Nos últimos anos, os critérios que elegem grupos quilombolas como merecedores de titulação em locais de grande importância para biodiversidade têm gerado reações passionais. De um lado estão os que enxergam nessa política uma tentativa incerta de promover inclusão social às custas de remanescentes da natureza. Do outro, os que reivindicam, através de políticas seletivas do governo, o direito à terra e acesso a recursos que lhes garantiriam uma vida rural digna.
Alguns dos conflitos decorrentes desse tipo de enfrentamento foram parar em “câmaras de conciliação” coordenadas pela Advocacia-Geral da União, sem, entretanto, que nenhum dos casos tenha sido concluído até agora. Para contribuir com a discussão, uma abordagem teórica foi encomendada pelo Grupo Iguaçu ao sociólogo José Augusto Drummond e ao historiador José Luiz de Andrade Franco, da Universidade de Brasília (Unb), colocando em xeque conceitos como o de tradicionalismo, que embasam as políticas nacionais incentivadoras da presença humana em unidades de conservação. O trabalho, a favor das áreas protegidas, tem 104 páginas e está disponível gratuitamente na Internet.
O texto argumenta que a transformação de algumas áreas protegidas em instrumentos de busca de justiça social, além de justificar a presença humana em todos os espaços disponíveis, coloca em risco a integridade do sistema brasileiro de áreas protegidas. E rebate a idéia de que os povos tradicionais vivem necessariamente em harmonia com a natureza. “Qualquer decisão visando única e exclusivamente o interesse imediatista de minorias, ainda que legítimas na reivindicação de seus direitos, põe em risco o direito difuso ao ‘meio ambiente ecologicamente equilibrado’, reconhecido pela Constituição Federal”, diz o estudo.
A pesquisa recomenda, ainda, que sejam abolidas políticas seletivas e que se reforce e a conceituação de que todos os brasileiros são iguais entre si e, como cidadãos, tenham direitos universais e fundamentais garantidos, independentemente de credo, cor da pele, autoidentificações étnicas ou estilo de vida.
Os autores destacam que, no caso de populações reconhecidas como quilombolas, o pleito pela terra é legítimo de acordo com a Constituição, mas trata apenas dos direitos fundiários daqueles que viveram efetivamente isolados, por muito tempo, durante a vigência da escravidão no Brasil, até 1888, o que não ocorre em muitos dos atuais conflitos com áreas protegidas, como nos dois exemplos utilizados no trabalho: comunidade do Tambor, reconhecida como quilombola no Amazonas e pleiteando cerca de 700 mil hectares onde hoje existe o Parque Nacional do Jaú; e comunidade São Roque, que reivindica áreas de preservação permanente nos últimos fragmentos preservados de Mata Atlântica entre os cânions dos parques nacionais Aparados da Serra e Serra Geral (RS/SC).
Um dos principais pontos do estudo tenta compreender o conceito de “tradicionalidade” como algo que se diferencia e mesmo se opõe em algum grau à modernidade. Isso faria das populações reconhecidas como tradicionais merecedoras de tratamento diferenciado. Mas, no fundo, segundo o que foi apurado, seu pleito é pelos próprios direitos modernos. “Tradicionalismo não é sinônimo de isolamento cultural e institucional, e o mundo moderno tem forte capacidade tanto de atrair a adesão dos tradicionais quanto de conviver com manifestações tradicionais”, diz o texto.
“Quanto mais mergulhados estiverem os tradicionais na modernidade, mais seus direitos se assemelham aos da cidadania universal e mais eficazmente seus direitos podem ser efetivados sem recursos a políticas públicas seletivas. Quanto mais modernos, menos eles são tradicionais e mais eles são – ou devem ser – cidadãos”.
