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83% das espécies de raias e tubarões comercializadas no Brasil estão ameaçadas

Pesquisa identificou que 64 espécies de elasmobrânquios são comercializados no país. Rotulagem e monitoramento mais rígido podem minimizar impacto

Heloisa Gamero ·
10 de abril de 2024

Sessenta e quatro das 203 espécies de raias e tubarões presentes no Brasil estão sendo comercializadas. Na maioria dos casos as carnes são vendidas como o termo genérico “cação”, é o que diz uma pesquisa que saiu esse mês na “Biological Conservation”. Os pesquisadores identificaram pelo DNA que 83% das espécies comercializadas estão ameaçadas de extinção, enquanto 12% se encontram na categoria “quase ameaçada” pela lista vermelha da IUCN.

Segundo o artigo “Fifteen years of elasmobranchs trade unveiled by DNA tools: Lessons for enhanced monitoring and conservation actions”, liderado pela pesquisadora Marcela Alvarenga, houve a detecção de 36 espécies de tubarões e 28 de raias comercializadas no Brasil disponíveis em 35 artigos publicados entre 2008 e 2023. A revisão de bibliografia mostrou que a região Nordeste é a que possui a menor quantidade de estudos genéticos para identificação de espécies. 

Segundo o pesquisador Rodrigo Domingues, do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo e coautor do artigo, os principais desafios de estudar a pesca de elasmobrânquios a partir de análises genéticas são a falta de programas de monitoramento no Brasil, a baixa regulamentação da atividade e o alto custo para se fazer pesquisa nessa temática. Além disso, aponta uma animosidade recente entre pesquisadores e pescadores devido à proibição de algumas espécies de elasmobrânquios, o que dificulta o acesso ao que está sendo retirado do mar e em qual quantidade.

Apesar de, em tese, existir proibição de comercialização (ou maior controle) de animais que estão inseridos na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas, o estudo indica que estes continuam à venda no Brasil. O uso do termo genérico “cação” é uma das práticas que prejudica a fiscalização e contribui para a consumação desses animais. De acordo com Rodrigo, logo que os animais são capturados, sua cabeça e nadadeiras são removidos, desembarcando apenas o seu tronco, dificultando, portanto, a identificação da espécie. Assim, mais de uma espécie (ameaçada ou não) é vendida como o nome comum de  cação. A prática mitiga o conhecimento do consumidor, que muitas vezes consome raias e tubarões ameaçados sem estar ciente. 

“O brasileiro médio não faz essa distinção [que carne de cação é tubarão]. Para eles, no mínimo, cação é o que se come, enquanto tubarão é aquele enorme no filme que tá lá no mar e é perigosor”, argumenta o biólogo. 

Comércio de barbatana de tubarão é responsável pela morte de milhões de predadores por ano. Foto: Jeso Carneiro/Flickr.

Segundo o artigo, foram encontradas 237 rotulagens incorretas em produtos marinhos. Houve 85 raias sendo vendidas como tubarões e 22 tubarões vendidos como raias. Em situações específicas, espécies de tubarões e raias foram comercializados como peixe-viola. Também houve ocorrências de tubarões sendo vendidos como salmão ou corvina. Em instituições de educação também foi encontrado rótulos incorretos, carnes de tubarão acabaram sendo servidas como proteína de peixe. O mesmo também aconteceu em restaurantes particulares. 

O Brasil possui uma inclinação forte para a importação e exportação de mercadoria de origem marinha, outro fator contradizente na proposta de preservar a fauna ameaçada, já que corrobora com a sobrepesca. Segundo relatório produzido pela ONG WWF em 2021, o Brasil foi o maior importador de carne de tubarão, recebendo 149.484 toneladas entre 2009 e 2019. Para completar o paradoxo, segundo o recente estudo da Biological Conservation, a pesca brasileira aumentou a captura de raias, sendo o terceiro maior exportador de carne de raia para a Coreia do Sul em 2021, a maior consumidora da espécie no mundo.  

Nesse sentido, o país entra em um território de pesca predatória que pode não haver volta para espécies em risco iminente de extinção. O artigo revela que 12 espécies de raias e tubarões classificadas como Criticamente Ameaçadas pela IUCN foram detectadas no comércio brasileiro. São elas: Atlantoraja castelnaui, Carcharhinus porosus, Carcharias taurus, Fontitrygon geijskesi, Galeorhinus galeus, Isogomphodon oxyrhynchus, Pristis pristis, Pseudobatos horkelii, Sphyrna lewini, Sphyrna mokarran, Sphyrna tudes, Squatina occulta.

Em entrevista a ((o))eco, o pesquisador Rodrigo Domingues fala sobre tubarões, pesca e medidas que podem mitigar o problema. Veja a entrevista na íntegra:

((o))eco: Por que é difícil analisar as espécies que estão sendo comercializadas? 

