Herança do falecido senador ruralista Jonas Pinheiro (DEM/MT), um projeto de decreto legislativo tramitando desde 2004 no Congresso ameaça o futuro do rio Araguaia e de seu afluente rio das Mortes.
A proposta prevê obras como dragagens e explosões de rochas no leito dos mananciais, no Mato Grosso, Goiás, Tocantins e Pará, para tentar transformá-los em hidrovias navegáveis durante todo o ano. As intervenções podem acontecer dentro ou à margem de terras indígenas e áreas destinadas à conservação ambiental.
A aprovação do projeto pode trazer efeitos colaterais, como a degradação dos rios e mais impulso ao desmatamento do Cerrado.
A proposta pretende facilitar o escoamento da produção agrícola do Centro-Oeste rumo ao porto de Itaqui, em São Luís (MA). O principal fornecedor de água pela margem esquerda do Araguaia é o rio das Mortes, onde o ex-parlamentar indica 550 quilômetros de “extensão potencialmente navegável”, de Nova Xavantina a São Félix do Araguaia, no Mato Grosso.
Já no Araguaia, ele aponta 1.230 quilômetros de “trechos navegáveis”, entre Aruanã, em Goiás, e Xambioá, no Tocantins. Os novos canais para escoamento de soja e carne tipo exportação ganhariam força com o asfaltamento de rodovias e ampliação da malha ferroviária entre Estreito e Imperatriz, no Maranhão, chegando ao porto através das ferrovias Norte-Sul e dos Carajás.
As estimativas levantadas à época em que o projeto chegou ao Senado eram de uma movimentação anual de aproximadamente 10 milhões de toneladas de cargas, “induzindo a ocupação econômica e social do Cerrado, especialmente mediante a criação de novos empregos na área da agroindústria, sem contar os impactos benéficos em outros segmentos de grande potencial na região, como, por exemlo, o ecoturismo”, diz a proposta (veja aqui). Um tipo de casamento que, no Brasil, costuma acabar em divórcio.
Por afetar reservas indígenas, o complexo arranjo depende de aval do Congresso. Segundo declarações de Pinheiro, a implantação do corredor vinha sendo “obstaculizada pela interposição de ações judiciais que têm impedido até mesmo a prévia realização dos estudos e projetos indispensáveis à efetiva execução das obras de melhoramentos que permitirão a utilização das vias navegáveis em larga escala. Tais ações têm sido embasadas em pressupostos de violação dos direitos constitucionais dos índios, visto que alguns trechos dos referidos rios ‘cortam’ terras indígenas”. No alvo, estão reservas e aldeias de Xavantes, Carajás, Tapirapés e Javaés, para as quais os rios são base de sobrevivência. Os impactos das obras, todavia, têm volume ainda maior.
Inconveniência natural
Mudando constantemente de traçado e carregando enormes quantidades de areia em seus 2.000 quilômetros de extensão, como apontou o geógrafo Aziz Ab´Saber em Os domínios de natureza do Brasil (2003), o Araguaia é um rio de planície fadado a poderoso assoreamento natural, com calado para navegação em média com menos de um metro de profundidade. Na estiagem, de abril a novembro, o nível é ainda menor, chegando a cerca de sessenta centímetros. Os custos da dragagem ininterrupta para manter trechos navegáveis seriam estratosféricos.
“Há vários inconvenientes para a implantação de uma hidrovia no Araguaia. Em dez anos de pesquisas, vimos mudanças importantes no rio, que está perdendo sinuosidade e muitas ilhas. O canal navegável se desloca de sete a onze metros por dia e tem profundidade média de um metro. Isso é produto da grande dinâmica do rio e dos sedimentos arenosos que transporta, por causas naturais, mas também muito pelo desmatamento, que atinge perto de 60% da sua bacia”, informou Maximiliano Bayer, geólogo, pesquisador em geografia física, dinâmica fluvial e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Além disso, remoções de areia e explosões de rochas para tentar garantir a passagem de embarcações mudariam a velocidade e quantidade da água que o rio naturalmente transporta, afetando também a vida dos indígenas, a região do Bananal, onde está a maior ilha fluvial do mundo e o parque nacional do Araguaia, bem como o complexo de lagoas do Cristalino. Os prejuízos ao turismo, a populações e à conservação da biodiversidade são evidentes.
