Reportagens

Missão perigosa

Chefe da fiscalização do Ibama em Mato Grosso revela as dificuldades de atuar no estado campeão do desmatamento. Falta de estrutura do órgão torna desafio ainda maior.

Andreia Fanzeres ·
9 de julho de 2008 · 16 anos atrás

Rodrigo Dutra da Silva ainda não completou um ano a frente da Divisão de Controle e Fiscalização do Ibama em Mato Grosso, mas conhece a fundo os desafios para executar estratégias eficientes de combate ao desmatamento num estado como este. Os dois anos que este zootecnista gaúcho de Julio de Castilhos passou em Sinop e os outros dois em Alta Floresta lhe deram vivência para conduzir as ações nas bases operativas do instituto no interior, onde as pressões de desmatamento são conseqüência direta da falta de assistência técnica rural, educação, informação e infra-estrutura na Amazônia. Sem falar na existência freqüente de verdadeiras quadrilhas ambientais e nas faíscas que têm saído da relação do órgão federal com o estadual e setor ruralista. Se combater o desmatamento nessas condições já tem sido difícil, a situação se agrava enquanto o órgão não resolve questões básicas de contratação de servidores públicos, investimentos em infra-estrutura, qualificação profissional e de inteligência na gestão de recursos humanos, o que é estratégico para a manutenção de gente a fim de trabalhar na Amazônia. Na semana passada, Dutra recebeu O Eco e comentou esses e outros pontos numa breve entrevista na superintendência do Ibama em Cuiabá.

Que peso tiveram as ações de fiscalização na queda das derrubadas em Mato Grosso, registrada pelo Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) no mês de maio?

Dutra – A gente acredita, até porque em parte é o nosso trabalho, que as ações fiscalizatórias tenham um bom impacto nesses números. A Arco de Fogo e as operações do Ibama tiveram início forte em abril, quando nós chegamos a ter 150 agentes de fiscalização no estado, além do apoio de policiais da Força Nacional, Polícia Federal, e inclusive da Polícia Militar. Então, com cerca de 300 agentes trabalhando no interior, a gente acredita que tenha dado resultado. Além do mais, sabemos que as commodities não tiveram queda em maio. Tanto soja quanto carne têm ficado com preços cada vez mais atraentes.

Explique como têm sido as ações do Ibama em campo nesses últimos meses.

Dutra – A nossa atividade de combate ao desmatamento é baseada em três pilares: o DETER [Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real], que dá o indicativo de onde estão os desmatamentos e o nosso serviço de informações, que é como se fosse um serviço de inteligência em fase de implantação. O terceiro pilar vem da Diretoria de Proteção Ambiental, que elabora uma espécie de modelo matemático dando importância a alguns fatores como unidades de conservação, terras indígenas, estradas, que vão indicar vetores do desmatamento, ou seja, dão indicativos de áreas prioritárias. A partir disso a gente vai para os polígonos. Este ano, o diferencial é a Arco de Fogo, operação da Polícia Federal em que nós somos parceiros.

Qual é essa estratégia conjunta para combater as derrubadas?

Dutra – Eles [Polícia Federal] acharam prudente começar forte em madeireiras, acreditando que freando o escoamento de madeira ilegal estariam freando o desmatamento. A gente sabe que isso em parte ajuda, mas não é só. Na verdade não é toda madeira de desmatamento que vai para madeireiras. Então aos poucos a PF e nós temos deslocado mais o trabalho. Paralelo a isso, temos operações do próprio Ibama voltadas só para polígonos. São duas frentes de atuação, a Arco de Fogo e o Guardiões da Amazônia. E várias pequenas operações dentro dessas, como a Operação Thermópilas. Como os números estavam ficando cada vez piores, a Coordenação-Geral de Fiscalização buscou fiscais em vários estados, muitos vieram pelo próprio meio terrestre. Era tanto fiscal que não teríamos carros para todos eles.

Isso acabou?

