Uma das partes mais intocadas da floresta Amazônica, a província de Purus, região fronteiriça do sudeste peruano com o Brasil, está em meio a uma batalha que pode resultar na destruição que milhares de hectares de mata virgem e na exposição de tribos indígenas, algumas delas ainda isoladas. Esta é a conclusão de um estudo lançado hoje (15) pela Organização Não-Governamental Global Witness, que mapeou as pressões por traz da controversa obra de construção da rodovia que liga as cidades de Puerto Esperanza e Iñapari, ambas no Peru. Segundo O Eco apurou, se concretizada, a obra poderá afetar não só as matas peruanas, mas também áreas preservadas brasileiras, como o Parque Estadual Chandless e a Terra Indígena Mamoadate, no sudeste acriano.
O primeiro ponto levantado pela organização é o não seguimento da própria legislação ambiental do país. Pelo projeto, a estrada cruzaria o Parque Nacional do Alto Purus e a Reserva Territorial de Madre de Diós, ambas regiões de alto valor biológico e que são protegidas por uma série de leis nacionais, além do Tratado de Livre Comércio Peru – Estados Unidos, que considera inapropriado o enfraquecimento de qualquer lei de proteção dos recursos naturais de ambos os países. Além disso, essas áreas fazem fronteira com as Reservas Territoriais de Mascho Piro e Murunahua, que, juntas, abrigam a maior concentração de grupos indígenas isolados.
A ONG também elenca em seu relatório uma séria de outras contravenções, que vão de suborno de representantes indígenas pra que se declarem a favor do projeto ao lobby de empresários com interesses locais, como a mineração de ouro. Entre as acusações de irregularidades, estaria a de que políticos locais facilitaram o desmatamento da área em que a rodovia será construída, dando direito de exploração para a empresa responsável; e a discriminação de comunidades indígenas que se opõem ao projeto. A municipalidade lhes recusa trabalho e acesso a medicamentos e voos humanitários.
“Se aprovada, a nova rodovia teria impactos devastadores no meio ambiente e em comunidades indígenas que vivem na área, violando leis de proteção ambiental, o direito de consulta de comunidades indígenas e a proteção de grupos isolados. O Comitê de Transporte, responsável por fazer recomendações no Congresso, falhou ao não dar importância a nenhum desses pontos”, diz o relatório.
Entenda o projeto
Chamada de Rodovia Purus, a estrada, com cerca de 270 quilômetros de extensão, pretende ligar a cidade Puerto Esperanza, na provincia fronteiriça de Purus na região de Yucaialy, com a cidade de Inãpari, na província fronteiriça de Tahuamanum, região de Madre de Diós. Em Inãpari, ela faria conexão com a Interoceânica.
Esta região está entre uma das mais preservadas do país, com cerca de 1,8 milhão de hectares de mata ainda quase intocada. Só a possibilidade de devastação no Parque Estadual do Alto Purus, uma das três áreas protegidas que seriam diretamente afetadas, já é alarmante. Além de ser parte vital do corredor de conservação do Oeste Amazônico e abrigar inúmeras espécies raras e endêmicas, o parque também abriga alguns dos últimos remanescentes de mogno da América do Sul. É também lá onde se encontram os rios Purús e Yurua, últimos tributários da bacia sul amazônica ainda não afetada por barragens.
Além do Parque, a parte da província que seria afetada pela rodovia inclui a Reserva Comunal de Purús e a Reserva Indígena de Madre de Diós, território de tribos indígenas que vivem em “isolamento voluntário”, entre eles a tribo dos Mashco-Piro, cuja existência foi confirmada em filmagem aérea feita em 2007 por uma organização científica alemã que sobrevoava a área.
A região do Purus tem mais de 17 mil km2, mas é povoada por pouco mais de 4.500 habitantes, cerca de 80% de origem indígena. Destes, estima-se que um número entre 500 e 1000 seja de índios que vivem de forma isolada.
As principais organizações indígenas do país, em nível nacional e regional, já se pronunciaram fortemente contra a abertura da estrada. Em entrevista a ((o))eco, Billy Kyte, campaigner da ONG Global Witness, informou que, um dia antes do lançamento do relatório (14), representantes indígenas afirmaram que já preparam protestos, caso o projeto seja aprovado pelo governo peruano.
Escalada em direção ao desmatamento
Os sinais de que uma nova estrada estava para ser aberta na Amazônia começaram a aparecer em 2005, quando o primeiro projeto de lei criando a rodovia foi proposto por parlamentares da região de Ucayali. Depois de um primeiro fracasso, nova tentativa foi feita em 2006, mas o plano só começou a tomar forma em 2008, quando uma Comissão Multi-Ministerial foi criada para implementar o “Plano de Ação para Purus”, que previa, entre outros fatores, a melhora nas conexões aéreas como uma solução a curto prazo para a região.
