A cena se repete a cada inverno. Abrigados da água gelada em modernos macacões de borracha e realizando amplos movimentos com varas e linhas de pesca especiais, os praticantes do chamado flyfishing encontraram na região mais elevada do Rio Grande do Sul um espaço apropriado para esse hobby de elite.
O principal alvo de seus anzóis é a truta, predador nativo do Hemisfério Norte que vem sendo introduzido voluntariamente na região desde a década de 1980. Estudos mostram que ele está se reproduzindo. Espécies silvestres podem desaparecer, vítimas diretas daquele peixe ou da competição por alimentos.
Dos Andes ao Nepal, a soltura de trutas em lagos, rios e riachos de águas limpas e geladas tem provocado extinções de espécies nativas. Conforme o Instituto Hórus, associação de pesquisadores especializados no estudo de “espécies invasoras”, a truta arco-íris é natural do oeste da América do Norte e leste da Ásia (veja mapa aqui) e chegou ao Brasil em 1913. De início, seria apenas criada e vendida para apreciadores de sua saborosa carne. Desde 1950, no entanto, é solta em riachos do país como atrativo à pesca esportiva.
A pesquisadora Lílian Winckler Sosinski, da Embrapa Clima Temperado, em Pelotas (RS), vem dedicando boa parte de suas investigações à chegada da truta arco-íris (Onchorynchus mykiss) na porção gaúcha conhecida como campos de cima da serra, na divisa com Santa Catarina. Segundo ela, de início os peixes estrangeiros foram lançados em rios como Silveira e do Marco na tentativa de se elevar a oferta de espécies. Há cerca de 12 peixes nativos na região, todos bem adaptados às mudanças de temperatura e do nível das águas entre as estações do ano. Depois, a pesca esportiva foi o principal peso na balança para novas introduções. “As espécies locais, com exceção do jundiá, não são muito procuradas para pesca e consumo”, explicou a doutora em Ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
De tão apreciado, o peixe se tornou símbolo de São José dos Ausentes (veja localização aqui). As pousadas mais procuradas naquele município com pouco mais de três mil habitantes recebem até uma centena de pescadores por mês na alta temporada, que este ano começa no dia 23. Eles vêm de todo o Brasil e do Exterior. De acordo com fontes ouvidas pela reportagem de O Eco, cada soltura envolve até 500 quilos de trutas. A prática é crime perante à legislação brasileira e passível de multa e detenção. A ampliação da pesca esportiva de truta na região contou, inclusive, com apoio do Ibama (veja aqui).
Conforme Sosinski, já há diferenças na quantidade e nas características de espécies nativas em rios com e sem trutas. “O jundiá, por exemplo, é menor nos rios com trutas. Isso pode ocorrer não só pela predação, mas também pela competição por alimento. Análises estomacais mostraram que as trutas estão se alimentando basicamente de lambaris e barrigudinhos, também apreciados pelos jundiás”, explicou.
Lanche de lontra
Atuando com monitoramento de animais afetados por obras de infraestrutura, depois ter concluído mestrado sobre os efeitos da introdução das trutas na dieta de simpáticas lontras (Lontra longicaudis) no ponto mais alto do Rio Grande do Sul, Israel Alberto Fick atesta que o peixe importado está sobrevivendo de um inverno a outro na região.
Uma das artimanhas da espécie é buscar águas profundas e outros abrigos para resistir ao calor. Em água acima de 20ºC, a truta deixar de se alimentar e, com mais de 25ºC, começa a morrer. “Aparentemente, populações maiores de trutas não se sustentariam na região sem as introduções anuais. Ao menos enquanto não se adaptam completamente”, comentou o biólogo.
E segundo ele, as lontras procuram mais os rios onde ocorre a soltura de trutas, para comê-las, e isso pode trazer problemas para aqueles mamíferos, já na lista gaúcha de animais ameaçados. “Pescadores podem ver as lontras como inimigas de suas atividades e não como o atrativo turístico que realmente são”, disse Fick.
Por essas e outras que Lílian Sosinski pede mais pesquisas, para jogar luz no futuro das espécies silvestres diante do predador estrangeiro. “Todos os efeitos decorrentes da introdução de trutas precisam ser estudados, até porque já há indicativos de mudanças na comunidade de peixes nativos. Sem dúvida alguma, começaremos a perder espécies locais com a sua concorrência”, ressaltou a pesquisadora.
A legislação federal proíbe a introdução de trutas e outros animais exóticos em ambientes naturais do país. Por isso o professor da Universidade Federal do Paraná Jean Simões Vitule lamenta que a prática seja comum em regiões frias e elevadas do Brasil. “Todo mundo fala e mede benefícios de curto prazo, como o prazer e os dividendos da pesca, mas ninguém mede os impactos da introdução de espécies exóticas. Isso é um ecovandalismo. Em alguns países, quem é flagrado soltando espécies estranhas paga uma multa e ajuda o poder público a reverter o problema”, disse o biólogo.
Vitule explicou que, no caso de animais estrangeiros introduzidos em cursos d´água, os piores impactos só são identificados quando a espécie exótica já se estabeleceu, normalmente com a extinção de vida silvestre. “Espécies introduzidas são inimigos invisíveis. No Brasil há profunda carência de estudos sobre vida aquática e há muitas espécies nativas não descritas que podem estar sumindo. Essas introduções podem levar a uma homogeneização da fauna em vários locais do globo, sobressaindo-se espécies mais apreciadas pelas pessoas, como as trutas”, avaliou o pesquisador, ligado ao Instituto Hórus.
Alternativas
Para Sosinski, da Embrapa, o turismo rural é uma atividade indispensável aos campos de cima da serra e a pesca esportiva poderia ser ajustada para se tentar livrar as águas regionais das trutas. “A pesca não deveria ser do tipo pesque-e-solte, mas sim com a retirada desses animais. Também poderia haver introdução de peixes de um só sexo, evitando sua reprodução. Existem formas de se controlar o problema sem acabar com a pesca”, ressaltou.
Tomara. Afinal, a região se revela aos visitantes como uma das mais belas paisagens do Brasil, procurada por turistas em férias ou feriados, no verão e no frio intenso do inverno.
No entanto, além da introdução de trutas, outros problemas rondam o local: mais de 20% daquelas terras estão ocupados com pinus e também há pecuária e agricultura intensiva, graças a avanços tecnológicos, inclusive sobre áreas protegidas por lei. “Nos últimos cinco anos, as transformações são ainda mais drásticas. Pinus e lavouras tomam áreas de campos nativos com alto potencial turístico e locais onde nascem grandes rios do estado, ameaçando-os com a degradação de suas nascentes e agrotóxicos”, alertou o professor de Manejo e Conservação de Recursos Vegetais Paulo Brack, da UFRGS.
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