Reportagens

Pirarucu da discórdia na Ilha do Bananal

Limites para pesca em terra indígena no rio Araguaia torna-se questão central na estratégia de conservação na maior ilha fluvial do mundo.

Leilane Marinho ·
6 de janeiro de 2011 · 14 anos atrás
Foto: Leilane Marinho
Foto: Leilane Marinho

 

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Ilha do Bananal – A relação com a água vem desde a concepção destes povos quanto a origem da humanidade. Para os índios Karajá e Javaé, habitantes da Ilha do Bananal (TO), maior ilha fluvial do mundo com quase 2 milhões de hectares, os primeiros humanos ascenderam das profundezas do rio Araguaia para habitarem o plano intermediário entre o nível subaquático e superior (celeste). Eles contam que no local da passagem, existe até hoje um enorme buraco e uma bananeira de dimensões grandiosas – quando o homem veio ao mundo trazia consigo a banana, daí o nome da Ilha do Bananal.

Com suas aldeias mirando os cursos dos rios, estes índios cultivam uma relação íntima com o “Fundo das Águas”. O cotidiano, a disposição das casas, os rituais, a alimentação e o meio de subsistência, tudo gira em torno dos rios. É das profundezas de seus leitos que as comunidades tiram o seu sustento espiritual e material.

A pesca representa a principal atividade econômica e fonte de proteína na dieta alimentar nas aldeias. Com a venda do peixe, as famílias têm o dinheiro necessário para a compra do óleo, arroz, café e açúcar. O artesanato e a caça ficam em segundo plano.

Contudo, nas Terras Indígenas (T.I.) Inãwébohona (2006) e Utaria Wyhina Irána Iródu  (2010) sobrepostas ao Parque Nacional do Araguaia (PNA), gerenciado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), praticar a pesca para fins comercias é do ponto de vista jurídico, incompatível com os objetivos de um parque nacional. A Lei Federal 9985/2000 prevê que nas Unidades de Conservação de Proteção Integral é permitido “apenas o uso indireto dos seus recursos naturais”. Não é o que acontece no PNA.

Da Ilha, são 562 mil hectares que estão sob o regime de dupla-afetação. O restante pertence a T.I. Parque Indígena do Araguaia (PQARA), onde vivem cerca de cinco mil índios, somando os Javaé, os Karajá e alguns poucos da quase extinta etnia Ava Canoeiro, conforme contagem da Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

A inicial incoerência que gerou muitos embates cria, agora, a oportunidade de uma gestão participativa em que agentes do ICMBio e índios buscam compatibilizar exploração com preservação. O foco dos índios pescadores é o pirarucu, maior peixe de escamas de água doce do Brasil, ameaçado de extinção. Sua pesca é proibida no estado, mas por ser abundante na Bacia do Araguaia, os índios querem viabilizar seu comércio num programa de manejo de pesca sustentável.

Reportagem continua abaixo

 

Gestão indígena

A proposta de conservação de biomas em terras indígenas está sendo reforçada pelo Governo Federal com o projeto “Catalisando a contribuição das terras indígenas para a conservação dos ecossistemas florestais brasileiros”, ou GEF Indígena, lançado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e Ministério do Meio Ambiente (MMA) no início de dezembro. O projeto busca a valorização das terras indígenas para a conservação da biodiversidade, e pretende mostrar a capacidade de gestão territorial e ambiental dos povos indígenas, ou seja, como eles podem gerir suas terras com seus usos, costumes e tradições, desde que seus direitos estejam assegurados em uma política nacional. Com isso, o projeto trabalhará para fomentar o desenvolvimento e implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental em Terras Indígenas (PNGATI).

Com os Javaé

Foi no fim de uma tarde úmida que atravessei o rio Javaé rumo a aldeia Boto Velho, que fica na T. I. Inawebohanã.  Além desta, outras duas aldeias da etnia Javaé, a Waotynã e Txiodé, ficam na área sobreposta. No total, segundo informações do ICMBio, vivem 150 índios na Inawebohanã.

A sensação de estar numa ilha é intrigante. Cercada pela água, pude compreender a relação daquelas comunidades com este precioso recurso. E é só falar em peixe que os ânimos se alteram. Numa roda de conversa, Paulo César Huruká Javaé, 37 anos, contou a humilhação que muitos pescadores sofreram no passado. “Muitos índios foram presos vendendo pescado para atravessador por R$ 2 o quilo. Mas o que podemos fazer? Nós somos pescadores”, desabafa Huruká.

Basta os primeiros raios do sol baterem no curso das águas, que a Boto Velho desperta para a atividade praticada por toda a aldeia: a pescaria. Divididos em grupos de três ou quatro, os pescadores organizam seus apetrechos e partem na direção dos quase 200 piscosos lagos que existem no PNA. As crianças, que neste período do ano estão de férias escolares, também passam parte do dia no rio, na margem da aldeia, pescando tucunarés e tartarugas. Dentro das casinhas de pau-a-pique, as mulheres organizam o fogo e aguardam a chegada do almoço. É assim todos os dias.

