Um estudo apresentado pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), de Brasília (DF), denuncia o que seria um avanço desregrado de canaviais para produção de etanol em áreas com importante valor ecológico no Cerrado. O levantamento, feito com dinheiro da Comunidade Européia, foi baseado em imagens e mapas dos institutos Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Mesmo sem avançar em muitas regiões do bioma, o levantamento mostra que algumas áreas registradas como prioritárias para conservação pelo Governo Federal estão se tornando canaviais. Em São Paulo, por exemplo, seis em cada dez hectares de locais que poderiam ser protegidos pelo poder público teriam sido transformados em lavouras. A Reserva Biológica de Sertãozinho, no município de mesmo nome, está rodeada por cana-de-açúcar.
“A sociedade civil e inúmeros pesquisadores se esforçaram para ajudar na definição de áreas prioritárias para a conservação, mas nada acontece nesse sentido”, reclama Nilo d´Ávila, assessor de Políticas Públicas do ISPN.
O professor de Política Florestal da Universidade de Brasília (UnB), Eleazar Volpato, lembra que se áreas prioritárias para conservação do Cerrado tomadas por cana forem terras devolutas, sem dono conhecido, podem ser arrecadas pelo poder público e têm como destino preferencial a preservação. Isso está na Constituição Federal. “A legislação diz que todos os governos têm competência para proteger o meio ambiente. Há base social e legal, mas não fazem isso por inércia”, diz o engenheiro florestal.
Conforme o levantamento da organização não-governamental, apenas nos municípios de Goianésia e Barro Alto, em Goiás, 2,5 mil km2 estão cultivados com cana. No Mato Grosso, a cana avança em locais destinados à formação de “corredores ecológicos”, em cidades como Dom Aquino, Jaciara e Juscimera, onde há nascentes do Rio São Lourenço. Nos municípios mineiros de Lagoa da Prata, Luz, Arcos, Iguatama e Japaraíba a situação se repete.
Efeito dominó
A ampliação das lavouras, além de tomar áreas ideais para preservação, estaria desrespeitando a legislação federal que prevê a manutenção do verde em beiras de córregos e rios, além dos 20% a 35% de vegetação que devem ser mantidos em propriedades rurais. Mais cana no Cerrado também poderia “empurrar” boiadas para a Amazônia, bioma que o governo promete manter livre dos canaviais.
“O risco é comprometer as funções ecológicas do Cerrado. E isso terá reflexo na sua função econômica para o País. Além disso, a cana-de-açúcar afasta populações da agricultura familiar e do extrativismo de forma sazonal, com o trabalho nas lavouras durante seis ou sete meses por ano”, diz d´Ávila.
Conforme Volpato, da UnB, a preservação de parcelas florestais em propriedades privadas é uma “contribuição do setor produtivo ao bem comum”, no entanto, a maioria das lavouras não estaria cumprindo a legislação. Segundo ele, a cana está se tornando uma nova commoditie (produto de exportação com preços fixados pelo mercado internacional), pressionando politicamente os governos para que nada façam para regular seu avanço.
“Deveríamos ter um mecanismo para que a cana arque com os custos da recuperação da cobertura florestal das propriedades rurais no Cerrado. Além disso, a certificação das lavouras garantiria o cumprimento mínimo das legislações ambiental e trabalhista”, diz.
Um dos focos de problema, segundo o gerente de Biocombustíveis do MMA, Mário Cardoso, é que alguns municípios vêem a cana como única forma de desenvolvimento e geração de trabalho e renda. Agravando a situação, todos os canaviais são licenciados pelos estados e não há um padrão mínimo para esses processos. Como São Paulo tem regras mais rígidas, empurra lavouras e usinas para estados mais “permissivos”. “Isso ocorre muitas vezes com usinas obsoletas e poluentes”, admite Cardoso.
Conforme o gerente, o MMA espera aprovar uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) com regras mínimas para o setor sucroalcooleiro e também co-responsabilizar compradores de cana pelo passivo ambiental dos produtores, leia-se desrespeito à legislação. Para isso as lavouras terão de ser georreferenciadas e fiscalizadas de perto, algo como algumas ONGs vêm encaminhado para a soja. Tudo isso para algum momento de 2008.
