Reportagens

Cabo de guerra

Empreendimento turístico em praia de Cabo Frio repete embate entre conservação e desenvolvimento. Especialista defende proteção da área, mas é difícil que obra não saia.

Eric Macedo ·
21 de maio de 2007 · 18 anos atrás

A praia do Peró, em Cabo Frio, protegida pela Área de Proteção Ambiental (APA) do Pau-Brasil, está a um passo de ganhar quatro hotéis, shopping center, lotes residenciais, um campo de golfe e um horto. O empreendimento liderado pela construtora Agenco propõe a ocupação de uma área de 4,6 mil metros quadrados com um resort que se estenderá por 4,5 quilômetros de praia.

Tudo sobre uma vegetação de restinga muito bem preservada, que inclui espécies endêmicas e outras ameaçadas de extinção. Além de uma extensa área alagada e de dunas que andam no mínimo quatro metros por ano e já soterram uma pousadinha que ousou ficar em seu caminho. Entre as pessoas que acompanham a história desde o início, o sentimento é de que ninguém barra as obras do Resort Reserva Peró. Mas sobram controvérsias em relação ao empreendimento, que está em processo de licenciamento ambiental na Feema (Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente).

“É como uma brincadeira de cabo de guerra. Cada um puxa para o seu lado”, diz a chefe do escritório do Ibama em Cabo Frio, Lísia Barroso. Biólogos alardeiam a perda de um importante resquício de vegetação de restinga, geólogos fazem questão de que as dunas sejam rigorosamente protegidas e arqueólogos não abrem mão de seus sítios, também presentes. No caso do Ibama, a exigência é simples. “Nós só queremos que a legislação federal seja cumprida”, explica Lísia. Entre as leis e resoluções do Conama que a agrônoma, há 26 anos no instituto, cita de cor, está a que proíbe desmatamento a menos de 300 metros da praia (pela resolução 303 do Conama, de 2002, a faixa é considerada Área de Preservação Permanente). O projeto original prevê a ocupação dessa faixa da praia do Peró, com corte de vegetação. Também é proibido, pelo Plano de Gerenciamento Costeiro (decreto federal 5.300, de 2004), edificar a menos de 200 metros da costa.

O promotor de Justiça Murilo Bustamante, do Ministério Público Estadual de Cabo Frio, acompanha de perto o processo de licenciamento. A questão das leis federais, diz ele, terão que ser respeitadas de qualquer forma. A equipe da Feema que faz o licenciamento deve estar, neste momento, tentando adequar o projeto a elas. No total, o Ministério Público apresentou 12 exigências a serem cumpridas depois das audiências públicas realizadas em novembro do ano passado. O promotor acredita que a licença será acompanhada de uma série de restrições ao projeto. Restará saber se, com essas interdições, ele ainda será economicamente viável.

Críticas

A maior crítica ao projeto vêm do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. O biólogo do instituto e especialista em vegetação de restinga Cyl Farney diz, baseado em estudos técnicos, que há motivos de sobra para que a flora do local seja protegida. O plano de manejo da APA, de cerca de 10 mil hectares, feito em 2002 (mesmo ano de sua criação), estabelece diversas zonas com diferentes graus de rigor na proteção da natureza. A maior parte do empreendimento está localizado numa Zona de Ocupação Controlada, onde perrmite-se construções. O que o Farney critica são os critérios que levaram a esse zoneamento. Do ponto de vista biológico, diz ele, a área é tão importante quanto outras, estabelecidas como áreas protegidas. “O critério é arbitrário. Parece que a área foi separada, desde o plano de manejo, para receber um empreendimento imobiliário”.

Cyl explica que essa é uma das últimas áreas com esse tipo de vegetação no município de Cabo Frio. A praia é lar da única espécie de ave endêmica de restinga, o formigueiro da praia (Formicivora litorallis), que aparece apenas entre Cabo Frio e Araruama.

A APA do Pau-Brasil (veja o mapa ao lado) foi criada em 2002 com o objetivo de proteger oito ecossistemas (entre eles mangue, restinga, ilhas e mata atlântica semi-descidual) e aspectos geológicos importantes, como um impressionante campo de dunas e características que remontam à época em que a América se separou da África. São cerca de 1,5 a 2 mil espécies de flora, 26 delas endêmicas, incluindo um valioso remanescente de Pau Brasil (daí o nome). Entre os seus habitantes mais famosos está o mico-leão dourado. Ela também serviu para regular a pesca (75% da área é marítima) e para organizar o processo de urbanização na área que liga Cabo Frio a Búzios (a unidade abrange ambos os municípios).

“O Cyl tem uma visão parcial, da conservação”, diz João Batista, presidente do Conselho Gestor da APA e diretor do Departamento de Planejamento Ambiental da Feema (que administra a unidade de conservação). Ele alega que o uso humano é um pressuposto das Áreas de Preservação Ambiental e que a área definida como de “ocupação controlada” no plano de manejo é a mais propícia da unidade de conservação para esta categoria. “Se não pode aqui, onde poderia? O critério do Cyl não permite a ocupação em lugar nenhum. Só onde já está ocupado”, diz Batista. Segundo ele, a ocupação dessa zona também não é de qualquer jeito. Há especificações como gabarito, tamanho mínimo de lotes e taxas de ocupação e hipermeabilização, que devem ser cumpridas.

