Reportagens

Quem tá na chuva é para se molhar

População relata dramas para em meio a temporal no Rio, que custa a tomar medidas de adaptação a eventos extremos

Thiago Camara ·
7 de abril de 2010 · 14 anos atrás

Todo mundo sabe que deslizamentos de terra, enchentes e transbordamento de lagoas transformam a paisagem carioca em caos e destruição. Os especialistas dizem, no entanto, que desta vez choveu muito mais do que qualquer um poderia prever. São os eventos extremos, com os quais o Rio de Janeiro e outras tantas cidades vão ter que lidar em um cenário de alterações climáticas.

Acontece em praticamente todo o verão. Este ano, a tragédia de maior extensão surpreendeu os moradores da região metropolitana do Rio no início do outono. Traumatiza, mas passa, sem mudanças estruturais sólidas para que prejuizos materiais e humanos sejam evitados nas temporadas seguintes. Tanto que, em plena encosta, há quem lamente quase ingenuamente, sem ao menos perceber que vive sob risco.

No Morro dos Prazeres, no bairro de Santa Teresa, uma avalanche de terra, lixo e água desceram de uma encosta atingindo diversas casas. O vigilante Ronaldo Ardelino, que mora há 32 anos na comunidade, disse que as casas atingidas não estavam em risco e que os moradores nunca foram notificados do perigo que corriam. “Nunca houve preocupação ou visita dos governantes neste local. Há vários anos as pessoas moravam aqui e nunca aconteceu isso. Mas, dessa vez, acho que a terra não teve como absorver tanta água. Quem tem parentes vai para a casa deles. E quem não tem, vai pra onde?”, indaga o morador.

As milhares de pessoas que sofreram as consequências das chuvas numa região despreparada para lidar com elas nos últimos dias sentiram-se impotentes. Algumas passaram mais de dez horas dentro dos coletivos, outras esperaram os poucos ônibus que passavam pelas ruas da cidade para conseguir voltar do trabalho. A sargento da Aeronáutica, Natália Guimarães, de 24 anos, foi uma que não conseguiu nem chegar ao seu destino.

“Na terça-feira pela manhã fiquei duas horas dentro do ônibus que em um determinado momento parou e ficou próximo ao morro do Castro, em São Gonçalo. Resolvi descer e voltar a pé para casa. Andei cerca de 10 km em duas horas até Alcântara. Atravessei um rio que transbordou e passava com água acima do joelho”, lembra. “Quase não havia policiamento e informação para nós. Em compensação, havia muita terra na rua, muitos barrancos desabaram. Fiquei muito nervosa porque isso nunca aconteceu comigo”.

A preocupação também tomou conta do administrador Pedro Paulo da Silva. Morador do Jardim Botânico, na Zona Sul da capital, ele saiu de casa na terça-feira às 5h da manhã em direção ao trabalho, no Estaleiro Mauá, as margens da Baía de Guanabara, em Niterói. Foram mais de duas horas de tensão e no meio do caminho ele precisou voltar para casa. O medo de ficar submerso fez com que ele optasse por atalhos e tentasse enfrentar as vias alagadas. Segundo ele, os prejuízos de sua empresa são incalculáveis.

“Lá no estaleiro quase ninguém conseguiu chegar. Os que foram não puderam trabalhar. Temos prazos de entrega, contratos que não podemos descumprir e outras obrigações que um dia como esse não nos permitiu realizar, além dos prejuízos para o ecossistema”. Pedro Paulo disse que no meio da chuvarada um paiol de tinta desabou e esse material pode atingir o mar.

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Falta de planejamento gerou caos

Ainda sob o choque de ver uma região metropolitana inteira parar, achar uma solução da noite para o dia não convence. “O Rio é refém de sua falta de planejamento urbano e ainda da ausência de uma política habitacional contínua. Não adianta retirar as pessoas das áreas de risco se para elas não é dada possibilidade de um recomeço próximo ao local onde morava. Recomeçar a urbanização do zero é impossível. Mas é viável uma política pública de manejo em todos os níveis da população”, explica Marcelo Motta, membro do Tektos da UERJ, grupo que estuda mapeamento geológico.

A situação costuma ser mais grave no Rio justamente por causa de suas peculiaridades geográficas, que por isso mesmo deveriam ter atenção especial. “Por causa do histórico de ocupação da cidade e sua região geomorfológica há muita dificuldade no escoamento da grande quantidade de água que precipitou. A solução seria adotar medidas de macro e microdrenagens, além da conscientização da população no tratamento do lixo que produz”, explica Adriana Filgueira, especialista em Hidrologia e Climatologia pela PUC-Rio. Em outras palavras, isso quer dizer fazer desobstruções de bueiros para um melhor escoamento das águas pelas tubulações, além da limpeza e manutenção dos rios canalizados para a rápida liberação das águas para o mar. Só que, para isso, é necessário haver um trabalho sistêmico entre população e poder público.

Para Adriana, a recomposição de encostas e maciços que rodeiam o Rio de Janeiro e a proteção das matas ciliares devem ser planejadas e executadas. “Essas medidas aumentariam a quantidade de solo em que a água pode permear e isso diminuiria o tempo de descida dela para as ruas”, observa.

Chuva forte era prevista

Atribuída como atípica pelo prefeito do Rio, Eduardo Paes, a chuva de segunda-feira já era esperada pelos metereologistas. Segundo o professor Isimar Azevedo, do Instituto de Geociências da UFRJ, o sistema de alerta da prefeitura é excelente e estava de prontidão sobre essas chuvas, mas, ainda assim, não seria possível evitar a tragédia. “Se nós queremos viver neste lugar precisamos providenciar a minimização deste problema e querer se adequar no convívio com a natureza. Essas massas de ar sobre a cidade sempre existirão”, diz.

Azevedo concorda que esta pode ter sido a pior chuva do estado do Rio. Ele defende um investimento maior na infra-estrutura da cidade, a exemplo de países do Hemisfério Norte. “Cidades como Seattle e New Orleans não são pegas desprevenidas com as chuvas. Elas possuem sistemas de bombeamento para que o escoamento da água não dependa da baixa da maré”, aponta.

Há duas semanas, o Fórum Urbano Mundial realizado pela ONU na cidade do Rio de Janeiro discutiu os problemas e desafios da urbanização nos próximos anos. Entre as conclusões estão a necessidade de contenção da crescente ocupação de encostas e áreas de risco nos países em desenvolvimento. Mas, segundo Ana Abrahim, arquiteta-urbanista que participou do evento, o que falta é mudança de atitude e mentalidade.

“As cidades precisam ter administradores delas mesmas. Existe este tipo de graduação nos EUA. Os urbanistas no Rio são teóricos, estão fazendo pesquisas nas universidades. A ausência desses profissionais é refletida nestas catástrofes. Politiza-se tanto que não se executa. Política é processo, e não evento como se faz hoje”, critica.

*Thiago Camara é jornalista no Rio de Janeiro.

 

Relembre em artigos de O Eco que a chuva não é ré

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