Vanderleide Ferreira é filha de seringueiros e conhece bem a vida dura dos extrativistas que vivem em comunidades isoladas no Amazonas. “Meu pai era escravizado, meus avós foram escravizados”, lembra a liderança comunitária sobre o regime de escravidão por dívida, uma prática da época da exploração da borracha ainda presente na Amazônia: Os “Patrões” que se dizem donos de terras de antigos seringais obrigam os ribeirinhos a pagar-lhes a “renda” – uma parte da produção da família que é retida como forma de pagamento pelo uso da área.
“Fui muito revoltada com a situação dos patrões dentro da nossa área”, conta Vanderleide, que iniciou, junto com outras lideranças, a luta pela criação da Reserva Extrativista (Resex) do Rio Ituxi, no município de Lábrea, no Sul do Amazonas. Da primeira carta enviada ao governo federal em 2000, até a assinatura do decreto, foram oito anos de luta. “A reserva foi decretada, mas nossa batalha continua”, explica. Depois da criação da reserva, os moradores do Ituxi esbarraram no primeiro obstáculo para a implementação da unidade de conservação: a regularização fundiária.
A Reserva Extrativista Médio Purus, também no município de Lábrea, foi decretada em 2008 e teve um processo de criação semelhante ao da Resex Ituxi. “Caminhamos juntos, as propostas nasceram na mesma época e nós formamos grupos para atacar a mesma situação”, explica José Maria Ferreira, presidente da Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Médio Purus (ATAMP).
“Dentro da nossa área ainda tem terras onde o patrão obriga as famílias que moram ali a pagarem renda,” denuncia José Maria, que sofre ameaças de morte desde 2008, quando foi criada a RESEX. Ele explica que “o seringal Lusitânia é uma área com potencial de manejo de castanha e os extrativistas são obrigados a entregar 20% da produção para os patrões por utilizar a área”.
As práticas de manejo comunitário de recursos naturais contribuem para o estabelecimento de iniciativas que aliam desenvolvimento social e conservação ambiental. As populações tradicionais da Amazônia desenvolveram, ao longo dos séculos, modos de vida particulares com grande dependência e profundo conhecimento dos ciclos naturais e biológicos e sistemas de manejo para manutenção da biodiversidade.
Manoel Cunha, ex-presidente e atual diretor de finanças do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS), explica que existe uma demanda enorme de comunidades que precisam de liberdade para usar os recursos da floresta de forma sustentável para a garantia das suas futuras gerações: “A regularização é essencial para nós”.
Com o documento da terra, os extrativistas têm maior facilidade para acessar a políticas públicas como o Programa de Apoio à Conservação Ambiental Bolsa Verde.. Lançado em 2011, concede benefício às famílias em situação de extrema pobreza que vivem em áreas consideradas prioritárias para conservação ambiental. O programa visa reconhecer e compensar comunidades tradicionais e agricultores familiares pelos serviços ambientais que prestam à sociedade.
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Em 2011, os moradores da Resex Médio Purus também tentaram iniciar a primeira etapa para a concessão de crédito rural do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) mas não conseguiram. “Como a unidade já está criada e tem todos esses entraves?”, questiona José Maria.
Diálogo Amazonas
As lideranças comunitárias de Lábrea começaram a pensar de que forma poderiam solucionar o problema. Após a realização de um seminário sobre o tema, surgiu a ideia de se criar o Diálogo Amazonas. Organizado pelo CNS, em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), o fórum tem como objetivo reunir a sociedade civil e os órgãos públicos para discutir a regularização fundiária de 13 Unidades de Conservação (UCs) do estado do Amazonas.
A primeira reunião aconteceu em setembro de 2012, em Manaus, com a presença dos órgãos públicos de terra federais e estaduais e das lideranças extrativistas das regiões do Baixo Rio Negro, Médio Solimões, e Sul do Amazonas, com a mediação do Ministério Público Federal (MPF) e da Procuradoria Geral do Estado (PGE).
O encontro foi a oportunidade de reunir pela primeira vez os representantes de cada órgão para compartilhar informações e buscar soluções junto com lideranças das comunidades das Florestas Nacionais do Purus, Tefé, Mapiá-Inauini e Balata-Tufari, e das Reservas Extrativistas Arapixi, Médio Purus, Ituxi, Auati-Paraná, Baixo Juruá, Médio Juruá, Rio Unini, Rio Jutaí e Capanã Grande.
