“Florestas públicas vão permanecer florestas e públicas”. Esta frase tem sido exaustivamente repetida pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB), ao defender a criação da Lei de Gestão de Florestas Públicas, sancionada em março de 2006, e também ao reforçar sua aplicação hoje. Com a norma, as matas localizadas em terras da União só podem servir ao manejo em unidades de conservação, por comunidades tradicionais ou através de concessões florestais por períodos determinados. Privatizá-las, jamais. Pois o próprio governo, que abraçou essa proposta, foi o mesmo que em junho deste ano editou uma instrução normativa dando ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária poderes de vender terras públicas acima de 500 hectares sem especificar se a área tem ou não floresta.
A instrução normativa foi publicada no Diário Oficial no dia 18 de junho e permite que o Incra promova “alienação de terras públicas federais ocupadas ou não, mediante licitação dos imóveis rurais de domínio da União não destinados”, segundo o próprio texto. Abre exceções em casos de áreas passíveis para reforma agrária, ocupadas ou objeto de pretensão de comunidades tradicionais, posses passíveis de legitimação ou regularização fundiária e imóveis em demanda judicial ou que sejam motivo de conflitos sociais. O termo “florestas” não é mencionado em nenhuma parte da norma.
Para o Incra, tudo está dentro da mais completa legalidade. “Licitação de terra pública existe e sempre existiu. Só estamos organizando a forma de fazê-la”, explica Roberto Kiel, diretor de Ordenamento e Estrutura Fundiária do Incra. Ele garante que não existe qualquer interesse em aumentar a pressão por desmatamento. “Temos um compromisso firmado em 2003 com o Ministério do Meio Ambiente e jamais estaríamos avançando sobre áreas de florestas”, afirma. Kiel. Infelizmente, essa não tem sido a regra nos assentamentos do Incra na Amazônia, que juntos são responsáveis por 10% do desmatamento do bioma.
Produtor grileiro
Kiel reconhece não estar explícito no texto da instrução normativa que as áreas a serem licitadas não são de florestas públicas, mas para ele, a palavra do Incra diante da ministra Marina Silva basta. O advogado Vicente Habib de Sant’ Anna Reis, da Dannemann Siemsen, do Rio de Janeiro, sugere como essa situação poderia ficar mais clara. “Seria no mínimo de bom grado acrescentar à instrução normativa que também não podem ser objeto de alienação áreas de florestas nacionais passíveis de gestão sustentável, para não restarem dúvidas”, orienta. O Serviço Florestal Brasileiro tem argumentos na mesma linha. O órgão já solicitou ao Incra que indique textualmente que as florestas públicas devem ser excluídas dessa instrução normativa.
O Incra defende que isso não vem ao caso. De acordo com Kiel, a instrução normativa só pretende atender a uma situação específica, a de posseiros que não têm o título da área, mas vivem e produzem nela há muito tempo. “Existem títulos de três ou quatro mil hectares onde não há grileiro. Há brasileiro produzindo”, categoriza o diretor do Incra. Segundo ele, muita gente nessa condição não tem o direito legal sobre a terra, mas o fato de “produzir sem depender de violência para manter a posse” o credencia para requerer sua regularização fundiária e transformar em privada uma área que no papel é pública. Os candidatos a terra não podem ser proprietários de outra área igual ou maior, nem pessoas jurídicas ou servidores públicos envolvidos direta ou indiretamente no processo de licitação.
Ainda de acordo com o documento, as licitações vão considerar critérios como a presença de ocupações irregulares, demandas por ações fundiárias, regiões onde o desenvolvimento agrário existente ou potencial pode comportar outras formas de exploração além da familiar, situações em que a intervenção fundiária possa contribuir positivamente para a resolução de conflitos sociais e ambientais e, por fim, ações de governo envolvendo grandes obras de infra-estrutura, planejamento e intervenção territorial.
Aplicação da norma
As áreas que se enquadrarem nessas condições serão vistoriadas e avaliadas por uma comissão de técnicos e terão seu preço sugerido na licitação de acordo com o “valor da terra nua”. Kiel esclarece. “O Incra não pode nem deve vender recursos naturais. Não avaliamos os recursos naturais a menos que haja plano de manejo. E damos a terra seu valor de mercado”, diz. No caso de haver algum passivo ambiental na área a ser licitada, a instrução normativa deixa claro que a titulação da terra dependerá da assinatura de um termo de ajuste de conduta junto ao órgão ambiental competente, que deverá fiscalizá-lo e multá-lo caso não obedeça a legislação.
O Incra informou que tem nas costas pelo menos 700 mil processos de regularização fundiária na Amazônia. E ainda não definiu a data nem a maneira com que vai acontecer a primeira licitação. “A licitação dessas áreas grandes não é prioridade para o Incra, que vai continuar se preocupando primeiro com a regularização de terras de até 100 hectares”, avisa Kiel. Conforme sugere Reis, quando elas acontecerem, mais importante vai ser observar e monitorar a aplicação dessa instrução normativa. Para que, inocentemente, nenhuma área importante para o meio ambiente tenha outro tipo de destino.
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