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Povo Juruena

Moradores do Parque Nacional do Juruena orgulham-se em mostrar à expedição científica quão preservada está sua região. Mas ainda não aceitam bem a presença do parque.

Andreia Fanzeres ·
12 de março de 2008 · 16 anos atrás

Se alguém pergunta se falta muito, espere ouvir de um ribeirinho da região amazônica que seu destino “tá bem aí”. Nesses rios gigantescos, a existência de pessoas está sempre a três, quatro, cinco ou mais horas adiante, subindo ou descendo a correnteza, desviando dos perigos das cheias e vazantes. Essas pessoas, acostumadas a lidar com tanta água e tanta floresta, foram chamadas pela organização da segunda expedição científica ao Parque Nacional do Juruena para auxiliar as equipes de gestores e pesquisadores a estudarem a natureza cercada pelos rios Juruena, Teles Pires e Tapajós.

Quase todos têm raízes locais. Nasceram e foram criados nessa região tão remota, hoje dividida entre as terras indigenas Kayabi (MT), Munduruku (PA), o mosaico de unidades de conservação Apuí (AM) e o próprio Parque Nacional do Juruena, concebido para preencher e proteger grandes áreas intactas de floresta ocupadas por esses pouquíssimos moradores. Talvez por isso mesmo, os satélites tenham se acostumado a mostrar que nesta região o impacto ambiental sempre foi mínimo. Ainda é. Estima-se que algo entre 1 e 2% da área do parque (1,9 milhão de hectares) tenham sido alterados até agora, essencialmente por conta de grandes desmatamentos em fazendas que ficaram dentro da unidade, em sua porção sul, em Mato Grosso. No entanto, nem essa relação aparentemente inofensiva entre os moradores do norte da unidade de conservação e natureza deram segurança suficiente para esses ribeirinhos aceitarem com tranquilidade a existência do parque do Juruena.

A cada parada que o barco Miritituba III fazia nos rios percorridos na expedição, era possível ouvir deles que a criação do parque os pegou de surpresa. “O governo não veio nenhuma vez aqui antes de criar o parque”, reclama Luis Carlos de Albuquerque Mendes, presidente da Associação Agroextrativista e Turística da Barra do Tapajós e “presidente da comunidade”, ele faz questão em dizer. Ele lidera os 327 moradores da Barra, na junção dos rios Juruena e Teles Pires. Lugar que, segundo dizem por aqui, surgiu há mais de 100 anos com a chegada de seringueiros nordestinos.

Ocupação do parque

Esta é a maior, mas não a única comunidade que vive dentro ou no entorno do parque, e que depende do extrativismo de castanha, óleo de copaíba, palha de babaçu para cobrir o telhado das casas, pequenos roçados e fundamentalmente do garimpo para se sustentar. “Até agora, todos têm apresentado o mesmo perfil. O garimpo de ouro é o pilar da economia nesta região e todos reivindicam a legalização das áreas de exploração”, considera Maria Elizabeth Ramos, contratada pela organização da expedição para fazer o levantamento socioeconômico do parque. Mas para ela, esse trabalho está apenas no início.

A socióloga ainda precisa visitar pelo menos mais três comunidades, mas não é isso que a preocupa. Para entender a situação socioeconômica do Parque Nacional do Juruena, ainda levantará mais informações sobre aldeias e comunidades ribeirinhas, todas as fazendas que estão localizadas dentro da unidade, verificar a existência de madeireiras, conversar com representantes das prefeituras de Apiacás, Nova Bandeirantes, Cotriguaçu (MT), Apuí e Maués (AM), onde, ela sabe, as pressões contrárias ao parque já deram suas caras. “É preciso ainda verificar os mapas da Funai, ver o que há de registro, pois há informações não confirmadas de que ainda possa existir índios não contactados”, sugere.

De certo até agora Elizabeth verificou que pelo menos uma comunidade dentro do parque não é tecnicamente e apenas ribeirinha. São cinco famílias de índios apiacás que se mudaram em 2005 para a beira do Juruena, na foz do rio São Tomé, acreditando que estariam retomando uma área ancestral de seu grupo. Por ali, foram registradas ainda mais duas famílias que vivem há pelo menos 40 anos no Juruena, além dos 15 moradores da aldeia Primavera, pertencentes à etnia Munduruku. No rio Teles Pires, vivem ainda mais cinco famílias e mais 56 na comunidade da Barra.