Juntas, elas somam mais de 5 milhões de hectares onde vivem cerca de 4 mil famílias de povos tradicionais. Algumas dessas unidades aguardam a regularização fundiária há mais de duas décadas. Nelas, existem terras do estado do Amazonas, da União, particulares, terras que ainda não foram arrecadadas, e terras devolutas.
A partir do fórum, o MPF decidiu instaurar um inquérito civil público para tratar da questão e dividiu a discussão em cinco temas: terras estaduais sob administração do Instituto de Terras no Amazonas (ITEAM), terras da União administradas pelo Programa Terral Legal e pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU), terras particulares, terras devolutas, e a construção de um modelo próprio de concessão de crédito a ser feito pelo Incra.
“O Diálogo Amazonas tem a capacidade de permitir que os órgãos, que geralmente estão distantes, não dialogam, e fazem um jogo de empurra-empurra de responsabilidades, coloquem-se frente a frente para criar soluções para o problema”, explica Julio José Araujo, Procurador da República que atua em defesa dos interesses dos povos indígenas e das comunidades tradicionais.
Regularização das terras estaduais
No segundo encontro do fórum, realizado em Manaus em abril deste ano, discutiu-se a proposta de se fazer a regularização de terras estaduais através do Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU), documento que legitima o uso da terra pelas famílias que vivem em unidades de conservação. O CCDRU, que é válido por um tempo determinado e pode ser renovado, será coletivo e entregue para as associações-mãe das Reservas Extrativistas e Florestas Nacionais.
Desde então, ICMBio e ITEAM estão construindo um Termo de Cooperação Técnica (TCT) com o intuito de aproximar os dois órgãos para discutir a regularização das áreas. “A alternativa encontrada é passar o CCDRU para a associação-mãe reconhecida pelo ICMBio das unidades”, explica Aginaldo Queiroz, assessor técnico do ITEAM.
A proposta está sendo construída com a colaboração da sociedade civil, da PGE e do MPF. “Infelizmente, o ICMBio tem imposto alguns obstáculos e às vezes recusado esse modelo de regularização, preferindo que as terras sejam repassadas para o âmbito federal”, afirma o procurador Julio Araujo.
Em entrevista exclusiva, o Presidente do ICMBio, Roberto Vizentin, rebate a afirmação do Procurador dizendo que “a cooperação é necessária e saudável para as unidades de conservação, para as populações tradicionais e para o papel do poder público, seja do governo estadual ou federal. Buscamos cada vez mais essa participação dos governos estaduais na implementação e gestão das unidades de conservação”.
Vizentin também afirma que dos 75 milhões de hectares existentes em UCs no Brasil, aproximadamente 10 milhões de hectares ainda não foram devidamente regularizados. Apesar de ser uma “uma grande prioridade” para o ICMBio “pois trata-se de uma questão de reconhecimento de direitos e de justiça”, o órgão federal não tem recursos para isso: “Temos um orçamento na ordem de 200 milhões para cuidar de 313 unidades. Desse montante, não temos mais do que 10 milhões de reais voltados para a regularização fundiária”.
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Para José Maria, “existe um jogo político muito forte que acaba emperrando todo o trabalho. Temos que lidar com todas essas frentes de discussão para resolver um problema que, na cabeça da gente que está lá no meio do mato, parece uma coisa simples, mas dentro da burocracia do governo é muito complicada”.
Na avaliação de Henyo Trindade Barretto, antropólogo e diretor do IEB, a falta de regularização fundiária das UCs tem haver com decisões políticas. “Os estados não querem ceder terras para a União sem receber nada em troca. O mesmo ocorre no sentido contrário. Já ocorreu em outros momentos da história, mas hoje raramente se tem um estado predisposto a ceder suas terras públicas”.
Para Barretto, as diferentes instituições do Estado não deveriam mais tratar as terras como se fossem patrimônio seu: “Elas têm uma destinação e um objetivo público: a conservação da biodiversidade e os direitos territoriais de comunidades tradicionais”.
No último dia 10 de outubro, representantes dos órgãos públicos de terra se reuniram mais uma vez com os representantes da CPT e do CNS, em Manaus, para definir encaminhamentos sobre a questão. Na ocasião, o assessor técnico do ITEAM, Aginaldo Queiroz, afirmou que se depender do órgão estadual serão entregues CCDRU para associações-mãe até o final deste ano. O Termo de Cooperação Técnica (TCT) agora depende da assinatura do governador.
A extrativista Vanderleide diz que não desistirá da luta mesmo consciente do longo caminho para a implementação das unidades de conservação: “Foi um passo muito grande a criação da Resex, mas será outro maior quando conseguirmos a regularização fundiária. Se isso não acontecer, ainda estaremos engatinhando”.
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