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O encanto perdido

Poço Encantado, a caverna mais visitada da Chapada Diamantina, foi fechada pelo Ibama. O guia do local construiu uma escada para turistas e foi multado em 50 mil reais.

Felipe Lobo ·
13 de novembro de 2007 · 17 anos atrás

Quando se pensa em lugares propícios ao turismo no Brasil, certamente um dos primeiros que vem à cabeça é a Chapada Diamantina, no centro da Bahia. Rodeada por montanhas com vegetação de caatinga e berço da maioria dos rios das bacias do Paraguaçu, Jacuípe e Contas, a região também é famosa pela variedade de grutas. Contudo, a principal delas, chamada Poço Encantado, está com as portas fechadas para visitação desde o dia 6 de novembro, quando o Centro de Estudo, Proteção e Manejo de Cavernas (Cecav), do Ibama, fez uma vistoria e constatou irregularidades no uso da atração. O autor das infrações, ironicamente, é o conhecido guardião do local, Miguel Jesus da Mota, que atua como guia na área há quase 30 anos. Ele foi multado em 50 mil reais. O motivo: construiu uma escadaria com 108 degraus de areia e cimento sem a licença prévia do Ibama.

A operação foi organizada pelo analista ambiental Wanderley Rosa Matos, chefe do escritório regional do Ibama em Seabra e coordenador do Cecav Núcleo Bahia. De acordo com ele, no final dos anos 90, o órgão ambiental percebeu que era necessário criar uma legislação própria para regulamentar as visitas nas cavernas naquela região. Foi assim que no dia 23 de fevereiro de 2001 o Ibama anunciou a sua Portaria n º 015, cuja pretensão era colocar ordem diante do “descontrolado uso turístico e o avanço da degradação ambiental nas cavidades naturais subterrâneas da Chapada Diamantina (…)”. Entre as promessas, estava a elaboração, pelo Cecav, de um plano de manejo para o Poço Encantado dentro de doze meses. Segundo o parágrafo 1º do artigo 9 º da norma, o projeto piloto deveria servir como referência para as outras grutas do Brasil. Quase sete anos depois, ele ainda não está pronto. “Mas vai ficar daqui a um ou dois meses”, garante Matos.

Mesmo sem o plano concluído, a construção de degraus para facilitar o acesso ao poço sem autorização do órgão licenciador é irregular. “O Miguel é humilde e não observou a legislação. Preocupado com os turistas, construiu uma escadaria de cimento. Essa obra teve impacto e chegou a quebrar alguns espeleotemas [formações minerais dentro da gruta]”, conta o servidor do Ibama.

A preocupação com o acesso foi exatamente a explicação de Miguel para sua obra. Acostumado a guiar até o interior da caverna grupos de dez pessoas, incluindo um grande número de idosos, ele já havia presenciado dois acidentes com visitantes. “O Poço Encantado tem uma trilha bem ruim para descer até as águas. Só possui cordas como corrimão”, diz. No dia 6 de setembro desse ano, um novo incidente resultou em um pé quebrado para um turista e uma idéia na cabeça do guia: construir degraus para facilitar a caminhada. “Não chega a ser sequer uma escadaria’, defende. Há, ainda, um outro motivo para a obra, lembrado por Raimundo Brito Mota, filho de Miguel e recepcionista da gruta. “Também quisemos evitar a erosão causada pelas pegadas dos visitantes. Como sabemos que o plano de manejo ainda vai demorar, decidimos fazer os degraus”, explica.

O problema é que eles não informaram ao Cecav a idéia de mudar a infra-estrutura do local, o que culminou com a inspeção no dia 6 desse mês. O Poço Encantado fica a 50 quilômetros do Parque Nacional da Chapada Diamantina, cujo chefe, César Gonçalves, foi chamado pelo escritório de Seabra para ajudar na operação. Segundo ele, a atitude de Miguel não tem desculpa. “Independente dele ser bom guardião, já tinha sido advertido uma vez por ter colocado um tipo de iluminação na caverna sem autorização”, lembra. Segundo o guia, painéis para captar luz solar foram usados e logo depois retirados, seguindo ordem do Ibama.

