Reportagens

Paranóia da boa

Hotel em Visconde de Mauá (RJ) reaproveita todo o lixo que produz com compostagem e reciclagem. Nada vai para lixões ou aterros sanitários. No máximo, acaba em alguma parede.

Eric Macedo ·
21 de setembro de 2007 · 17 anos atrás

A hoteleira Norma Bühler acha que só apelando para motivos transcendentais é possível explicar a sua obsessão em dar destinos certos ao lixo: “Eu devo ter sido desovada em alguma lixeira em outra encarnação”, diz. Comandando com três irmãos o hotel herdado da famíla na região de Visconde de Mauá, na Serra da Mantiqueira, entre os estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, Norma deu jeito de não deixar com que resíduo algum saia de seu estabelecimento para um lixão ou aterro sanitário da região. O hotel Bühler simplesmente não produz lixo.

O material orgânico vai para algum dos várias composteiras que são mantidas nos fundos, perto dos viveiros de animais estão pavões, patos e gansos. Depois de passarem pelo processo de decomposição, o material vira adubo que é usado na horta e nos jardins do hotel. As composteiras são uma idéia muito simples, que no entanto não têm sido tão aplicadas quanto poderiam. Podem assumir várias formas diferentes, e no caso do hotel de Norma, são grandes caixas de concreto com furos para facilitar a passagem do ar e permitir a decomposição do material por microorganismos. (decomposteiro1)

“Esse resíduo doméstico leva em torno de três a quatro meses para se decompor”, explica. No início, costuma demorar um pouco mais, mas conforme o lixo novo vai sendo misturado ao que já está pronto, acelera-se o processo. “E é o melhor adubo que se pode ter”, diz ela, que começou aos poucos a estudar o assunto, há menos de dez anos e contou, no início, com a consultoria de um biólogo. Hoje várias técnicas diferentes de compostagem são empregadas, com diferentes sistemas de circulação do ar (foto). “Nós começamos a experimentar”, conta ela. Entre outras técnicas de reaproveitamento de rejeitos, a gordura do hotel vira sabão nas mãos de um funcionário que agregou a tarefa às suas funções.

Tudo o que seria jogado fora ganha algum uso nas mãos da empresária. Os recicláveis são doados a uma instituição preparada para recebe-los (a Pestalozzi de Resende). E pilhas, papéis metálicos e outras coisas não-recicláveis são criativamente “emparedados”: desaparecem no interior de tijolos sempre que uma nova obra é feita no hotel. E enquanto isso não acontece, permanecem estocados em grandes sacos separados.

Interesse

Pelo que Norma Bühler lembra, ela sempre se interessou pelo tema “lixo”. Nada que a tivesse marcado profundamente, só simples interesse. Tanto que, um dia, há cerca de oito anos, tomou a iniciativa de visitar os lixões da região onde vive. E ficou tão horrorizada, que resolveu não mandar mais nada para lá. “Aí comecei a pesquisar o que podia ser reciclado, para onde podia mandar o material”, diz.

Na época, falava em “Lixo zero”. Mas chegou à conclusão de que nem tudo podia ser aproveitado – tudo aquilo que hoje é embutido nas paredes – e passou a chamar seu projeto de “Lixo mínimo”, nome que serviu inclusive de título a um livro sobre a experiência escrito pela jornalista e vizinha de Silvia Costa.

Quem passeia pelo hotel não necessariamente nota que qualquer coisa de diferente esteja acontecendo nos seus bastidores. A não ser pelas latas com recipientes para lixo orgânico e inorgânico, o Bühler é um hotel “de campo” como outro qualquer. Tem piscinas, sala de jogos, restaurante, chalés.

Tudo, no entanto, ganha outro significado quando o passeio é feito ao lado de Norma. Ela anda apontando de tempos em tempos para suas pequenas intervenções na área. Além das lixeiras, um decomposteiro pequeno – que mais parece um vaso – decora o jardim, para mostrar que não é preciso muito espaço no emprego da técnica. E cascas de frutas comidas no café da manhã são deixadas em “gaiolas” abertas para atrair passarinhos. “Até tucanos já apareceram”, diz ela, que não se preocupa em registrar nada em números, como pesos e economias. “O meu negócio é resolver as coisas. Se fosse homem, tinha tudo esquematizado”, diz.

O lixo reciclável já chega separado e lavado à Pestalozzi. Tudo se tornou rotina no trabalho dos funcionários. E, de certa forma, dos hóspedes. Segundo Norma, são poucas as pessoas que resistem a participar do esquema de separação do lixo nos quartos, onde há também lixeiras para cada tipo.

A preocupação de Norma está em cada detalhe. Os filtros de cigarro, por exemplo. Todos os que são recolhidos nos cinzeiros do hotel vão para um “túmulo” especial, acima do qual está escrito o seu tempo de decomposição (10 a 20 anos). Ela confessa que exagera um pouco. “As pessoas não precisam ser como eu, tão paranóica”, diz. E tenta mostrar a outros proprietários de hotel que não é tão difícil implantar medidas para se tornar um pouco mais limpo. Nem sempre com sucesso. “Estou indo fazer uma série de palestras em cidades do Sul, mas não consigo convencer a minha vizinha a separar o lixo”, conta. Pior para ela.

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