“Apenas entre Aruanã e Barra do Garças, seriam necessários oito derrocamentos (explosão e retirada de rochas), provocando grandes mudanças no rio, como no transporte de sedimentos e na vida aquática, trazendo ainda mais impactos negativos ao Araguaia”, apontou Bayer.
Como O Eco mostrou em março de 2008 (veja aqui), a região das nascentes, entre Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, vem sendo duramente prejudicada pela formação de imensas erosões. Desde a área próxima ao parque nacional das Emas, as chamadas voçorocas são encontradas em cerca de 5 mil quilômetros quadrados, principalmente em Mineiros e Santa Rita do Araguaia (GO), além de Alto Taquarí e Alto Araguaia (MT). As erosões levam toneladas de sedimentos para os leitos de córregos e rios que desaguam no Araguaia, e são provocadas pela insistente agropecuária em solos inadequados, associada ao desmatamento irrefreável do Cerrado.
Óleo e tartarugas
O escoamento da produção aconteceria principalmente durante a estiagem no Centro-oeste, com o nível baixo das águas, e por até 24 horas por dia, com barcaças passando a cada meia hora rio abaixo. Estudos conduzidos pela UFG e outras instituições de pesquisa em hidrovias mostram que manchas de óleo deixados na água pelas embarcações desnortearam tartarugas, fazendo-as perder as praias usadas para desova. Análises também apontaram que as obras transformariam trechos do Araguaia em “grandes lagos”, favorecendo peixes como tucunarés e piranhas, em detrimento de “grandes bagres”, como filhote e pirarara.
Outro argumento se refere à vocação natural do Araguai, que nasce em Goiás. Ele, historicamente, tem sido usado para o turismo e recreação. Isto garante a sobrevivência de milhares de famílias que vivem da atividade comercial, trabalhando em pousadas, conduzindo barcos com visitantes ou pescadores. A hidrovia daria cabo desses empregos, afinal. “O turismo, focado na pesca esportiva e na contemplação das belezas do rio seriam irremediávelmente comprometidos com a obra, contrariando planejamentos e esforços dos governos federal e estadual para fomentar o turismo na região”, disse Álvaro Coutinho dos Santos, escritor e voz ativa pela preservação do Araguaia desde 1967.
Ainda segundo ele, a hidrovia Araguaia/rio das Mortes pode ser evitada com investimentos em outros modais de transporte. Uma alternativa é ampliar a malha da ferrovia Norte-Sul no sudoeste goiano, mais positiva dos pontos de vista econômico e ambiental. “Ela (ferrovia) resolverá a questão da redução no preço dos fretes, principal argumento usado para a hidrovia do Araguaia”, comentou. Também é possível investir na duplicação das BR-153, entre Anápolis e Porangatu, e BR-060, entre Goiânia e Jataí.
Conforme Bayer, da UFG, o melhor caminho é respeitar e fazer uso econômico das características naturais dos rios. “Deveriam ser respeitadas as vocações das distintas regiões hidrográficas do Brasil, já descritas em planos estratégicos oficiais de recursos hídricos para cada bacia. No caso do Araguaia, a melhor opção é deixar o rio como ele está”, ressaltou.
Tramitação
O projeto da hidrovia que ameaça de morte o Araguaia é tocado agora pelo senador Gilberto Goellner (DEM/MT), que assumiu a vaga de Pinheiro após sua morte. Um relatório favorável à proposta já foi aprovado no início de março na comissão de Agricultura do Senado, com emendas de Goellner, e fixando prazo de 90 dias para que Funai e Ibama emitissem análises sobre a iniciativa.
O texto tramita agora na comissão de Constituição e Justiça, onde o relator é o senador Marconi Perillo (PSDB/GO), que não respondeu aos pedidos de entrevista. Ele é candidato ao governo de Goiás, estado que comandou em 2004, quando se posicionou cotrariamente à hidrovia. O mote de sua nova campanha é “Volta!”… O projeto ainda passará por outras duas comissões antes de chegar ao plenário do Senado. Se avançar tanto, dependerá em seguida da aprovação da Câmara dos Deputados.
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