Falta de informação

Brigas à parte, o Poço Encantado chega a receber até 15 mil turistas em um ano. Dono de águas azuis cristalinas com 60 metros de profundidade, ele é reconhecido como um dos monumentos naturais de maior beleza no país. Mesmo assim, não fica dentro de uma área protegida, mas no interior da propriedade de Miguel Jesus da Mota. Como o próprio faz questão de lembrar, a gruta é da União, apesar de ser conservada há muitos anos pelos seus próprios esforços.

Miguel chegou à região em 1973, e no início da década seguinte começou sua carreira como guia da caverna. Já no século XXI, conseguiu receber o título da terra, cuja vegetação original foi preservada e ajuda a impedir a entrada de sedimentos no Poço. De acordo com a legislação brasileira, é ilegal cobrar entrada para visitas a uma gruta, mas é desta forma que o guardião encontra seu sustento. O ingresso custa dez reais por pessoa e, em troca, o paraíso se mantém intacto. Mesmo sem ter um plano de manejo definido.

A bióloga Maria Elina Bichuette, professora da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), já esteve na gruta algumas vezes, e considera a interdição equivocada. “O Ibama não entregou nenhum regulamento com instruções sobre o que o Miguel poderia ou não fazer lá dentro. Ele é uma pessoa humilde que cuida muito bem de um patrimônio da humanidade”, explica. Sobre a promessa de que o plano de manejo será entregue dentro de um ou dois meses, ela é realista. “Eles sempre dizem isso. Foram gastos mais de 100 mil reais de dinheiro público nesse trabalho e, até agora, não vemos resultados. Queremos transparência. Essa é uma exigência da sociedade científica e técnica espeleológica brasileira”, encerra.

O mergulho nas águas do poço, proibido desde 94, quando foi encontrado no local uma rara espécie de peixe, é apenas um dos exemplos de como o espaço é bem cuidado.. De acordo com Bichuette, alguns estudos posteriores mostraram que o bagre cego é endêmico de um aqüífero subterrâneo na região, o que significa que ele aparece também em outras cavidades. Mesmo assim, afirma, foi bom ter acabado com a natação, já que muito lixo era encontrado no fundo da pequena lagoa. Desde então, ninguém entra ali dentro sem uma licença em mãos.

Conselheira da RedeSpelo Brasil, Leda Zogbi tem opinião semelhante a de Bichuette. Segundo ela, Miguel está errado por ter modificado a caverna sem autorização, mas ninguém lhe passou um termo de conduta sobre como agir. “Principalmente em uma gruta na qual o Ibama/ Cecav trabalhou durante anos e não apresentou nenhum resultado para a sociedade ou para o Miguel. Não é dar uma multa de 50 mil reais que vai resolver a situação”, lembra.

Para tentar resolver um problema criado internamente, dois técnicos do Ibama e um espeleólogo contratado estão, nesse momento, fazendo uma primeira avaliação do impacto dos degraus para o Poço Encantado. Durante esta semana, outras cavernas da região também vão recebê-los, como a Pratinha, a Manoel do Ioiô e a Buraco do Cão. Caso sejam encontradas novas irregularidades, elas também devem ser fechadas para o turismo.

De acordo com Matos, o governo do estado da Bahia se comprometeu, no início da década, a fazer os planos de manejo das grutas localizadas na Área de Proteção Ambiental Marimbus-Iraquara (todas, com exceção dos Poços Encantado e Azul). Como de costume, os estudos ainda não saíram do campo da teoria para entrar na prática. Até que isso aconteça, é possível que os visitantes da Chapada Diamantina, uma das atrações turísticas brasileiras mais reconhecida no mundo, tenham de se contentar em ver as cavernas apenas do lado de fora.

  • Felipe Lobo

    Sócio da Na Boca do Lobo, especialista em comunicação, sustentabilidade e mudanças climáticas, e criador da exposição O Dia Seguinte

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