Aliás, junho de 2008 é o prazo que os ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura apresentem um zoneamento para as lavouras de cana no País. Segundo Cardoso, o Mapa de Áreas Prioritárias para Conservação é um dos ingredientes desse trabalho. “O mapa é um indicativo para a tomada de decisões pelo poder público, para criação de áreas protegidas ou para a implementação de estradas, gasodutos e outras obras de infra-estrutura”, diz.
Mas sem interferência governamental imediata para direcionar a ampliação dos canaviais, a projeção de ambientalistas é de que as lavouras avancem forte de São Paulo para Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás e Tocantins, sempre no Cerrado e com a construção de novas usinas de álcool. O Brasil tem cerca de 350 usinas em operação.
Os planos governistas para o setor de biocombustíveis incluiriam pelo menos 27 novas usinas em São Paulo e mais 40 em Goiás, onde 17 já funcionam. Os mineiros passariam de 31 para 45 plantas, enquanto Mato Grosso do Sul ganharia mais 15 fábricas, além das dez em operação.
Segundo a consultoria alemã F.O. Licht, o Brasil produz cerca de 36% do etanol mundial, com os mais altos índices de produtividade por hectare. Os dados divulgados esta semana pela Companhia Nacional de Abastecimento para a safra de cana-de-açúcar 2007/08 mostram que a indústria deve esmagar 475 milhões de toneladas, mais 10,6% sobre o período anterior. Essa montanha de cana corresponde a 86,4% da colheita total, de 549,9 milhões de toneladas – recorde pela terceira safra consecutiva e 15,8% superior à colheita passada. São Paulo segue na pole position, produzindo 58% da cana nacional.
Mas será que o avanço dos canaviais e da agropecuária não prejudicará a futura criação de parques, reservas biológicas e outras áreas protegidas? É uma possibilidade, segundo d´Ávila, do ISPN. “O Cerrado não tem políticas públicas que associem crescimento econômico e conservação e nem um sistema de monitoramento por satélite, como há na Amazônia. Por isso, o governo não sabe onde estão ocorrendo os desmatamentos e nem para quê”, diz.
Mesmo sem um olhar eletrônico sobre o bioma, ambientalistas e pesquisadores estimam que o avanço da agropecuária e da urbanização leve 22 mil km2 (1,1%) do Cerrado ao ano. O índice é superior ao do desmate na Amazônia. Nas últimas décadas, o Cerrado, segunda maior formação vegetal da América Latina, perdeu metade do verde original.
Procurada pela reportagem, a União da Indústria da Cana-de-Açúcar (Unica) não comentou o assunto. Entidades civis consideram insuficiente a atuação ambiental do Governo Lula para o bioma, como demonstrou O Eco na reportagem O ‘cansei’ do Cerrado, veiculada em 1º de novembro.
“Precisamos aumentar a área protegida no bioma. Estamos lutando pelo reconhecimento do Cerrado como Patrimônio Nacional. Isso ajudará em sua conservação. Mas ruralistas da velha guarda não vêem nisso uma possibilidade de ganho, mesmo que o bioma tenha nascentes que abastecem grande parte da população e o próprio agronegócio”, diz Cardoso, do MMA.
Leia também
Entrando no Clima #42 | Texto final da COP 29 frustra em todos os pontos
A 29ª Conferência do Clima chegou ao seu último dia, sem vislumbres de que ela vai, de fato, acabar. →
Entrando no Clima#41 – COP29: O jogo só acaba quando termina
A 29ª Conferência do Clima chegou ao seu último dia, sem vislumbres de que ela vai, de fato, acabar. →
Supremo garante a proteção de manguezais no país todo
Decisão do STF proíbe criação de camarão em manguezais, ecossistemas de rica biodiversidade, berçários de variadas espécies e que estocam grandes quantidades de carbono →