O estudo lembra que hoje qualquer comunidade com residência permanente pode ser dita local, e nem toda comunidade local é considerada tradicional. Para além desta questão, os autores tocam na dificuldade conceitual e legal de se definir quem são precisamente as pessoas e as comunidades tradicionais, especialmente num cenário político cuja oferta de benefícios especiais está à espera de quem assim se reconhecer.
Multiplicidade de interpretações
Se no governo não se pensa em revogar o decreto 4887/2003, que dá direito à propriedade àqueles que se auto-atribuem como quilombolas, há dois anos a Advocacia-Geral da União esteve à frente de uma empreitada para aprimorar uma instrução normativa do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A intenção foi estabelecer parâmetros mais precisos para a delimitação do território pleiteado. Optou-se por utilizar, nos relatórios técnicos, critérios semelhantes aos adotados para demarcação de territórios indígenas, considerados mais trabalhosos e demorados. A imposição dessas novas referências desagradou movimentos sociais. Eles alegam que agora o processo ficará mais burocrático, prejudicando povos tradicionais.
Segundo os autores do estudo Terras de Quilombolas e Unidades de Conservação: uma discussão conceitual e política, com ênfase nos prejuízos para a conservação da natureza, existe uma evidente tentativa de se fazer com que os quilombolas passem a ser reconhecidos como povos tribais, tendo o mesmo estatuto dos povos indígenas. Mas aos índios a Constituição reconhece direitos originários quanto à posse e usufruto das terras que ocupam, que se mantêm sob domínio da União. Aos remanescentes de comunidades quilombolas, no entanto, é concedido o título definitivo da terra. “Os quilombolas são fruto do processo de colonização portuguesa, enquanto os povos indígenas cá estavam anteriormente. Portanto, não faz sentido pensar nos remanescentes de quilombos como detentores de direitos originários”, argumentam os autores.
O estudo diz, ainda, que as multiplas definições e classificações tradicionais hoje em vigor, como sertanejos, seringueiros, comunidades de fundo de pasto, quilombolas, agroextrativistas da Amazônia, faxinalenses, pescadores artesanais, comunidades de terreiros, ciganos, pomeranos, indígenas, pantaneiros, quebradeiras de coco de babaçu, caiçaras e geraizeiros, além de outros, recaem sempre sobre comunidades rurais pobres ou, mais precisamente, comunidades pobres dependentes de recursos naturais. Conforme os autores, seria correto chamar esses grupos simplesmente de pobres rurais, embora muitos dos pobres rurais não se enquadrem no conceito atual de tradicionais, como é o caso de assalariados agrícolas, diaristas (como bóias-frias), arrendatários, parceiros, assentados da reforma agrária, empregados domésticos, caçadores, empregados de minas, madeireiras e serrarias, garimpeiros, pescadores comerciais e afins.
Franco e Drummond defendem que todas as parcelas da sociedade brasileira, mais ou menos inseridas nas culturas de massa, também se comportam e enxergam o mundo a partir de algo que pode ser legitimamente argumentado como tradições. “Não existe motivo lógico para que algumas tradições sejam consideradas valiosas, e geradoras de direitos especiais, enquanto outras não gerem outros direitos tão especiais como aqueles”, alegam. “Quando você diz que uma minoria tem direito, todo mundo passa a querer fazer parte dessa minoria. É a leitura da nossa sociedade, que continua baseada no privilégio”, comenta José Luiz de Andrade Franco. “Estamos dividindo a cidadania universal em mil facetas e ninguém garante que isso vá funcionar. Cada vez que você segmenta, alguém vai ficar de fora”, diz Drummond.
Segundo Franco, uma das maneiras para diminuir a subjetividade na concessão de direitos especiais a populações que reivindicam áreas em unidades de conservação de proteção integral é levar em consideração uma análise histórica. “Por exemplo, o grupo que está no Jaú (Parque Nacional do Jaú/AM) é formado por seringueiros, que migraram para lá numa época de oferta de trabalho no ciclo da borracha. Não são quilombolas de jeito nenhum”, diz o pesquisador.
