Reportagens

Tragédias em água doce

Relatório do WWF faz ranking dos dez rios mais ameaçados do mundo e considera a retomada do projeto da hidrovia no Pantanal um dos principais riscos à bacia do Prata.

Andreia Fanzeres ·
20 de março de 2007 · 17 anos atrás

Na esteira de ações que lembram a semana da água, técnicos do WWF lançaram nesta terça-feira um relatório que lista os 10 rios mais ameaçados do planeta – e, claro, suas respectivas bacias hidrográficas. Metade está na Ásia e a nossa bacia do Prata, a segunda maior da América do Sul, figura no “top 10”. Poluição das águas, sobrepesca, intervenções humanas de infra-estrutura, extração predatória de água, introdução de espécies invasoras e mudanças climáticas foram considerados os principais responsáveis pelas agressões.

Técnicos do WWF que elaboraram a lista negra dos rios do mundo basearam sua escolha em oito estudos previamente aceitos na comunidade científica internacional, e enriqueceram suas argumentações com dezenas de outros, citados ao longo do documento de 53 páginas disponível em inglês no site oficial da ong. Os pesquisadores enquadraram no levantamento apenas rios perenes e de representatividade continental. Eles precisavam também mesclar extrema importância ecológica à dependência de seus recursos por grandes populações. Foi assim que eles fecharam a lista nos rios asiáticos Salween, Ganges, Indo, Yangtsé, Mekong, além do australiano Murray-Darling, o africano Nilo, o rio Grande, nos Estados Unidos, o Danúbio, que cruza a Europa e o da Prata, na América do Sul.

Antes de explicar o relatório, a WWF tenta provocar os leitores, acabando com o mito de que devam deixar-se levar pelo fluxo de algum rio se um dia quiserem encontrar o caminho para o mar. Hoje, diz o texto, essa certeza não existe mais. Em rios como o Grande, incontáveis barragens e empreendimentos que retiram a água do leito para irrigação de lavouras diminuem a tal ponto a sua vazão que frequentemente ao chegar em sua desembocadura, no Golfo do México, já não resta uma só gota. Esse rio que deixa de fluir ameaça a biodiversidade local e regional, mas é com o drama da falta d’água que a ong busca chamar atenção para a situação mundial dos recursos fluviais. De acordo com dados da Convenção sobre Diversidade Biológica realizada em 2005, as ameaças aos ambientes de água doce já causaram a extinção ou a vulnerabilidade de 20% das 10 mil espécies que vivem nesses ecossistemas. E 41% da população mundial dependem de rios sob riscos extremos de desabastecimento.

Divididos em capítulos de acordo com o tipo de ameaça, os 10 rios foram organizados em seções que mencionam primeiramente as características de cada um, como área da bacia, população atendida, características naturais e importância biológica. Em seguida descreve as ameaças e depois relata ações e projetos do WWF que procuram amenizar os problemas identificados.

O rio Salween, na China, poderia ficar fora da lista do WWF se não tivesse uma única, porém fatal ameaça: as barragens. E o governo do país quer mais. Prevê a construção de mais 13 grandes hidrelétricas, o que deve transformar o curso do rio em reservatórios em série. Grandes intervenções como essas foram agrupadas junto com os riscos ao rio da Prata e o Danúbio, na Europa. Este último cruza 25 países e já foi amplamente canalizado, drenado e uniformizado para permitir a navegação de navios pesados. Os resultados têm sido introdução de espécies exóticas e diversos acidentes, como colisões de embarcações e vazamentos de óleos e outros produtos químicos sobre a vulnerável natureza que ainda existe.

Alerta no Pantanal

No caso da segunda maior bacia sul-americana, as principais ameaças são a sobrepesca e a agricultura. Segundo o relatório, 100 milhões de pessoas dependem dessas águas, que podem ficar rapidamente escassas se forem implantados os 27 novos projetos de barragens já projetados, sendo seis em fase de construção. Como se não bastasse, mais intervenções hidrológicas estão previstas para viabilizar o transporte de soja, madeira, aço e outras commodities no Pantanal — um risco antigo, mas que ultimamente tem ganhado força com os incentivos a projetos de integração sul-americanos, como o IIRSA, e por esse motivo foi citado no relatório como a principal ameaça a essa bacia.

