Reportagens

Pantanal pressionado

Turbinado pela demanda da MMX de Eike Batista, o pólo siderúrgico do Mato Grosso do Sul cria cadeia insustentável de carvão vegetal e multiplica as emissões de gases estufa.

Cristiane Prizibisczki ·
20 de fevereiro de 2008 · 17 anos atrás

Paraíso ecológico e morada de inúmeras espécies – muitas delas em extinção, como arara-azul e a ariranha – o Pantanal poderá desaparecer completamente em pouco mais de 45 anos, se o desmatamento de sua vegetação original continuar no mesmo ritmo de hoje. Isso é o que mostra um estudo divulgado este mês pela Fundação Getúlio Vargas sobre os impactos ambientais provocados pelo Complexo Minero-Siderurgico de Mato Grosso do Sul (CMS-MS) e a crescente demanda por carvão vegetal no Estado.

Realizado pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV a pedido da ONG Conservation International (CI -Brasil), o estudo traz um perfil minucioso do crescimento da mineração no MS e o conjunto de atividades produtivas relacionadas à operação do Complexo, que surgiu em 2006 como um novo modelo de desenvolvimento econômico ao estado, até então alicerçado no binômio soja –pecuária.

Segundo o estudo, com a concretização de todos os empreendimentos previstos para o CMS-MS, a produção de minério de ferro em Corumbá terá um incremento significativo nos próximos anos, passando dos 6,7 milhões de toneladas produzidas atualmente, para 23 milhões de toneladas, a partir de 2013. Além do minério de ferro, o estudo também faz a prospecção de outros insumos, entre eles o aço. Hoje, são produzidas cerca de 56 mil toneladas do produto, com participação inicial apenas da EBX/MMX, do empresário Eike Batista. A partir de 2009, quando a empresa começar a operar com capacidade plena, a produção atingirá cerca de 450 mil toneladas por ano.

Para avaliar os impactos provocados por este incremento na produção do Complexo, a FGV buscou fazer uma operação aparentemente simples: relacionar o aumento da produção com o crescimento da demanda por carvão vegetal e a oferta de florestas plantadas disponíveis para corte. O resultado desta equação, no entanto, não é nada animador.

Segundo André Carvalho, um dos autores do estudo, somente no primeiro ano, o Complexo demandaria 9.000 hectares de florestas. No entanto, apenas cerca de 5 mil hectares estão prontos para corte, o que significa que os 4 mil hectares restantes provavelmente viriam de áreas de vegetação nativa. Se considerado que a produtividade das áreas plantadas é cerca de dez vezes maior do que das áreas nativas, essa conta dá um salto: de acordo o estudo, a estimativa é que, atualmente, a pressão seja sobre 40 mil hectares de áreas nativas do Pantanal.

Em 2015, quando a demanda de carvão do CMS-MS for de 2,4 milhões de toneladas, serão necessários 56 mil hectares de florestas plantadas em ponto de corte. Como o ciclo de vida do eucalipto é de sete anos, a área total de matéria-prima precisaria ser de 392 mil hectares até lá, o que parece estar longe de acontecer. Atualmente, o estado do MS possui cerca de 148 mil hectares de florestas plantadas – já foram quase 500 mil ha, na década de 1970. Desse total, cerca de 80 mil hectares são voltados ao consumo da Votorantim Celulose e Papel. Do restante, parte é consumida pro empresas processadoras de soja, serrarias, fábricas de chapas e compensados. Isso significa que, hoje, a área plantada disponível para atender a demanda das siderúrgicas é de apenas 30 mil hectares, aproximadamente.

Déficit gritante

Não é preciso ter uma calculadora à mão para perceber o enorme déficit entre oferta de carvão vegetal de florestas plantadas e a demanda do CMS-MS. Então, de onde ele vem? A resposta encontra margem na ilegalidade e extrapola os limites geográficos do país. Além dos remanescentes de cerrado e áreas do entorno do Pantanal, contrabandistas buscam no Paraguai e Bolívia a madeira para servir aos fornos das siderúrgicas. Segundo o levantamento, só o Paraguai, por exemplo, perde anualmente cerca de U$ 80 milhões em carvão vegetal contrabandeado para o Brasil.

A ilegalidade é favorecida por um fator já conhecido de todos: a falta de fiscalização e o total desaparelhamento do Estado para realização de medidas simples de controle. No Ibama de Corumbá, por exemplo, há apenas três servidores destinados a esse trabalho. “Hoje a ação de fiscalização do Ibama é mais focada na auditoria. Não abandonamos a fiscalização in loco, mas precisamos atacar em outras frentes. Gostaríamos de ter uns 20 servidores para fazer esse trabalho”, diz Ricardo Pinheiro de Lima, chefe do escritório regional do Ibama de Corumbá.