Nos parques do sul do país, Franco lembra que sequer é possível encontrar entre os quilombolas traços de alguma cultura específica negra que se queira preservar através da delimitação daquelas terras. “Independentemente de serem quilombolas, as pessoas têm direitos. No Jaú eles querem escola, posto de saúde. Mas sai mais barato negociar com a população a saída dela de lá do que levar o que ela pede para dentro de uma área como aquela”.
A questão maior que se coloca no trabalho é: “Por que não conceituar e tratar como iguais todos esses grupos, como simples cidadãos portadores dos mesmos direitos universais?”.
Valor ideológico
De acordo com o estudo, para justificar a presença de grupos humanos em unidades de conservação de proteção integral argumenta-se que essas populações seriam inerentemente resistentes à inserção no mercado, e, por isso mesmo, tradicionais. “Esta é uma maneira um tanto enviesada de justificar direitos para estes grupos, pois acaba por destitui-los de sua historicidade e por naturalizá-los, como partes integrantes dos ecossistemas a serem protegidos. É como se os seus direitos modernos dependessem de sua integração com a natureza e não na sociedade”, afirma o texto.
O crescente número de reconhecimentos de populações quilombolas nos mais variados cantos do país e o fato de que o Incra jamais rejeitou o pleito pela demarcação conforme o solicitado indica, para Franco, o valor ideológico desse processo. “Existe pouca intenção de analisar a fundo a cultura em questão. E como se tratam de pessoas excluídas socialmente, parece inviável produzir alguma coisa diferente do que aceitar exatamente o que está sendo pedido. A questão da biodiversidade não é colocada ou levada muito em consideração porque ainda não é muito conhecida”, afirma o pesquisador José Augusto Drummond.
Para ele, o meio ambiente é uma variável relativamente nova na carreira dos sociólogos. “A confusão é que o engajamento profissional parece ser igual ao engajamento político e ideológico, então se os pobres estão sendo vitimizados eu vou usar a carreira para defendê-los”, sugere o pesquisador. “As pessoas em geral não procuram evidência nenhuma, transformam opinião em constatação ou fazem perguntas que não podem deixar de chegar a essas mesmas conclusões”, diz.
Mesmo não tendo aparecido no estudo o caso do conflito entre a administração da Reserva Biológica do Guaporé (RO) e a comunidade quilombola de Santo Antônio do Guaporé, que demanda 41 mil hectares de área alagada dentro da unidade de conservação, o chefe da reserva, Sandro Alves, acredita que o estudo do Grupo Iguaçu poderá ser útil em processos judiciais que estão em curso para solucionar esses impasses.
“Gostei do relatório quando ele discute que as unidades de conservação se tornam alvos mais fáceis para iniciativas de reparação e resgate da suposta ‘dívida’ que a sociedade tem com grupos como os quilombolas. Esta é a nossa situação aqui, em que o grupo excluiu toda a principal área de coleta de castanha e extração de seringa da proposta de delimitação de território, pois tais áreas atualmente constituem-se em um grande latifúndio de um dos maiores pecuaristas do estado”, lembra o analista ambiental.
“As pessoas preferem brigar com as unidades de conservação do que com atores sociais que tradicionalmente expulsam as pessoas de suas terras com violência, como o madeireiro, o pecuarista ou o plantador de soja”, destaca Franco.
“As populações rurais mais pobres estão sempre na frente, são a vanguarda. E na medida em que as terras são valorizadas outros grupos os expulsam. As unidades de conservação são produto disso também. É o Estado criando áreas onde tem gente dentro, por isso a União tem obrigação de indenizar, negociar, para que as pessoas possam sair dali sem prejuízos muito grandes”, diz.
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Atalhos:
Terras de Quilombolas e Unidades de Conservação: uma discussão conceitual e política, com ênfase nos prejuízos para a conservação da natureza
Grupo Iguaçu
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