Reportagens

Prejuízo nuclear

Relatório do Greenpeace sustenta que governo subestima custos da construção da usina nuclear Angra 3 e que obra só trará prejuízos. Audiências públicas começam esta semana.

Felipe Lobo ·
24 de março de 2008 · 17 anos atrás

No primeiro dia de trabalho após o feriado de Páscoa, era de se esperar que o Centro da cidade do Rio de Janeiro estivesse cheio de pessoas com pressa para chegar ao trabalho, como de costume. Mas nem tudo ocorreu de acordo com o previsto na manhã desta segunda-feira. Por volta das dez horas, um grupo de ativistas do Greenpeace foi até a porta do prédio da Eletrobrás, empresa estatal responsável pelo projeto da usina nuclear de Angra 3, e fez um protesto contra as obras. O movimento marcou o lançamento do relatório “Elefante Branco: os verdadeiros custos da energia nuclear”, texto feito pela ONG a partir de análises de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP). Sua principal função é questionar os custos estipulados pelo governo federal para a construção da planta, que seriam muito inferiores do que realmente serão gastos. Tudo aconteceu exatamente um dia antes do início das novas audiências públicas do licenciamento ambiental de Angra 3, marcadas para os municípios de Angra dos Reis, Paraty, Rio Claro e Ubatuba.

A solução escolhida para o protesto foi, no mínimo, curiosa. Vinte e um membros do Greenpeace se vestiram com as roupas utilizadas pelos funcionários de uma planta nuclear e despejaram o mesmo número de moedas gigantes no interior de privadas. O gesto representou o dinheiro público transformado em lixo atômico, como explicou Beatriz Carvalho, Coordenadora da Campanha Anti-Nuclear da ONG. O relatório foi entregue, em forma de carta, para o Diretor Financeiro da Eletrobrás, Astrogildo Fraguglia Quental.

Segundo informes oficiais da Eletronuclear (empresa subsidiária da Eletrobrás, à frente de Angra 3), o custo total para a construção da usina será de 7,2 bilhões de reais. Deste montante, 70% devem ser conseguidos a partir de acordos com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Estatal (BNDES) e outros grupos estatais. “O problema é que muitos gastos não entram nesta conta, como a alocação correta dos rejeitos radioativos depois da vida útil da planta e os juros que incidem no capital imobilizado para o seu financiamento”, diz Beatriz Carvalho.

Toda a análise do “Elefante Branco” é baseada nesta premissa: há muitos valores que não foram incorporados nos cálculos finais do governo. A partir de estudos liderados pelo professor da USP Miguel Edgar Morales Udaeta, que preferiu não dar entrevistas, os ambientalistas notaram que serão necessários, na verdade, cerca de 9,5 bilhões de reais para concluir a construção da mais nova planta baseada em urânio do Brasil.

Até o momento, a usina já tem 30% de sua estrutura física concluída. O problema, como afirma o documento, é que esse progresso foi alcançado há mais de vinte anos, época em que a ditadura militar mantinha o seu Programa Nuclear Brasileiro (PNB). “A demora na construção da usina pode comprometer o estado dos equipamentos já adquiridos e das obras civis e de preparação da região onde (a planta) será instalada”, diz um trecho do relatório. Pouco depois, o texto lembra que foram usados três anos e meio para construir os 30% restantes de Angra 2. Como o governo pretende lançar mão da engenharia usada nesta última usina, é de se esperar que as obras de 70% de Angra 3 levem, em média, pelo menos mais oito anos.

Taxa de retorno

De acordo com o Greenpeace, o cálculo elaborado pelos profissionais da USP (de 9,5 bilhões de reais) é válido apenas se as obras forem concluídas em seis anos, o prazo máximo definido pela Eletronuclear. A divisão é a seguinte: 66 meses para as obras e mais seis de teste. “Baseado nas experiências de outros países nenhuma planta nuclear fica pronta no período determinado. O atraso médio é de quatro anos. Por isso, caso o projeto demore dez anos para ser implementado (os seis previstos mais os quatro de atraso), o custo salta para 15 bilhões de reais. Tudo dos cofres públicos”, afirma Carvalho.