Dutra – Por cerca de 60 dias ficamos com esse esforço. Hoje a operação está numa fase de transição e a gente achou que deu resultado. Para julho a gente quer fazer algo parecido.

Recentemente o secretário-adjunto da Secretaria de Meio Ambiente de MT, Salatiel Araujo, justificou o envio de fiscais do estado em campo para verificar os dados do DETER porque o INPE teria se queixado que os agentes do Ibama não têm dado esse retorno.

Dutra – Em primeiro lugar, o Ibama tem dado feedback para esses polígonos, sim.

Esta é uma obrigação do órgão?

Dutra – Não. O segundo ponto é que isso não é função do Ibama. O Ibama vai a campo para frear desmatamento, não para testar ferramenta do INPE. Inclusive, quando houve questionamentos dos dados do INPE, algumas equipes vieram com apoio logístico do Ibama e foram conferir polígonos, mas como uma atividade do INPE. Nós não concordamos com essas críticas. Consideramos que a detecção dessa degradação progressiva é até mais interessante.

Vocês não têm queixas quanto à precisão dos mapas que chegam?

Dutra – Ocorreram muitas situações em que o fogo entrou na floresta em virtude de muitos focos de calor do ano passado. Então, ela fica praticamente destruída. O INPE detectou isso como desmatamento e nós concordamos. Afinal de contas, o Ibama responsabiliza por destruição florestal. Não nos interessa se é só o corte raso. A destruição florestal é que tipifica como o crime. Desde que se começa a entrar na floresta para tirar uma ou duas toras, já está ocorrendo uma degradação. Pra nós o que interessa é isso, chegar a tempo.

A ferramenta é, então, bastante eficaz…

Dutra – Nós a consideramos válida. Até porque quando saem os boletins do INPE com todos aqueles pontos, o Ibama não vai atrás de todos. A gente procura os maiores, os que indicam uma progressão. É claro que também existem detecções falsas. Nós nunca apuramos pra saber esse percentual, mas não é tão alto. Às vezes também aparecem afloramentos rochosos, mas daí com a comparação das imagens antes de ir a campo a gente elimina essas imprecisões. É nossa principal ferramenta de trabalho.

Quanto tempo vocês demoram para fazer essas verificações? Em dois meses a Sema diz que 47 fiscais percorreram 662 pontos, concluindo que 90% deles estavam incorretos.

Dutra – Não dá pra comparar. Nós mantivemos entre abril e maio 150 fiscais. Mas nossa média é manter sempre 100 agentes nas nossas 4 bases operativas do norte: Alta Floresta, Vila Rica, Sinop e Aripuanã. Hoje devemos ter cerca de 600 polígonos vistoriados em todos esses meses, desde março com trabalho mais forte. O trabalho também é diferente.

Como?

Dutra – Não é só chegar lá e olhar se é desmatamento ou não. Não sei se esta foi a metodologia utilizada. No nosso caso, temos o serviço de identificação de proprietário, que é uma das coisas mais difíceis. Pessoas omitem documentos, fogem, somem, os empregados não sabem nada ou são instruídos a não falar. Todos são notificados, não são autuados na hora, a não ser que haja flagrante. Depois damos um prazo para as pessoas apresentarem documentos, mapa da propriedade, etc. Daí voltamos pro escritório para fazer os cálculos de área. Pegamos as imagens de 2008 e 2007 pra ver em que ano foi o desmate e calcular exatamente para então fazer uma autuação. É um procedimento que, se formos a um polígono hoje, provavelmente vai demorar entre 30 a 40 dias para fazer uma autuação.

Para onde quer que se vá no estado, é fácil encontrar quem critique a conduta dos fiscais, e hostilize seu trabalho. O Ibama está fazendo alguma coisa para desfazer essa imagem?

