Um dos países mais ricos do globo quando o assunto é biodiversidade, o Brasil, que pouco investe em pesquisa básica, costuma descobrir novas espécies no atropelo das obras de infraestrutura. O caso mais recente vem do Mato Grosso, estado até há pouco governado por Blairo Maggi, cujas empresas têm influência direta nessa história.
Percorrendo a região da Chapada dos Parecis em setembro de 2006, durante levantamentos sobre fauna prévios à construção da pequena central hidrelétrica Jesuíta, o biólogo Carlos Ernesto Candia-Gallardo, do laboratório de Ecologia da Paisagem e Conservação da Universidade de São Paulo, teve a atenção despertada por um distinto canto de ave. Depois de atrair a espécie, com a ajuda de uma gravação de sua própria “voz”, conseguiu identificá-la: tratava-se de um raríssimo tiê-bicudo (Conothraupis mesoleuca).
Em seguida, descobriu cerca de 40 daquelas aves, que pertencem à família dos sanhaços e saíras, mas têm canto mais próximo ao dos curiós e coleirinhas. “Foi um impacto enorme do ponto de vista do conhecimento científico”, disse. Sem dúvida. A única população antes conhecida do tiê vive no Parque Nacional das Emas, no Cerrado do extremo sudoeste de Goiás, enquanto o novo grupo está a 700 quilômetros de distância, em área de transição com a floresta amazônica.
“Os grupos parecem ter diferenças de vocalização, mas ainda não temos certeza de que são realmente isolados porque há vários pontos entre Emas e a região do Juruena que não foram avaliados, como nas cabeceiras do rio Xingu. Só com mais estudos poderemos comparar as populações e descobrir mais sobre sua biologia, hábitos reprodutivos e movimentação”, aponta Gallardo.
O achado foi publicado na última edição da revista Bird Conservation International. O artigo (confira abaixo) também é assinado por Luís Fábio Silveira, do departamento de Zoologia da Universidade de São Paulo, e por Adriana Akemi Kuniy, da JGP Consultoria e Participações.
Raridade em perigo
Clique para ampliar
|
O tiê-bicudo foi descrito em 1939, a partir de uma única ave coletada no Mato Grosso, provavelmente na região da antiga Estação Telegráfica de Juruena (veja aqui no GoogleEarth). Permaneceu sem novos registros até 2003, quando foi localizada em Emas. A população nos Parecis foi avistada com mais frequencia em alagados, próximos à vegetação comum ao Cerrado.
“Até hoje, praticamente nada se sabia sobre sua biologia ou comportamento. Nossa pesquisa com a população do Alto Juruena indica que a espécie provavelmente é associada a ambientes alagados ao longo dos rios, e que é naturalmente rara na natureza, por estar associada a ambientes bem particulares”, explicou Gallardo.
Apesar da população diminuta e da pouca informação disponível, o tiê deixou em 2003 a lista federal de animais ameaçados. Mas ainda figura na relação da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN, sigla em inglês), como “criticamente ameaçada”. “A ave deveria voltar à lista do Ibama, porque sua população é pequena e isolada”, reclamou Gallardo.
Expansão questionada
Mas os problemas do pequeno tiê são bem maiores. A região do Alto Juruena, como mostrou O Eco em abril de 2008 (veja aqui), é alvo de projetos para dez pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) e duas usinas de grande porte da Maggi Energia e Juruena Participações e Investimentos. O conjunto prevê geração de 300 Megawatts e já estão em construção pelo menos as PCHs Sapezal, Rondon, Parecis, Cidezal e Telegráfica (confira o mapa acima). O empreendimento da PCH Jesuíta financiou os estudos que levaram à descoberta da nova população do tiê-bicudo.
“Até o momento, a ave foi registrada em seis rios, no Formiga, Juruena, Buriti, Papagaio, Verde e Claro. Portanto, a expansão de usinas nesses rios deve ser criticamente avaliada porque os barramentos suprimirão grande parte das áreas onde foram feitos registros da espécie. É preciso averiguar sua ocorrência em outros locais”, disse Gallardo.
A ocupação humana na região dos Parecis/Juruena por grandes propriedades dedicadas ao plantio de soja engoliu enormes quantidades de Cerrado e fez florescer municípios como Comodoro, Campos de Julio, Sapezal e Campo Novo do Parecis. Por lá já foram registradas cerca de 1.500 espécies de animais – mais de 830 tipos de aves, 150 de anfíbios, 120 de répteis e 50 de mamíferos, como capivara, anta e macacos.
Por isso, Gallardo aponta que a criação de parques nacionais, reservas biológicas e outras unidades de conservação, bem como o respeito à legislação ambiental pelos proprietários rurais, será fundamental para se garantir a sobrevivência do tiê e de várias outras espécies brasileiras. “A principal estratégia é preservar seus habitats, para que a ave persista no longo prazo. E isso se faz com novas unidades de conservação e com a manutenção de áreas de preservação permanente e reservas legais nas propriedades rurais”, apontou o pesquisador.
Leia também
COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas
Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados →
Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial
Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa →
Trilha que percorre os antigos caminhos dos Incas une história, conservação e arqueologia
Com 30 mil km que ligam seis países, a grande Rota dos Incas, ou Qapac Ñan, rememora um passado que ainda está presente na paisagem e cultura local →
Moro no Lago Norte, Brasília DF e tem um casal dessa espécie que fez ninho no jardim pela terceira vez, achei interessante por se tratar de uma área urbana. Parabéns pelo estudo.