Para conhecer e se aliar aos moradores do parque, os gestores do Instituto Chico Mendes organizaram quatro reuniões com essas comunidades para esclarecer as novas regras do jogo e tentar tranqüiliza-los. “Apesar de tantos ‘não pode’ que a lei ambiental determina, vocês poderão continuar suas atividades até que uma alternativa seja encontrada”, disse a analista ambiental Roberta Freitas, durante a última apresentação na comunidade Colares, a seis quilômetros do limite norte do Parque Nacional do Juruena. Segundo Roberta, a intenção é dar todo suporte para que as comunidades se relacionem bem com o parque e que por causa dele possam até melhorar de vida. “Achamos que o turismo pode beneficiar os ribeirinhos, por haver tantos lugares bonitos por aqui, mas por enquanto não queremos criar expectativas antes de nos dedicarmos a essas alternativas realmente”, explica a analista. É em Colares que a expedição faz sua parada final para realizar os levantamentos científicos e conhecer os 120 moradores da família do patriarca Pedro Colares, que vive neste lugar desde 1957.

Alternativas

Em tese, seria mais fácil incentivar a população a aproveitar os recursos florestais da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Bararati, criada pelo governo do Amazonas e vizinha ao Parque do Juruena, onde não vive ninguém. Mas Luis Mendes, da Barra, prefere um caminho mais complicado. “Nós queremos mudar o desenho do parque. Demora uma hora de barco para chegar até lá”, ele garante, a despeito de outros moradores que afirmam que o tempo não supera 20 minutos.

Na verdade, seu maior interesse é fazer voltar a vingar uma portaria que criou o Projeto de Assentamento Extrativista (PAE) do Incra, assinada seis meses antes do surgimento do parque nacional. Em junho de 2006, à criaçãoo do parque automaticamente revogou o PAE. De acordo com seu Luis, o PAE São Benedito englobava uma área de 600 mil hectares. E cada família receberia sete mil reais do governo para implantá-lo. “Nos sentimos traídos pelo governo”, reclama. “Queremos a volta do PAE, senão nunca poderemos tirar o nosso dinheiro”.

“Lutamos muito para preservar o que temos hoje, mas agora não temos direito a mais nada”, lamenta Luis Mendes. Essa luta a que ele se refere ocorreu principalmente a partir de 2003, quando, ele conta, chegaram grileiros de Novo Progresso (PA) e do norte de Mato Grosso.

Segundo o líder comunitário, interessados em usar a área para plantio de soja. A proposta era a de conceder aos ribeirinhos uma faixa de 10 quilômetros a partir da margem do rio, para que pudessem ficar com o resto da área. Seu Luis credita à breve existência do assentamento, mais do que a própria criação do parque nacional, o principal motivo para o recuo dos grileiros.

“Os fiscais dessa região somos nós”, insiste Luis. Para alguns, a tarefa é literal. Simar do Rosário Correa, piloteiro das voadeiras que levam os pesquisadores da expedição aos locais de estudo, vive na Barra. Conhece como poucos os mistérios desses rios porque além de morador, é contratado pela Fundação Dijalma Batista, do governo amazonense, como agente de defesa ambiental para justamente fiscalizar a área da RDS Bararati. “Eu sei como são essas coisas. Estão dizendo que não vão nos prender. Mas eu quero ver quando a fiscalização encontrar um ribeirinho carregando um mutum”, especula. Diante disso, ele disse que, na prática, vai seguir as orientações do Instituto Chico Mendes. “Eu vou continuar a fazer exatamente o que eu sempre fiz aqui, com ou sem parque, senão não vou ter como sustentar minha família”, ele diz. “O que eu ganho lá não é suficiente, eu preciso ir para o garimpo”.

Receoso pelo que deve acontecer daqui para frente depois que os pesquisadores forem embora, Luis Mendes chegou a perguntar para a organização da expedição o que os resultados de todos esses estudos poderiam acarretar em mais problemas às pessoas. Gustavo Irgang, coordenador da expedição pelo Instituto Centro de Vida (ICV), garantiu a ele que quando saírem os resultados, as comunidades ganharão uma cópia dos relatórios, para que elas também conheçam o que foi encontrado em termos de biodiversidade na área. “O estudo vai servir para mostrar a qualidade do lugar em que vivem. E que vocês conseguiram manter uma área muito importante preservada”.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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