Parceria entre Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) e ((o))eco apresenta série de reportagem sobre a regularização fundiária na Amazônia. A falta de regularização fundiária na região cria incerteza e dificulta fazer cumprir a legislação ambiental. A primeira reportagem revela os conflitos de terra e seus efeitos no sul do Amazonas. |
Sob um sol de rachar, cerca de mil pessoas se aglomeraram em uma praça de Boca do Acre, no sul do Amazonas. Aguardavam ansiosas em frente ao palco onde se iniciaria o evento organizado pela Secretaria do Patrimônio da União para a entrega do Termo de Autorização de Uso Sustentável. O documento, chamado pela sua sigla de TAUS, é o desejo de todo ribeirinho, pois regulariza a ocupação das populações tradicionais que vivem às margens das ilhas e rios federais – áreas pertencentes à União – na Amazônia. A falta de regularização fundiária é uma tônica na Amazônia e facilita o desmatamento ilegal.
Dona Amazonília da Silva e seu marido, Luiz da Rocha, estavam entre a multidão no dia 20 de agosto deste ano. Os dois nasceram, casaram-se, e criaram seus 4 filhos em um seringal da região. Hoje, com mais de 60 anos, vivem próximos ao município e mantêm um terreno em uma área de várzea do Rio Acre, na Comunidade Lago Novo, conhecida também como Seringal Praia do Inferno.
Indefinição e violência
“A gente passava o dia todo lá plantando milho, roça, abacaxi, jerimum. Construímos uma casa de farinha, mas o marido daquela mulher tocou fogo e acabou com tudo”, contou o casal, vítima da falta de regularização fundiária no município que é um dos líderes em desmatamento na Amazônia. Com o asfaltamento da BR-317 a partir de 2002, a ocupação ilegal se intensificou na região, resultando em degradação ambiental e em conflitos de terra envolvendo fazendeiros, madeireiros, agricultores familiares, extrativistas e indígenas.
Em maio do ano passado, 11 casas de ribeirinhos foram queimadas no Seringal Praia do Inferno, localizado na altura do KM 4 da BR-317. Pequenos agricultores também foram expulsos da área por policiais militares “contratados” por uma fazendeira, conhecida como Viúva, e seu esposo. “A Viúva tem muito dinheiro e pagava policial para ameaçar e bater na gente. Uma vez o policial mostrou o revólver. Nunca mais voltamos para lá”, contou Seu Luiz.
Luzia dos Santos da Silva, representante do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) de Boca do Acre, explicou que “o atraso das atividades da SPU na comunidade Lago Novo deu a oportunidade para os que se diziam proprietários ocupassem as áreas da União expulsando os ribeirinhos com violência e ameaças”.
A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) iniciou os trabalhos de georreferencimento e cadastramento em novembro de 2012, e fez a entrega da primeira leva de documentos 9 meses depois. Ao total, foram realizados 1.026 cadastros e entregues 612 Termos de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) para as famílias ribeirinhas do município. O órgão prometeu voltar à Boca do Acre em dezembro deste ano para entregar os restantes dos documentos que são emitidos através do programa “Nossa Várzea: Cidadania e Sustentabilidade na Amazônia”.
Para Cosme Capistano da Silva, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Boca do Acre, ainda há muito para se fazer: “A SPU precisa regularizar os restantes das áreas, pois existem aproximadamente 8 mil famílias morando às margens dos rios Acre e Purus”. Segundo dados da CPT de Boca do Acre, apenas 3% de terras do município são regularizadas.
Silas Aquino de Souza, superintendente da SPU no Amazonas, disse que “até o final de 2014, gostaria de contemplar 80% dos ribeirinhos do município com o documento”. Também se comprometeu a retornar em fevereiro do próximo ano para realizar mais 2 mil cadastros.
Sem o TAUS, o os moradores das várzeas não tem acesso às políticas públicas como crédito rural, por exemplo. Com o seu documento em mãos, Seu Luiz comemora: “Tiramos xerox, plastificamos e vamos apresentar para o pessoal quando voltarmos. Agora a gente pode continuar a trabalhar e viver da nossa terra”.
Manoel Cunha, ex-presidente e atual diretor de finanças do CNS, explica que a maior biodiversidade do estado do Amazonas está nas margens dos rios. “É na várzea que está a andiroba, a borracha, o açaí, o pescado. As riquezas vêm da várzea. Por isso a importância de se fazer a regularização dessas áreas”.