Porém, nem mesmo o efetivo desejado pelo Ibama do Mato Grosso do Sul será suficiente, se considerados os números do estudo da FGV. Em 2005, a estimativa era que existiam cerca de 5 mil empresas que produziam, armazenavam e/ou transportavam carvão vegetal no estado. Destas, apenas 343 tentaram se legalizar por meio do pedido de licenciamento.

Ainda segundo o chefe do Ibama em Corumbá, mesmo o CMS-MS estando no início de suas atividades, já é possível identificar o aumento no número de caminhões de carvão que trafegam nas estradas do Estado. Segundo ele, o fluxo chega a ser de um caminhão por hora. “[O volume de carga transportada] ficou gigantesco e o que mais se transporta no Mato Grosso do Sul é o carvão. Só isso já deve significar que pode estar acontecendo ilícitos ambientais”.

Quem concorda com Lima é Luiz Benatti, analista do órgão ambiental em Campo Grande. “O Ibama se enfraqueceu, principalmente depois da divisão [em Ibama e ICMBio]. O efetivo é pequeno e os funcionários antigos são pouco qualificados. No estado todo não tem nem 20 fiscais. Seria necessário que, imediatamente, se abrisse um novo concurso para a contratação de mais gente”, diz.

Além de tais fragilidades, Benatti ainda destaca que o Sistema DOF (Documento de Origem Florestal) não tem se mostrado tão eficiente quanto se esperava. “O DOF é interessante, mais está muito frágil, deficiente na parte de auditoria. Isso sem falar que a Polícia Ambiental do Estado e a Polícia Rodoviária Federal estão fora do sistema, porque não possuem nem uma simples senha para conferência”, ressalta. Vale lembrar que, na última semana, foi identificado o primeiro caso de falsificação de DOF no país, como adiantou O Eco. E justamente na região de Corumbá.

Outros impactos

Na cadeia da mineração e siderurgia do MS, outros biomas sofrem os impactos do crescimento produtivo, além das florestas nativas em torno do Pantanal. A Hidrovia Paraguai-Paraná é um deles. Segundo o estudo, atualmente cerca de 500 comboios circulam anualmente por lá. Com o incremento do CMS-MS, é esperado que o rio receba de 43 a 51 comboios a mais por mês, a partir de 2013. “Dentre as conseqüências já percebidas do aumento no tráfego em trechos da Hidrovia Paraguai-Paraná estão a destruição de matas ciliares e a intensificação do processo erosivo das margens dos rios”, diz o estudo.

Também estima-se que, entre 2008 e 2017, a quantidade de CO² lançado na atmosfera pela crescente produção de aço passe de 95 mil toneladas para cerca de 7,5 milhões de toneladas, com cálculos baseados nas alíquotas do International Iron na Steel Institute (IISI).

Se considerados outros impactos que acompanham a atividade mineradora do CMS-MS, a lista parece não ter fim. Entre eles estão as alterações da paisagem e destruição dos habitats naturais para remoção do minério e disposição dos rejeitos, emissões de material particulado durante o processo de manipulação do minério, modificação do regime hídrico devido à captação de água, contaminação da água superficial e subterrânea por drenagens ácidas, descarte de esgoto sanitário das instalações da mina e reconstituição inadequada da área minerada depois do encerramento das atividades.

Grandes inocentes

Ao contrário do que se possa imaginar, não são só as empresas vaga-lume – aquelas de menor porte que abrem suas portas somente quando o mercado está aquecido – que se abastecem de carvão vegetal ilegal. A MMX, que hoje tem a maior operação de ferro-gusa da região, foi multada em 1 milhão de reais em dezembro passado por ter comprado carvão de uma carvoaria sem autorização para funcionar e supostamente localizada em área indígena, a Kadweu, pertencente ao município de Corumbá. Na semana passada, mais uma vez Eike Batista levou multa. Desta vez de 3 milhões de reais, por ter quebrado os termos de sua Licença de Operação. Pela Licença, a mineradora não poderia consumir carvão vegetal proveniente de cidades limítrofes do Pantanal, mas, na última semana, o Ibama identificou que uma de suas cargas vinha de Bonito.