Rodrigo Domingues: Porque não existe um programa adequado de monitoramento. Não existe um programa de monitoramento a longo prazo, onde semanalmente ou mesmo mensalmente sejam realizadas coletas ou mesmo fiscalizações nos postos de pesca. Se houvesse, as amostras coletadas poderiam ser enviadas para um laboratório que realiza pesquisa com esse grupo e as espécies poderiam ser corretamente identificadas. Porém, isso não existe, o conhecimento que temos é é feito de maneira pulverizada, através de uma tese, dissertação, pesquisa pontual, porém nunca com um monitoramento contínuo.. Uma outra dificuldade, principalmente quando se trata de identificação molecular, é o alto custo,  pois este tipo de pesquisa envolve a utilização de diversos equipamentos e reagentes que são caros, então a questão do recurso também acaba limitando essa prática mais constante de identificação molecular desses animais. 

Outra situação que acaba dificultando é o acesso, nem sempre os pesquisadores têm acesso aos desembarques de pesca. Por exemplo, não é fácil conseguir acesso aos desembarques da pesca industrial, coletar tecidos e realizar a pesquisa, ainda mais depois da normativa 445, que trouxe um grande imbróglio, e, vamos dizer assim, uma animosidade entre pesquisadores e pescadores. 

Qual é o impacto desses animais no oceano?

Os elasmobrânquios no geral, fazem parte dos níveis tróficos superiores, pois são mesopredadores e predadores do topo, tendo, portanto, uma importância muito grande no no controle de populações e equilíbrio dos ecossistemas marinhos,. Quando as populações desses animais diminuem significativamente ocorre o efeito cascata “top down”, que é quando você causa a diminuição de predadores no topo, permitindo o aumento de abundância de suas presas, que por sua vez, acabam predando muito mais outra espécie que está abaixo do nível dela, alterando toda a cadeia trófica. 

Então quando você remove os elasmobrânquios, o principal efeito seria então o desequilíbrio de todo um ecossistema. 

Por que o Brasil continua fazendo essa pesca predatória? 

O principal problema é que o Brasil consome muita carne de tubarão e também existe uma demanda por algumas partes desses animais para o mercado asiático, como as nadadeiras dos tubarões e os feixes brânquiais de algumas espécies de raias. Como um dos países que mais consomem carne de tubarões, o fato de que sua carne é completamente imprópria para consumo, embora se diga ser saborosa, pois como predadores de topo esses animais são bioacumuladores tendo uma alta concentração de metais pesados em sua carne, fazendo muito mal pra saúde. Tem lugares do Brasil, por exemplo, que se oferece carne de tubarão em maternidades, em escolas, e isso não se vê em qualquer outra parte do mundo. Isso não é permitido nos Estados Unidos, nem em países da Europa. Mas o Brasil é um consumidor da carne do tubarão. 

O segundo aspecto é que o Brasil é um grande exportador de nadadeiras para o mercado asiático, que as consomem principalmente na forma de sopa de nadadeiras, que é tratada principalmente na China como uma iguaria e uma refeição afrodisíaca. . Então para o Brasil vale a pena direcionar a pesca para a captura de tubarões, pois existe uma demanda interna pela carne e uma demanda muito lucrativa para a exportação para o mercado asiático.

O Brasil, além de consumir, também  importa grande quantidade de tubarão  azul do Uruguai para consumo de sua carne.  

Há alguma recomendação dos pesquisadores para evitar a extinção desses animais? 

Existem vários mecanismos para a preservação desse importante grupo. Uma das mais eficazes é a criação das áreas marinhas protegidas,. Um bom exemplo é Arquipélago de Alcatrazes, que se tornou um refúgio da vida silvestre, sendo proibido qualquer tipo de atividade de pesca ali, seja ela esportiva ou comercial. E a gente tem visto o resultado disso nos últimos anos, começaram a aparecer o que não era visto antes, muitas espécies de tubarões habitando aquela área. Tem um artigo que saiu agora, identificando 7 espécies de tubarões, 6 ameaçadas de extinção. Então, áreas marinhas protegidas são uma maneira bastante efetiva de preservação dos elasmobrânquios. 

Outras formas envolvem a gestão pesqueira, realizando avaliações de estoque e informando os órgão gestores o que se poderia capturar e em qual quantidade. A questão é que a maioria dos pesquisadores que estudam tubarão, não acredita que sua pesca seja sustentável, porque eles são organismos k-estrategistas, ou seja,  possuem crescimento lento, maturação gonadal tardia, longo tempo de gestão, baixa prole e uma grande longevidade, tornando seu modo de vida muito mais parecido com os das baleias do que com sardinhas. Então, uma vez que suas populações colapsam, sua recuperação pode levar muitas décadas. Portanto, a pesca é o principal vilão na questão de extinção desses grupos. 

Uma vez que é quase que uma utopia ter uma proibição total da pesca de todas espécies de tubarões, o que deveria acontecer então é a regulamentação da pesca, proibindo pelo menos a captura de espécies que estão ameaçadas de extinção. E também fiscalização da captura ilegal, não adianta só ter lei, porque aí se burlam as leis e continua a captura, teria que ter uma fiscalização muito mais efetiva por parte dos órgãos competentes. Essas seriam medidas que trariam bastante benefícios para a população de tubarões, não só no Brasil, mas em todo o mundo.”

*Atualizada às 22h16, do dia 10 de abril de 2024.

  • Heloisa Gamero

    Estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), observadora de pautas ambientais e de direitos humanos no mundo inteiro

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