Dutra – Desde 2005 eu noto que o Ibama vive num processo de reconstrução de imagem. Coisas que antes eram mais corriqueiras hoje não acontecem. Cada vez o órgão tem cobrado mais a sua postura. De certa forma, eu acho que isso também é reflexo da gestão Marina Silva, onde houve as maiores apurações. Eu não duvido que tenha havido problemas em pequenas e grandes propriedades, mas as denúncias a gente tem que receber e apurar. Hoje temos uma boa quantidade de sindicâncias e processos administrativos sendo apurados, processos criminais, no Ministério Público Federal e na Justiça Federal, envolvendo grande número de servidores no estado e até de fora, que possam ter feito alguma irregularidade aqui. Tendo conhecimento, nunca tivemos pressão nenhuma para que as coisas não fossem apuradas.

Isso lembra Operação Curupira, quando 38 funcionários do Ibama foram acusados de envolvimento em fraudes ambientais. De 2005 pra cá, algum servidor já foi punido?

Dutra – Eu tenho conhecimento do caso de um servidor que era de Brasnorte, que foi demitido. Tinha acusação na Operação Curupira, mas o processo administrativo que levou a demissão dele era anterior. Os outros processos da Operação Curupira estão todos aqui com uma comissão instalada. Eles estão numa fase de ouvir testemunhas e acusados, já é uma etapa mais adiantada. A perspectiva é que termine logo. Mas, realmente, não foram demitidos nem inocentados.

Pelo interior do estado, as pessoas não cansam de pedir menos repressão e mais educação por parte do Ibama. Há alguma coisa sendo feita nesse sentido?

Dutra – Sim. Não andamos de mãos dadas com a área de educação ambiental, até porque as ações não convergem, mas a gente tem auxiliado. Temos um trabalho muito bom de educação ambiental em Juína, Sinop e Alta Floresta. Pessoas dedicadas que vão a assentamentos, pequenas propriedades rurais, terras indígenas. O que nós temos notado é o espúrio das terras indígenas, estão enganando os índios. Ele ganha uma Toyota nova e pensa que está fazendo um grande negócio. E em troca o madeireiro está explorando milhares de hectares de florestas deles. Então a gente tem apoiado essas iniciativas. Esses grupos nossos de educação ambiental fazem uma palestra dizendo por que o fogo é ruim, por que a APP [Área de Preservação Permanente] tem que ser mantida, qual é o valor da multa, avisando que motosserra tem que ter registro, que não pode criar papagaio em casa…

É o básico…

Dutra – É o básico, mas pra eles é muito importante porque não chega nada. Temos um planejamento semestral e queremos que a educação ambiental passe antes nessas áreas antes de atacar os alvos. Já reunimos duas mil pessoas em vários eventos. Ou seja, para que eles tenham já uma informação, pra não dizer que não sabia.

O que tem sido feito para capacitar os fiscais?

Dutra – Na medida em que o Ibama tem adotado mais tecnologia para detecção de desmatamento, as autuações ficam cada vez maiores devido aos danos que são apurados. Com isso sentimos mais a necessidade do agente de fiscalização estar mais capacitado. Nesta semana estamos com um curso aqui em Cuiabá, capacitando 40 novos analistas ambientais para entrarem na portaria de agente de fiscalização. Qualquer servidor do Ibama pode ser nomeado numa portaria de fiscalização, mas para isso ele tem que estar capacitado nesse curso, de 80 horas.

Todos os fiscais estão passando por isso?

Dutra – Pelo curso inicial. Nós estamos organizando alguma coisa aqui junto com o Ministério Publico do Trabalho para fazer uma capacitação conjunta entre os auditores fiscais do trabalho e os agentes de fiscalização do Ibama para que eles saibam detectar irregularidades trabalhistas no seu dia a dia e vice-versa.

São quantos fiscais em Mato Grosso?

Dutra – 80, entre analistas e técnicos.

Quanto efetivamente das multas tem sido recolhido?

Dutra – A gente sabe que o que recolhe é pouco, porque existem muitas instâncias pra recorrer, tanto na esfera administrativa quanto judicial. As pessoas vão protelando. As multas existem desde 1999, quando saiu o decreto 3179, que definiu os valores de multas da Lei de Crimes Ambientais, de 1998. Então, a multa mais antiga não tem 10 anos. E como a gente sabe, o processo de cobrança demora. Tramita 3, 4 anos no Ibama, depois vai pra judicial, e pra cobrar demora. Mas a maioria das multas menores são pagas.