Outro ponto muito questionado no “Elefante Branco” ficou por conta da taxa de retorno do capital financiado pelo governo. De acordo com dados oficiais da Federação, o valor gira em torno de 8%, o que torna possível colocar o custo de produção de um Megawatt em Angra 3 por até 138 reais. “Isso é um número irreal no mercado, ninguém trabalha com esse percentual”, disse Beatriz, do Greenpeace. A ONG fez uma análise em que as taxas de retorno sejam praticadas entre 10, 12 e 18%. O prejuízo médio do governo, em média, será de quatro bilhões de reais, já que no menor dos cálculos o preço do MW já chega a 160 reais. “Para não fazer um furo no seu orçamento, o governo aumenta a conta de luz dos cidadãos. Trata-se de uma conta maquiada”, completa a coordenadora.

Não é o que pensa a Associação Brasileira para o Desenvolvimento das Atividades Nucleares (Abdan). Em comunicado oficial enviado pela assessoria de imprensa, o grupo afirma que os níveis de retorno entre 8 e 10% são muito “aceitáveis para investimentos desse perfil, cujo maior benefício é a garantia do fornecimento de energia e o fim do risco de um apagão com conseqüências muito maiores para toda a sociedade”. Além disso, lembra também que a energia eólica, uma das alternativas indicadas pelo Greenpeace, tem um custo de Kilowatt/ hora muito superior.

Para completar seu argumento, a Abdan afirma que Angra 3 vai produzir muita energia, e não pouca, como sustenta o relatório da ONG. Serão produzidos 1.350 MW com disponibilidade de 90% para o uso, “o que equivale a cerca de 2.500 MW gerados por uma usina hidrelétrica e cerca de quatro mil MW de uma usina eólica”, que ainda depende do vento para funcionar. A Associação Brasileira para o Desenvolvimento das Atividades Nucleares também não se absteve de responder sobre o possível estouro no orçamento, ao afirmar que pode acontecer com qualquer planta energética por se tratar de falta de recursos para cumprir o cronograma inicial.

De acordo com carta da Eletronuclear, o relatório do Greenpeace peca em diversos aspectos, a começar por ser uma “cópia de dados e resultados de palestra realizada” pela própria estatal no Instituto de Eletrotécnica e Energia da USP em 2007. Por isso, não pode receber uma chancela da universidade. Sobre os 1,5 bilhões de reais de custo contabilizados desde 1984 e escritos no “Elefante Branco”, a Eletronuclear afirma que eles nunca foram ocultados, assim como os juros durante a construção (JDC). “O investimento de R$ 7,2 bi para conclusão é um “overnight cost”, ou seja não engloba os JDC. Esses são considerados, entretanto, no cálculo da tarifa de equilíbrio, evidentemente”, explica. Para finalizar, diz que a taxa de retorno em 10% é perfeitamente aceitável em projetos de grande porte conduzidos por companhias do Estado.

Características

As características da usina nuclear ainda não são muito claras, o que sempre torna os debates sobre sua viabilidade ambiental intensos. Para o Greenpeace, trata-se de uma alternativa muito perigosa em virtude das enormes proporções alcançadas por um acidente nuclear e da falta de destinação adequada para os rejeitos radioativos. A instabilidade política no país gerada com a expertise da fabricação de uma bomba também é um dos principais pontos negativos levantados pelos ativistas.

Para rebater este ponto, a Abdam usou dados do “Meeting the Energy Chalenge”, recente documento assinado pelo Primeiro-ministro inglês Gordon Brown. O texto deixa claro que as emissões indiretas de gases estufa efetuadas pelo ciclo do combustível nuclear não difere em nada daquelas geradas pela potência adquirida através do vento.

O protesto do Greenpeace contra a Eletronuclear ocorre justamente na semana das novas audiências públicas com a população das cidades próximas ao local onde se deseja erguer a planta. Na terça-feira, o Iate Clube de Aquidabã, em Angra dos Reis, recebe os interessados em debater os pontos negativos e positivos do projeto. No dia seguinte é a vez de Paraty, município vizinho, seguido por Rio Claro e Ubatuba. A reportagem de O Eco estará presente nos dois primeiros encontros.

  • Felipe Lobo

    Sócio da Na Boca do Lobo, especialista em comunicação, sustentabilidade e mudanças climáticas, e criador da exposição O Dia Seguinte

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