Mesmo com provas concretas de irregularidades, a empresa continua defendendo sua inocência. Procurada, afirmou em nota: ” A MMX reforça seu compromisso com o meio ambiente e reitera que a companhia não utiliza carvão de origem irregular ou oriundo do Pantanal, a menos que tenha a concessão dos Órgãos Ambientais. A empresa só efetua a compra de carvão vegetal ou outros subprodutos florestais que detenham o DOF no caso de fornecedores brasileiros, ou a certificação equivalente, no caso de fornecedores provenientes de outros países”. Sobre a última multa, a empresa disse que só irá se pronunciar após ser notificada.

Já a Rio Tinto Brasil – que junto com a MMX e a Urucum Mineração, controlada Companhia Vale do Rio Doce, formam a parte majoritária do Complexo – busca se redimir de qualquer culpa que venha ter no desmatamento do Pantanal afirmando que o carvão que usará é de origem mineral. “A Rio Tinto esclarece que não faz parte do complexo minero-siderúrgico citado no estudo da Conservação Internacional e da FGV. Atualmente, a empresa mantém uma mina de minério de ferro em Corumbá, com produção de dois milhões de toneladas/ano. Possui ainda um projeto de expandir a produção dessa mina para 15 milhões de toneladas até 2014, com uma primeira fase de crescimento de 7,5 millhões de toneladas/ano em 2010, agregando-a a uma planta de beneficiamento de minério, que utilizará carvão mineral importado e não carvão vegetal”, disse também por meio de nota.

Para André Carvalho, o discurso da Rio Tinto é superficial e serve somente aos interesses da empresa. “Eles já vêm de um histórico de relacionamento com ONGs e não seriam loucos de dizer que vão usar carvão vegetal. Esse discurso também ajuda para que o processo de licenciamento seja simplificado, mas eu preferia que tivessem um programa em que nos primeiros anos fosse usado o carvão mineral e depois o carvão vegetal de florestas plantadas do que ter esse discurso em que não podemos saber o que eles realmente planejam”, diz.

Tragédia atual

Apesar de tantos indícios de que o crescimento do CMS-MS será uma tragédia em termos ambientais, o secretário-adjunto de Meio Ambiente, Cidades, Planejamento e Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul, Mário Monteiro, disse não acreditar que a busca de carvão para as siderúrgicas vá pressionar o Pantanal. “Existe todo um cuidado com relação ao Pantanal e o Estado não fornece autorizações para novos desmatamentos em alguns municípios”, afirmou, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.

Segundo Monteiro, o Estado está licenciando diversas áreas para atender a demanda de Corumbá. “Posso dizer que a área plantada é significativa”. No entanto, o secretário alegou não ter dados específicos à mão. Para o diretor de política ambiental do CI Brasil, Paulo Gustavo Prado, a declaração de Monteiro é totalmente descabida. “O Estado não tem o controle, não, e a prova disso é que a mata nativa está muito descaracterizada”, afirma.

Segundo o autor do estudo, seria equivocado dizer que o Complexo Minero-Siderurgico de MS não é interessante economicamente para o Estado. No entanto, é justamente o governo estadual que deve criar a infra-estrutura para que ele seja viável, econômica e ecologicamente falando. “O papel do Estado é tão fundamental para que o Complexo funcione, que é mais importante nessa história apontar suas falhas. Hoje, ele é omisso e não está preparado. Tem uma série de coisas simples que não estão sendo feitas”, defende Carvalho.

Muitas são as medidas sugeridas pelo documento da FGV para que o Complexo sul-matogrossense seja viável e interessante. Entre elas estão: a organização e indução de um arranjo produtivo que potencialize os possíveis impactos positivos que podem resultar da implantação do CMS-MS; a realização de uma Avaliação Ambiental Estratégica que inclua áreas vizinhas na Bolívia e Paraguai; o incentivo à implantação de uma cadeia produtiva de plantio florestal em áreas degradadas; a definição de áreas a serem conservadas ou recuperadas; a viabilização do arranjo logístico necessário ao transporte até Corumbá do carvão vegetal produzido fora da Bacia do Alto Rio Paraguai ou mesmo no eixo Campo Grande – Três Lagoas; a criação de um instituto de florestas que planeje e execute a política florestal adequada às demandas percebidas no MS, entre outras.

Como parece que o governo estadual do MS está longe de começar a se mexer, o drama vivido hoje pelo Pantanal tende mesmo a virar uma tragédia. “A operação como está hoje tem impacto devastador no Pantanal e no seu entorno. As iniciativas do Estado são irrisórias e a associação do CMS-MS com desenvolvimento sustentável é fictício. O complexo não só será um desastre, como hoje já é um desastre. Não estamos falando em cenário futuro, estamos falando de cenário atual”, defende Carvalho.

  • Cristiane Prizibisczki

    Cristiane Prizibisczki é Alumni do Wolfson College – Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde participou do Press Fellow...

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