O fato é que esse tipo de restrição não tem sido suficiente, boa parte das vezes, para conter a degradação dos resquícios de vegetação nativa nas Áreas de Proteção Ambiental da costa brasileira. E são dessa categoria a maior parte das unidades de conservação do nosso litoral. Segundo Cyl, são pouquíssimas as unidades que protegem as restingas (consideradas um sistema “associado” à Mata Atlântica). E o fato de que as APAs estão em maior número põe em risco a diversidade da flora nesses ecossistemas. O pesquisador dá como principal exemplo os resorts na costa da Bahia, segundo ele feitos sem os cuidados necessário de proteção da biodiversidade. “A restinga da APA do Pau-Brasil deveria ser preservada”, conclui ele.

Não é o que pensa o biólogo Mario Moscatelli, que coordenou uma parte do Estudo de Impacto Ambiental do projeto. Ele admite que na área ocorrem espécies da flora ameaçadas de extinção, como a jaquinha (Helicostylis tomentosa). Mas diz que o local está fadado a sofrer uma ocupação desordenada caso o empreendimento não aconteça. “A praia só está protegida ainda porque tem dono. O ideal seria que o governo comprasse aquela área e a gerenciasse efetivamente. Mas o histórico de implantação de unidades de conservação é o pior possível até hoje”, diz ele, justificando seu aval ao projeto. O estudo realizado por ele recomenda, como compensação pelo desmatamento, a criação de um horto de espécies nativas e de um centro para tratamento da fauna local. “Ambos terão apelo ecoturísitco”, diz. Curiosamente, Moscatelli participou também da confecção do plano de manejo da APA – justamente aquele cujo zoneamento é criticado por Cyl Farney.

Fator Eia-Rima

O caso replica em pequena escala a discussão infindável entre quem prega o chamado “desenvolvimento sustentável” e quem defende a conservação da natureza pura e simples. E pululam na história elementos recorrentes em casos parecidos, como Estudos e Relatórios de Impacto Ambiental (Eia-Rimas ) de qualidade duvidosa. Nesse caso, não houve, por exemplo, participação de um geólogo no estudo, ainda que o local seja de grande interesse para essa disciplina. O pesquisador João Wagner Alencar Castro,do Museu Nacional , deu um parecer sobre as condições geológicas e hidrológicas de instalação do resort, encomendado pela Feema. E viu uma série de problemas nos planos dos construtores.

“Concluímos que o ambiente da região é muito instável do ponto de vista geológico, por ser muito recente”, diz Castro. A praia tem cinco mil anos – é um bebê para a geologia. E ainda está em processo de formação. O forte vento do mar para a terra carrega a areia para dentro do continente (formando as dunas), mas esse sedimento não retorna. Com isso, a erosão costeira (ou seja, o sumiço da praia) em alguns pontos é muito acelerada, e pode piorar ainda mais com a subida do nível do mar decorrente do aquecimento global (foto). A área do Club Med, por exemplo, é uma das que sofrem com o problema. “Está sendo vendida uma praia linda, que pode desaparecer”, diz ele.

Entre outras coisas, os loteamentos na parte central podem sofrer com empoçamentos devido à falta de declive que permita o escoamento da água para o mar; o lençol freático, muito superficial, pode ser contaminado com água salgada (na medida em que for muito explorado e com a modificação do sistema hidráulico subterrâneo, devido às construções); e um dos conjuntos residenciais está programado para ser erguido numa área de solo argiloso desfavorável à construção civil (a parte tomada por taboa, um capim que se desenvolve em brejos). Ainda mais aberrante é o fato de que o projeto coloca o horto (aquele que compensará a degradação da vegetação) na rota do campo de dunas. “As areias se movem numa velocidade média de 4 a 7 metros por ano. O horto seria soterrado”, diz Batista.

Particularmente, o geólogo não é contra o projeto. É da mesma opinião de Moscatelli – de que, se não for isso, a área corre o risco de ser ocupada desordenadamente. Mas alerta para o fato de que as dunas – um importante patrimônio geológico – têm que permanecer intocadas. “Elas são áreas de preservação permanente e o projeto não prevê a sua ocupação. Mas não tenho garantia de que elas não serão afetadas”, afirma.

A Feema diz que o projeto tem sofrido modificações para se adequar a algumas das questões levantadas. A equipe de licenciamento está empenhada em encontrar essas soluções. Enquanto isso, o governo do estado tem planos de duplicar a estrada do Guriri (a que margeia a praia, ligando Cabo Frio a Búzios) e o aeroporto da cidade começa em breve a operar vôos internacionais. A construtora Agenco, por meio de sua assessoria de imprensa, diz que não se pronuncia sobre o projeto. Mas a prefeitura de Cabo Frio sorri de orelha a orelha. A Secretaria de Comunicação do município comemora o fato de que o resort – “um dos maiores empreendimentos turísticos do país”- colocará a cidade “na rota do turismo de alto valor aquisitivo”. Com ou sem licença, as obras estão programadas para começar em 60 dias.

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