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Moçambique: riqueza marinha sobrevive

Depois de guerra civil e com sua fauna terrestre  dizimada, país tenta se reerguer por meio do turismo marítimo. Falta de legislação ambiental põe em risco grandes espécies.

Cristiane Prizibisczki ·
11 de fevereiro de 2010 · 15 anos atrás

Há apenas 18 anos livre da guerra civil, Moçambique é um país que cabe direitinho no velho clichê do “um país de contrastes”. De um lado a pobreza de seus habitantes e uma economia ainda incipiente, baseada na extração de matérias primas, como a madeira proveniente de florestas nativas. De outro, as exuberâncias naturais, tão frágeis quanto as leis que as protegem.

A independência tardia, em 1975, e os conflitos civis, que duraram de 1976 a 1992, deixaram marcas indeléveis não só nos homens, mas também na fauna moçambicana: os grandes animais, como os elefantes, que serviam de base para o turismo de safari, foram praticamente extintos, e as minas terrestres não desativadas ainda são um problema para a população humana e de animais no país. Mas o que está no fundo do mar conseguiu se salvar, e é na mega fauna marinha que Moçambique se sustenta para se reerguer.

Situado na confluência de duas correntes marinhas distintas, a corrente de Benguela (fria) e a corrente das Agulhas (quente), Moçambique reúne espécies que normalmente não se encontram e outras que restringem seus habitats a poucas áreas do globo. Esse é o caso das arraias gigantes, cujas nadadeiras podem chegar a oito metros de envergadura. Elas, junto com os tubarões-baleia, são hoje as vedetes do turismo moçambicano. Quem escolhe o país para tirar férias, vai encontrar uma estrutura básica já instalada e muitos operadores de turismo de mergulho, o chamado por lá de “ocean safári”. 

Foi para estudar de perto os hábitos das duas espécies de arraias gigantes existentes – a Manta birostris e a recém descoberta Manta alfredi – que a equipe do Instituto Laje Viva, organização brasileira que trabalha pela preservação da manta no Brasil, viajou a Moçambique. A convite do Centro de Pesquisa da Manta e do Tubarão-branco, a equipe passou duas semanas na praia do Tofo, na província de Inhambane, sul da costa moçambicana. Além de experiência, os integrantes do Laje Viva trouxeram muitas fotos da rica fauna marinha do país. Algumas delas estão no o slide-show que acompanha esta matéria. 

Desenvolvimento = pressão 

A arraia gigante, por si só, já é uma espécie muito sensível. O animal tem um filhote por vez e a gestação demora 12 meses. Após esse período, a manta precisa de cerca de dois anos de repouso para copular novamente. A costa moçambicana talvez seja o único lugar do mundo onde ocorrem as duas espécies, a M. birostris e a M alfredi, sendo que esta primeira tem uma população bem menor que a segunda. De acordo com levantamentos da bióloga Andrea Marshal, que comanda o Centro de Pesquisas da Manta e do Tubarão-branco, a costa da província de Inhambane abriga cerca de 800 indivíduos, sendo que apenas 130 são da M. birostris.

Além da predação natural de tubarões – cerca de 75% da população de mantas na costa de Inhambane possuem cicatrizes nas nadadeiras, resultado dos ataques da espécie – as mantas estão a mercê dos pescadores tradicionais: atualmente não há nenhuma legislação que as proteja. De acordo com Guilherme Kodja, da equipe do Laje Viva, até alguns anos, a pesca das mantas ocorria ocasionalmente em Moçambique. 

Mas, enquanto estiveram no país africano, os integrantes do instituto brasileiro presenciaram um cena que vem se tornando cada vez mais comum no país: com o aumento do poder aquisitivo – resultado do desenvolvimento pós-guerra – , pescadores que antes trabalhavam apenas com barcos a remo começam a adquirir motores de popa, o que torna viável a pesca de grandes quantidades de peixes. Em apenas uma semana, três mantas foram capturadas em redes de pesca e cerca de uma tonelada de pescado apodreceu na praia, devido à captura excessiva.

Apesar de serem difíceis de pescar e de possuírem poucas partes aproveitáveis para consumo – o que acaba por funcionar como uma proteção natural contra a exploração humana – a experiência de outros países na captura da espécie mostra como suas populações são sensíveis. Nos anos 90, as Filipinas possuíam a maior população registrada de mantas. Três anos de pesca, no entanto, foram suficientes para a espécie ser dizimada no país. No primeiro ano, foram capturadas 1500 mantas, no segundo, 700 indivíduos, no terceiro, apenas 300. No quarto ano, quanto a pesca da arraia já tinha se tornado inviável, foram capturados acidentalmente 15 indivíduos. “Há dez anos não há recomposição da espécie nas Filipinas”, explica Kodja.

Para evitar que ocorra em Moçambique o mesmo que no país asiático, a equipe do Instituto Laje Viva iniciou uma série de reuniões com o governo local, a fim de auxiliá-los na construção de legislação específica de proteção das mantas – a equipe já trabalhou na elaboração das leis que hoje garantem a sobrevivência das mantas na Laje de Santos, no litoral sul paulista. Nas próximas semanas deve entrar no ar uma petição online, requerendo maior proteção das espécies no país africano.

A idéia do instituto brasileiro, que agora trabalha em parceria com o Centro de Pesquisas da Manta e do Tubarão-branco, é fazer do turismo uma barreira contra a captura das espécies gigantes. “O turismo sempre pode causar distúrbio no ambiente marinho, mas o máximo que pode acontecer é as espécies migrarem. É preferível o impacto causado pelo turismo do que a captura”, setencia Kodja.

Leia mais:

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Gigante cruza o azul dos mares 

  • Cristiane Prizibisczki

    Cristiane Prizibisczki é Alumni do Wolfson College – Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde participou do Press Fellow...

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