes. Já em 1985, uma pesquisa feita na Universidade Nacional de Brasília (UNB), com base nos dados do Censo Agropecuário, falava em um desmatamento de 37%. Vinte anos depois, a Conservação Internacional (CI), utilizando imagens de satélite, alertou que 55% do Cerrado já estavam perdidos. O bioma, o segundo maior do país, abrange uma área de 204 milhões de hectares, divindo-se entre os estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Distrito Federal, Tocantins, Bahia, Piauí, Maranhão, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.

Edson Sano, pesquisador da Embrapa Cerrados responsável pelo estudo, que foi feito em parceria com as universidades federais de Uberlândia e Goiás, afirma que a diferença com levantamentos anteriores se deve a uma escolha conceitual. A pesquisa optou por considerar as pastagens naturais, mesmo que nelas houvesse pastoreio, como parte dos remanescentes conservados. Tais pastagens somam 28 milhões de hectares, ou 13% de todo o Cerrado.

Para a professora da Engenharia Florestal da UNB Jeanine Felfili a escolha feita pela Embrapa/MMA oculta a gravidade em que se encontra a conservação do Cerrado. Para ela, é preciso considerar o que já está desmatado junto com as áreas que estão parcialmente degradadas. A fisionomia típica do cerrado, com espécies árbóreas já pode estar comprometida em 80% em muitos locais, observa a pesquisadora. “No Sul de Goiás, por exemplo, já não há quase nada, nossa situação é muito mais grave.”

O Distrito Federal é um bom tópico para a discussão do nível de conservação do Cerrado. A Embrapa apontou que este é o estado que mais possuí áreas originais com vegetação nativa, 51%. Porém Jeanine argumenta que se levadas em conta todas as “perturbações” no bioma, como moradias e atividades irregulares, poderia-se dizer que 70% do DF está em más condições de preservação. Segundo ela, esse quadro foi comprovado por um estudo da Unesco.

Falta monitoramento

Todo o monitoramento da Embrapa foi feito com imagens de 2002 do satélite Landsat. Edson Sano pondera que foi o maior levantamento feito até o momento, com o uso de 172 planilhas cartográficas representando 8 milhões de hectares. Parte dos resultados também foi confirmada com pequenas expedições de campo nas fronteiras Norte e Sul do Cerrado. A área analisada é 33 vezes maior do a que embasou o estudo da Conservação Intenacional (CI).

Nenhum dos dois levantamentos, contudo, permite comparações que esclareçam a que ritmo o Cerrado está sendo devastado. A Embrapa sustenta que a maior parte do desmatamento ocorreu após a construção de Brasília. Segundo Sano, as décadas de 60 e 70 representam os momentos de maior pressão sobre a savana brasileira. A partir dos anos 80, as taxas de destruição teriam estabilizado, pois a crescente agricultura fez uso de pastagens já degradadas. “Hoje as taxas de desmatamento são insignificantes”, garante Sano.

Mas não existem dados oficiais sobre isso. O único bioma brasileiro que tem um acompanhamento via satélite é a Amazônia. As ONGs tem estimativas que indicam que a destruição pode não ser tão insignificante assim. A Rede Cerrado calcula que o desmatamento na região leste do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul chegue a 30 mil hectares por ano. Já a CI tem informações que indicam que os cerrados do Piauí e Maranhão podem estar perdendo 150 mil hectares anualmente. Cerca de 800 mil hectares teriam desaparecido na região nos últimos cinco anos.

O desmatamento para a atividade agropecuária e o aproveitamento da vegetação para fazer carvão são os principais responsáveis pelo desmatamento no Cerrado. “É só ficar observando o número de caminhões com carvão que chegam às siderúrgicas de Sete Lagoas (pólo siderúrgico em Minas Gerais) para se saber o que ocorre com o Cerrado. Todo dia passam ali 200 caminhões”, estima Ricardo Machado, coordenador do programa Cerrado/Pantanal da CI.

Discurso da solução

Independentemente de qual taxa comprove o perigo que corre o Cerrado, a sociedade civil e o governo chegaram a um discurso consensual de que alguma coisa precisa ser feita. A Embrapa, que é ligada ao Ministério da Agricultura, tem dito que a saída é aumentar a produtividade de áreas ocupadas e recuperar os pastos degradados. A proposta é a mesma que se vem alardeando para a Amazônia, embora nenhum plano concreto tenha saído dos gabinetes do ministro da Agricultura.

Edson Sano propaga o bordão e garante: “é possível dobrar a produção agrícola no Cerrado sem derrubar áreas preservadas”. O método que a Embrapa Cerrados quer aplicar no campo é a ‘Integração Lavoura-Pecuária’. Trata-se de uma técnica que usa culturas como arroz e soja para fixar nitrogênio no solo e assim recuperar pastagens degradadas. Ao se fazer uma rotação entre o pasto e a lavoura, é possível barrar a pecuária extensiva e o avanço sobre novas áreas.

O pesquisador do programa Savanas Centrais da The Nature Conservancy (TNC), Carlos Klink, acredita que a estratégia de ocupar áreas degradadas pode ser bem sucedida. Ele menciona o fato de vários produtores rurais se mostrarem favoráveis a recuperar pastagens degradadas. Isso ocorre porque houve realmente parte da produção de grãos no Cerrado que foi obtida sem desmatamento. A prova disso está no paper do Instituto de Pesquisas de Economia Aplicada (IPEA) feito por Brandão, Resende e Marques (2006) mostrando que parte da soja foi plantada por antigos pecuaristas entre os anos 1999 e 2004. “Pelo menos o discurso de ocupar áreas degradadas já é algo positivo, falta agir”, diz Klink.

Até o momento o Ministério do Meio Ambiente não foi informado sobre qualquer plano do Ministério da Agricultura para a reabilitação de terras abandonadas no Cerrado. O coordenador do núcleo Cerrado/Pantanal, Mauro Pires, analisa que o aumento de produtividade é um fator importante na conservação do bioma, mas é preciso ter cuidado com a proposta. “Se for para aumentar a carga de fertilizantes e insumos agrícolas, nós não concordamos”, pontua. Mais do que isso, existe todo um passivo ambiental que tem que ser discutido, Pires critica.

Não há estimativas de quanto em áreas de preservação permanente (APPs) e reservas legais estão faltando no Cerrado brasileiro. Mas o Código Florestal que determina conservação de 20% como reserva legal não está sendo respeitado, conta a professora Jeanini Felfili, da UNB. “Se a lei fosse cumprida, a situação seria bem diferente”, afirma.

Machado, da CI, argumenta que não há como reverter o quadro sem um amplo programa governamental de estímulo à recuperação. Em sua opinião, o crédito agrícola deve incluir benefícios para aqueles que recompõem reserva legal e APPs. Ele conta que no sul de Goiás, o preço de um hectare está por volta de 3 mil reais e o retorno com a soja é de aproximadamente mil reais. Como a recuperação florestal custa 2500 reais por hectare, é difícil imaginar que um produtor vá fazê-la sem qualquer incentivo.

  • Gustavo Faleiros

    Editor da Rainforest Investigations Network (RIN). Co-fundador do InfoAmazonia e entusiasta do geojornalismo. Baterista dos Eventos Extremos

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