Fórum de Desenvolvimento Sustentável
O movimento social acredita que a ação da SPU no município é apenas uma etapa vencida de “uma luta antiga, de mais de 10 anos”. Em 2001, trabalhadores rurais e extrativistas já denunciavam em uma carta as ações ilegais de madeireiros e fazendeiros da região e pediam as providências das autoridades para acabar com as ameaças de morte e agressões que vinham sofrendo.
Em agosto de 2011, a situação continuava a mesma. Cerca de 300 agricultores familiares e extrativistas decidiram acampar na unidade local do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para reivindicar a garantia de seus direitos fundiários e a proteção daqueles que estavam ameaçados por conta dos conflitos agrários.
Um mês depois do acampamento, o movimento social criou o Fórum de Desenvolvimento Sustentável de Boca do Acre, composto por diferentes organizações da sociedade civil, órgãos governamentais e associações de extrativistas e produtores rurais. “A regularização fundiária é um dos pontos cruciais para que possamos promover o desenvolvimento sustentável da região, assim como deter a violência no campo instalada na região”, diz Luzia do CNS, membro do Fórum.
O primeiro debate proposto pelo grupo foi o Seminário “Debatendo a Regularização Fundiária em Boca do Acre”, realizado em novembro de 2011, e onde estavam presentes representantes da SPU, do INCRA, do Instituto de Terras do Amazonas (ITEAM), do Programa Terra Legal e da Fundação Nacional do Índio (Funai). “Passamos três dias discutindo e fazendo uma agenda com cada instituição do governo”, explicou Luzia.
Na ocasião, Antônio José Braña Muniz, Coordenador Regional de Regularização Fundiária do Acre do Terra Legal, descreveu a situação fundiária das glebas do município e concluiu que “os órgãos governamentais têm uma dívida histórica com as famílias do lugar”. Braña explicou que por falta de recursos financeiros e humanos há 20 anos o INCRA não concede um título de propriedade em Boca do Acre.
Esforço federal
Desde 2009 o Terra Legal, iniciativa coordenada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), trabalha em terras federais, com exceção das áreas de várzea, para acelerar o processo de regularização fundiária na Amazônia Legal. A gestão do Terra Legal do Acre no município se justifica por questões logísticas, uma vez que a capital acreana está mais próxima do que Manaus.
Em agosto do ano passado, em uma audiência pública, o programa do governo iniciou o processo de cadastramento, georreferenciamento e demarcação, prometendo mil títulos de propriedade para agricultores familiares e extrativistas em um período de três anos. As primeiras áreas a receberem os trabalhos foram as comunidades Novo Axioma e Redenção, que compreendem uma gleba às margens da BR-317, e as glebas Canto Escuro e Senápolis. Concluídas as três etapas, foram produzidas as peças técnicas que deverão ser analisadas para se chegar às titulações.
Durante o evento da SPU para entrega dos TAUS, Braña prometeu entregar as peças técnicas para o Terra Legal do Amazonas no próximo dia 29 de novembro, quando acontecerá o “II Seminário Debatendo a Regularização Fundiária em Boca do Acre”, promovido pelo Fórum. Novamente, sociedade civil e órgãos públicos estarão reunidos para discutir os problemas socioambientais da região.
Regularização facilita conservação
“(…) regularização fundiária contribui para a implantação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), base de dados estratégica para o controle, monitoramento e combate ao desmatamento das florestas (…)”
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O desenvolvimento sustentável em Boca do Acre, e em toda a Amazônia Legal, depende da definição de quem tem os direitos de propriedade e uso sobre os seus territórios. Além de gerar conflitos sociais, a incerteza fundiária tem afetado o avanço e o êxito de políticas públicas e programas que promovem a conservação e a gestão ambiental da região.
Marcio Fontes Hirata, Diretor de Planejamento, Monitoramento e Avaliação da Secretaria Extraordinária de Regularização Fundiária na Amazônia Legal do Terra Legal, explica que a clareza sobre o direito de propriedade auxilia os órgãos de fiscalização e controle ambiental, como Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) e o Instituto Brasileiro dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) disponibilizando informações sobre as condições de uso de determinadas áreas.