Se isso acontecer, os danos ao Pantanal serão inúmeros. Incluem nada menos do que a total desregulagem de suas águas. A calha dos rios precisará ser alargada em alguns trechos e os peixes, já prejudicados pela pesca predatória, serão afetados ainda mais. Além disso, o projeto da hidrovia no Pantanal vai expor o bioma à entrada de mais espécies exóticas por água de lastro ou encrustamento de seres aquáticos nos navios, por exemplo. Segundo especialistas, uma redução de apenas 25 centímetros no nível médio do rio Paraguai pode aumentar a taxa de erosão dos solos na estação chuvosa e diminuir a área alagada do Pantanal durante a seca em 22%.

Dramas espalhados pelo mundo

O rio Ganges, que atravessa a Índia, Nepal, China e Bangladesh, tem 60% da sua vazão já comprometidas com empreendimentos de larga escala de irrigação, e 30 grandes barragens capazes de controlar o fluxo até entrar em Bangladesh, onde desemboca. Junto com o rio Grande, nos Estados Unidos, eles são os mais prejudicados pela extração exacerbada de água de seus leitos, inclusive para consumo doméstico. Estudos citados no relatório apontam um incremento de 20% por década na retirada mundial de água dos rios para abastecimento das populações. Só a agricultura é responsável por 70% do aproveitamento hídrico.

As mudanças climáticas foram apontadas como responsáveis pelos maiores danos aos rios Indo, que corta o Paquistão, e o Nilo, na África. O primeiro pela grande dependência de neve nas montanhas para o controle de seu fluxo e o segundo por ser extremamente sensível a aumentos de temperatura devido ao seu alto potencial de evaporação. De 70 a 80% de toda água do Indo vem da neve na cordilheira do Himalaia – é o maior percentual entre todos os rios asiáticos. Não menos graves do que isso são os impactos já existentes pelo uso do rio para agricultura sobre uma população muito superior à capacidade de suprimento per capta recomendada pelas Nações Unidas.

O aumento do nível dos oceanos deve aumentar a salinidade das águas no delta do Nilo, reduzindo assim a disponibilidade de água doce. Ao mesmo tempo, o aquecimento global tende a tornar o Egito uma região mais seca, intensificando a necessidade de mais projetos de irrigação.

O rio Murray-Darling, na Austrália, foi citado como ameaçado por espécies invasoras, que na maioria das vezes impactam profundamente populações nativas de plantas e animais, sem que o ambiente consiga reagir naturalmente contra elas. Estima-se que 90% dos peixes desse rio tenham sido fortemente impactados após o inicio da colonização européia no continente.

O relatório do WWF considera que o rio Mekong, no sudeste asiático, esteja majoritariamente em risco devido à escassez de peixes em conseqüência da pesca ilegal e predatória. O desaparecimento de grupos inteiros de peixes e a rápida diminuição de exemplares de diversas espécies têm sido os resultados mais claros dos usos indiscriminados de todo tipo de estratégia para captura, como descargas elétricas de baterias de automóveis, redes de todos os tamanhos e envenenamento das águas.

Também na Ásia, o rio Yangtsé, que corta a China, agoniza por causa da poluição e praticamente já perdeu sua capacidade de purificar suas águas. O despejo anual de esgoto e resíduos industriais já atinge a marca de 25 bilhões de toneladas. O Yangtsé recebe o correspondente a 42% de todo esgoto e 45% dos descartes industriais do país mais populoso do mundo. Não há rio que agüente.

A sensação de estar lendo um relatório-catástrofe só é amenizada pela descrição de estratégias e ações positivas para tentar reverter cada quadro de degradação. Nas conclusões, o WWF resume essas medidas, que versam basicamente sobre mudanças na política internacional visando cooperação econômica entre os paises, opção por empreendimentos menos impactantes no setor dos transportes, pagamento por serviços ambientais, redução dos subsídios que incentivam os modelos predatórios atuais de agricultura e produção de energia. Também orientam maior proteção de nascentes e matas ciliares, legislação e fiscalizações mais rígidas que inibam práticas ilegais. Um mundo sustentável e feliz. Mas ainda difícil de imaginar.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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