Vocês já implantaram o serviço de inteligência em Mato Grosso?

Dutra – Funciona de uma forma empírica, mas ainda não existe formalmente um núcleo de inteligência. Existe uma coordenação em Brasília, a Coordenação de Inteligência. Inclusive isso é uma das pautas que a gente tem com o coordenador para que nós recebamos a diretriz para a criação desse núcleo aqui da superintendência, até por exigência dos nossos parceiros, PF, PRF, PM, ABIN, para que nós tenhamos um núcleo pra conversar de igual pra igual com eles, que nos ajudam muito com troca de informações. Serviço de inteligência na verdade é isso, é a troca de informações. A nossa idéia é incrementar isso, pra todos os estados, em especial os que envolvem quadrilhas ambientais.

Como elas funcionam?

Dutra – Por exemplo, existe toda uma rede de motoqueiros que avisam sobre as nossas ações, é uma rede toda organizada. Temos escritórios como o de Alta Floresta, que tem uma praça na frente. Tem gente que fica ali o dia inteiro pago para saber onde o pessoal da fiscalização vai. Anotam placa e tudo. Nossos carros são alugados. Teoricamente ninguém saberia que são do Ibama, mas eles sabem. Além disso, a gente sabe quanto dinheiro gira em torno do ouro, do diamante, da madeira, do desmate ilegal, da soja, do gado, é tudo articulado. Não é o coitadinho, desmatou ali. Desmatou, vendeu a madeira ali, comprou…e pode ter um servidor publico estadual ou federal envolvido, então é uma cadeia. O Ibama, como trabalhava anteriormente a 2005, não servia. Ficava pegando um caminhão sem ver que o segundo veículo tinha conexão com a mesma historia, o mesmo papel, da mesma madeireira.

Essa estratégia de trazer gente de fora, de certa forma alivia o desconforto social sobre aqueles que estão lotados no interior, sujeitos a essas pressões?

Dutra – A gente não considera que a vinda de fiscais de fora dê uma amenizada na imagem da pessoa que está lá. É um esforço que ajuda muito, mas não evita nossa exposição. Acabamos ficando expostos da mesma forma.

Aparentemente, essa exposição é ruim para o servidor e para o Ibama…

Dutra – Na verdade esta é uma das cobranças que nós temos feito para as nossas diretorias, para o Ibama de Brasília. Não precisamos só de dinheiro para diária, combustível e passagem aérea. Mas pra reformar nossos prédios, comprar viaturas, fazer concurso público, e de uma política de recursos humanos forte. Não dá pra admitir que um agente de fiscalização ou qualquer outro servidor fique dez anos em Alta Floresta, Vila Rica, Aripuanã, uma que a pessoa não vai agüentar. E, mesmo honesto, ele acaba tendo que criar laços locais. Estamos pedindo uma política de recursos humanos mais profissional para que essas pessoas tenham uma rotatividade. Muitos analistas ambientais capacitados que entraram nesses últimos concursos não resistiram a tanto tempo em lugares tão afastados, com comunicação ruim, estradas ruins, linhas aéreas —quando têm – muito caras. Muitas dessas pessoas não resistiram, abandonaram o Ibama. No primeiro concurso houve uma debandada muito grande de analistas ambientais. A gente tem cobrado essa política de recursos humanos porque ela é urgente.

Você acha que o sistema de controle de transporte de produtos florestais do estado, o Sisflora, satisfatório depois desses dois anos?

Dutra – Com certeza houve uma evolução muito grande se você comparar o sistema que geria as ATPFs aos sistemas estaduais de gestão e o sistema federal, o DOF. Só que todos precisam de melhorias e todos são passivos de problemas. Para mim, o Sisflora é bom porque existe transparência para apurar as irregularidades.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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