Na casa dos 90 anos, Passarinho Javaé observa a saída dos barcos. Ele lembra do tempo em que utilizava com mestria o arpão e o arco e flecha para selecionar os melhores peixes antes de matá-los. “Eu via eles passando pertinho e só mirava no melhor. Hoje se pega todo tipo peixe, muitos pequenos, não deixa o bicho crescer”, contraria-se o ancião, contra as tarrafas e as redes.

Acordo de Pesca

Foto: Leilane Marinho
Foto: Leilane Marinho

A saída ilegal de pescado do PNA é o principal estorvo entre os índios e os agentes do Instituto. Para o ICMBio, a pesca realizada dentro da área sobreposta é predominantemente desordenada e não segue critérios de sustentabilidade. “Apesar de existir um certo grau de preocupação dos índios com a manutenção dos estoques pesqueiros, isso não necessariamente se traduz em um planejamento e em ações que objetivem conferir sustentabilidade a esta atividade”, explica a chefe do parque, Fernando Tizianel.

Em 2007, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) estreitou o diálogo entre pescadores da área sobreposta e o ICMBio.  A iniciativa, que deve se transformar num Acordo de Pesca no próximo ano, prevê o ordenamento do recurso pesqueiro visando o manejo comunitário e sustentável. O intuito foi legalizar a atividade, compatibilizando-a com os objetivos da Unidade de Conservação (U.C.).

Às escondidas

Mas o processo é lento. Passaram-se três anos e até hoje os pescadores não possuem a nota-fiscal que permite a comercialização do produto. O transporte do pescado ainda acontece às escondidas, e os índios reclamam por terem que trabalhar na surdina.

PNA

O Parque Nacional do Araguaia, criado em 31 de dezembro de 1959, constituindo-se de uma extensa planície, formada por sedimentos quaternários fluviais, periodicamente inundada pelas cheias dos rios Araguaia e Javaés. Situado na faixa de transição entre a floresta amazônica e o cerrado, tem uma Vegetação diversificada, rica em espécies desses dois biomas.

Mesmo impacientes, é como se eles não tivessem outra saída senão empenharem-se em agir conforme ditam as leis ambientais. “Fizemos um manejo com 60 lagos, e separamos 19 para pesca comercial e o restante para consumo próprio, só que vem outros pescadores e acabam invadindo a nossa área. Nossa intenção é trabalhar na legalidade”, explica Manoel Karajá, 35 anos, presidente da Associação de Pescadores Natureza Viva.

A entrada clandestina de pescadores índios e não-índios no Parque é rotineira. Muitos deles vêm do Pará e do PQARA e carregam cargas enormes de peixe. Só este ano, mais de uma tonelada de pescado foi apreendida.

Como estamos na Piracema, época de desova dos peixes, até fevereiro de 2010 a pesca comercial é proibida. Enquanto isso, os índios da Boto Velho aguardam a sonhada carteira profissional e planejam o dia em que terão a licença para comercializar legalmente o pescado. “Vivemos nessa pendenga e nem o seguro da Piracema saiu”, conta Manoel Karajá.

De olho na pirosca

No Plano de Manejo do PNA, cerca de 300 espécies, muitas delas endêmicas, povoam a bacia do rio Araguaia. A diversidade ictiofaunística é grande e peixes como o tambaqui, pacu, caranha, pirapitinga e o pirarucu são abundantes. Este último, também conhecido como pirosca, pode atingir até 100 quilos de peso e dois metros de comprimento. Por ter respiração aérea obrigatória, são facilmente capturados pelos índios com arpões, principalmente na época de reprodução. “A gente procura a “cama” do peixe, que dá pra ver direitinho onde apontar”, ensina o Nego Javaé, pescador.

Na Boto Velho, um pequeno cercado dentro do rio guardava dois grandes pirarucus que foram capturados vivos. “Já estão vendidos a 100 reais cada um, falta só o dono vir buscar”, disse o pescador. Eles desejam o comércio legal do pirarucu, que possui um alto valor no mercado. Com o aumento da renda, as famílias planejam a educação dos filhos. “Eu penso grande e quero poder ter uma casa boa e dar estudo para as minhas meninas”, diz Paulo César Huruká.

Longe de entrar em conflito novamente com as aldeias, o analista ambiental Raoni Japiassu Merisse conta que o PNA prioriza agora a aproximação com as comunidades. “Um grupo de pessoas que representam uma ameaça para a biodiversidade da área podem se tornar parceiros na gestão e mesmo na proteção do parque. Por isso o ordenamento pesqueiro é estratégico”, completou Japiassu.

O técnico da Funai Georthon Aurélio Brito, acredita numa gestão compartilhada, e cita o caso do índio Manuel Javaé, que atento a degradação ambiental, relatou a seca dos rios em época de cheia e a baixa na quantidade de peixes nos últimos anos. “Já foram feitas inúmeras denúncias e reuniões dos indígenas com órgãos governamentais e não governamentais, para falar da captação irregular de água do Rio Javaés para irrigação da monocultura e o pisoteio de 100.000 cabeças de gado nas margens dos lagos e lagoas. É possível unificar as gestões”, finaliza.

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