“O Terra Legal faz a medição de todas as áreas existentes de um território e coleta os dados sobre quem está ocupando essas áreas. Se é identificado um ilícito ambiental podemos indicar quem é o responsável pela área. Um dos grandes problemas na Amazônia hoje é não se saber quem são os responsáveis pelo desmatamento em áreas públicas, por exemplo”, afirma Hirata.
O diretor do MDA explica que a regularização fundiária contribui também para a implantação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), base de dados estratégica para o controle, monitoramento e combate ao desmatamento das florestas e demais formas de vegetação nativa do Brasil, bem como para o planejamento ambiental e econômico dos imóveis rurais. “Disponibilizamos informações para as pessoas realizarem a regularização ambiental das suas propriedades e posses rurais com mais qualidade. Temos que proporcionamos dados a todos aqueles que têm a intenção de produzir com boa-fé.
Para Hirata dar acesso à conhecimento fundiário é a efetividade desse processo: “Não basta fazermos a medição, temos que dar publicidade a essa informação. Publicar na internet, informar as prefeituras e os sindicatos rurais. A regularização fundiária defini os diversos tipos de território da Amazônia. O que é unidade de conservação, o que é terra indígena, por exemplo. Quando os limites definidos e seus responsáveis estão definidos, diminui-se os conflitos”.
Reivindicação indígena
“até hoje existiu um acordo de convivência entre os Apurinã e os moradores da comunidade Nova Vida e que o problema são os invasores que entram na área para retirar madeira e caça ilegalmente”
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Os índios do povos Apurinã, Jamamadi e Jaminawa de Boca do Acre reivindicam a definição dos seus territórios tradicionais há décadas. Nos últimos anos, as lideranças indígenas, organizadas através da OPIAJBAM (Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi de Boca do Acre), exigem que sejam cumpridas as condicionantes da Licença de Instalação da obra de pavimentação da BR-317, onde está inserido o processo de regularização fundiária das terras indígenas do município.
Em março de 2012, Antônio José de Souza, indígena Apurinã, foi até a sede da Funai em Brasília para pedir a urgência na demarcação da Terra Indígena Valparaíso. Na área reivindicada pelos índios também vivem famílias ribeirinhas há mais de 60 anos. Antônio explica que “até hoje existiu um acordo de convivência entre os Apurinã e os moradores da comunidade Nova Vida e que o problema são os invasores que entram na área para retirar madeira e caça ilegalmente”. Por conta das suas denúncias, a liderança teve sua casa e todos os seus pertences incendiados no ano passado.
No dia 19 de agosto deste ano, um dia antes do evento da SPU, a Funai enviou um ofício solicitando o cancelamento dos TAUS que seriam entregues para os ribeirinhos da comunidade Nova Vida porque a área será “objeto de estudos técnicos nos próximos exercícios”. Segundo o órgão indigenista, a demarcação da Terra Indígena Valparaíso está entre as prioridades junto com outras áreas reivindicadas pelos povos indígenas de Boca do Acre: Iquirema e Goiaba (Jamamadi), Monte e Primavera (Apurinã), Lourdes e Cajueiro (Jamamadi e Apurinã), Maracaju (Jamamadi e Apurinã), e São Paulino e Kaiapucá (Jaminawa).
Entre julho e agosto deste ano foram constituídos dois grupos técnicos (GTs) para realizar estudos de identificação e delimitação de terras indígenas no município: TI Jamamadi do Lourdes/Cajueiro e TI Jaminawa da Colocação São Paulino. As portarias indicam que estes são estudos complementares, em continuidade aos realizados por GT constituídos em 2004 e que não tiveram seus trabalhos concluídos. Ou seja, os indígenas, como os extrativistas e pequenos agricultores de Boca do Acre, estão na espera de ter seus direitos territoriais reconhecidos há muito tempo.
A sociedade civil organizada de Boca do Acre vem chamando a atenção do governo para a gravidade dos problemas gerados pela falta de regularização fundiária e cobrando ações concretas do poder público para garantir a legalidade fundiária, a conservação ambiental, a preservação do modo de vida das populações tradicionais e indígenas, e a efetiva presença do Estado brasileiro nessa região da Floresta Amazônica.
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Mapa
*Maria Emília Coelho é jornalista, documentarista e coordenadora de comunicação do Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB) |
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