Aproveitando o rastro do Plano de Ação, políticos a favor da abertura da estrada, liderados pelo deputado Carlos Tubino, propuseram, em abril de 2012, projeto de lei que tornava a obra “prioridade de interesse nacional e necessidade pública”. O principal argumento dos parlamentares é que a estrada propiciará um boom de desenvolvimento a regiões negligenciadas. “A provincia de Purus entrou num processo de desnacionalização ao encontrar-se isolada do resto do país”, argumenta o projeto de lei.
O próximo passo foi dado, então, pelo Comitê de Transporte e Comunicações, em junho de 2012, quando aprovou o projeto de lei por unanimidade. Pela legislação peruana, o Comitê de Populações Indígenas e Meio Ambiente também deveria dar seu parecer, mas, segundo Billy Kyte, essa apreciação tem sido adiada e ainda não tem data para acontecer. Como o Comitê de Transporte e Comunicações lidera o projeto, ele pode enviá-lo para aprovação do resto do Parlamento a qualquer minuto.
“É estranho que o projeto tenha avançado tanto. A única explicação seria mesmo o interesse de políticos que estão por trás do documento. Esta lei não deveria ser aprovada em nenhuma instância, porque ela viola as leis ambientais e sociais do pais”, disse Kyte.
De acordo com o campaigner, a esperança é que o projeto seja vetado pelo presidente Ollanda Humala, caso aprovado no Congresso. “Esperamos que Humala observe as leis peruanas e as recomendações de seus ministros”, declarou.
Problemas e Alternativas
Enquanto a necessidade de desenvolvimento para os habitantes do Purus está entre as preocupações principais de governo e organizações locais, a Global Witness lembra que a abertura da estrada não traria necessariamente o resultado desejado. Pelo contrário, ela daria acesso direto às riquezas naturais da região e facilitaria o comércio de mogno, através da conexão de mercados brasileiro e peruano via Transamazônica.
“Acreditamos que o governo de Ucayali não está preparado para o aumento da extração ilegal de madeira, que a estrada certamente propiciará”, diz o relatório. Além disso, a obra ainda estimularia o garimpo ilegal de ouro, farto na região. Segundo levantamento do Ministério do Meio Ambiente peruano, há cerca de 30 mil minas de ouro operando informalmente em Madre de Diós, onde a estrada terminaria.
Segundo a ONG, emergências médicas e outros serviços poderiam ser solucionados com a melhoria na comunicação do Alto Purus com cidades brasileiras, como Santa Rosa do Purus, localizada a apenas 40 quilômetros de Puerto Esperanza através de transporte pluvial.
Outra alternativa seria o aumento da oferta de voos para cidades como Pucallpa, capital regional localizada a uma hora e meia de voo de Puerto Esperanza. A opinião é compartilhada por Marc Dourojeanni, ex-chefe da Divisão Ambiental do Banco Interamericano de Desenvolvimento (IDB) e colunista de ((o))eco. Para ele, a melhor opção seria um serviço aéreo mais regular e barato, além de investimento no turismo, que trariam empregos e renda para a região.
“Esse foi o caso do Parque Nacional da Gran Sabana na Venezuela, que por décadas era acessado exclusivamente por avião. Tinha até dois voos de jato comercial por dia. Alto Purus é tão espetacular como a Gran Sabana ou o Kruger (Sul Africa), onde também a gente costuma chegar de avião”, disse Dourojeanni a ((o))eco.
Mau exemplo brasileiro
O relatório da Global Witness ainda lembra que, historicamente, a abertura de estradas propicia o desmatamento. Ele cita o exemplo da Amazônia brasileira, onde 75% das derrubadas ocorreram numa área de até 100 km em ambos os lados da via. “Estradas prévias em áreas próximas tiveram efeitos ambientais catastróficos. O trecho da transamazônica que liga o Brasil à costa peruana propiciou uma corrida pelo ouro sem precedentes, nas florestas ao redor de Puerto Maldonado e Madre de Diós”, lembra.
O relatório ainda traz outros números da devastação: desde o asfaltamento do trecho sul da transamazônica, entre dezembro de 2006 e agosto de 2011, a área dedicada à mineração mais que dobrou na região, causando o desflorestamento de 32 mil hectares e a degradação florestal de mais 150 mil hectares.
Isso é o pode acontecer não só na região do Alto Purus, mas também em terras brasileiras. Como a estrada fica na fronteira Peru-Brasil, considerando-se a margem histórica de 100 km de devastação a partir da obra, as áreas afetadas também adentrariam o Brasil, mais especificamente o Parque Estadual Chandless e a Terra Indígena Mamoadate, no sudeste acriano.
Relatório completo da Global Witness “Un Arduo Camino”
Versão em inglês do relatório: “Rocky Road”
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