Reportagens

Rondônia está debaixo d’água, culpa das hidrelétricas?

Em 2007, o Ibama não queria licenciar as usinas do Madeira. Cabeças rolaram e as usinas saíram. Agora, são suspeitas de piorar as enchentes na região.

Daniele Bragança ·
18 de março de 2014 · 11 anos atrás

Vista aérea da maior cheia já registrada no rio Madeira. Foto: Secom/Governo de Rondônia
Vista aérea da maior cheia já registrada no rio Madeira. Foto: Secom/Governo de Rondônia

O governo não pode se dizer surpreso com as cheias no rio Madeira, que obrigaram até agora 1.336 famílias a deixarem suas casas apenas na capital de Rondônia, Porto Velho. O estado de emergência, decretado no último dia 13 de fevereiro na capital do estado, já foi explicado por causa das chuvas intensas na Bolívia e região norte do Brasil, mas para especialistas que acompanharam o licenciamento das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, ambas no rio Madeira, era previsível que o barramento criado pelas duas usinas prejudicaria à vazão do rio, aumentando o alagamento. Agora, os consórcios e o Ibama, responsável pelo licenciamento, respondem na Justiça pelos estragos em Rondônia.

A Justiça Federal determinou na semana passada (10), através de liminar, que a Energia Sustentável do Brasil (ESBR) e a Santo Antônio Energia (SAE), responsáveis pelas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, façam novos estudos sobre os impactos de suas barragens e arquem com o socorro aos atingidos pela cheia.

Enquanto isso, a presidente Dilma Rousseff, em viagem recente ao estado de Rondônia, negou a influência das duas usinas sobre os estragos causados pelas enchentes. “Não é possível olhar para essas duas usinas onde (sic) achar que elas são responsáveis pela quantidade de água que entra no Madeira”, disse. E foi além, ao afirmar que a responsabilidade pela cheia é de chuvas que caíram sobre a Bolívia: “Nossa avaliação é que houve, de dezembro a fevereiro, um fenômeno [climático] em cima da Bolívia. Ocorreu uma imensa concentração de chuvas [lá]. Não temos essa quantidade de água [para resultar na cheia], mas sim os rios que formam o Madeira, nos Andes, o rio Madre de Dios e o Beni”.

Após a repercussão da fala na imprensa, a assessoria de imprensa da Presidência da República soltou nota afirmando que a presidente não culpou o país vizinho, mas se “ateve a fenômenos climáticos”.

Porém, especialistas ouvidos pelo ((o))eco discordam da avaliação da presidente. Segundo Roberto Smeraldi, diretor-executivo da ONG Amigos da Terra, a cheia é um fenômeno natural que foi agravada pelos barramentos das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio à montante (direção onde se nasce o rio) e à jusante (para onde o rio está indo) das duas usinas do Madeira.

“O que se vê em Porto Velho, por exemplo, está dentro das advertências que os estudos independentes, realizados com o próprio dinheiro dos empreendedores, à pedido do Ministério Público, mas que foram desconsiderados no processo de licenciamento”, afirma Smeraldi.

Para Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), o barramento da Hidrelétrica de Jirau provocou o chamado “remanso superior”, quando a velocidade da corrente baixa ao entrar no reservatório e, por isso, aumenta a acumulação de sedimento rio acima, criando uma barreira natural.

“Essa parte que é considerada parte do rio, não do lago, sofre com uma inundação maior por causa desse represamento de sedimentos. A inundação vai aumentando rio acima, do lado boliviano”, explica Fearnside.

Os efeitos da cheia no país vizinho estão sendo devastadores. Segundo números preliminares divulgados pelo jornal La Prensa, mais de 17 mil famílias foram afetadas apenas no departamento de Beni e 250 mil cabeças de gados foram mortos pelas enchentes.

Os animais também têm sofrido as consequências das enchentes que assolam o Estado. Foto: Irene Mendes/divulgação
Os animais também têm sofrido as consequências das enchentes que assolam o Estado. Foto: Irene Mendes/divulgação

As reclamações de ambientalistas não começaram agora, mas em 2007, ainda no segundo governo Lula. Desde aquela época, já se advertia sobre o risco de construir as usinas na ausência de estudos detalhados sobre os impactos que elas poderiam desencadear.

É o que atesta o parecer técnico Nº 014/2007 do IBAMA. O documento, assinado por 8 técnicos da Diretoria de Licenciamento do órgão e emitido no dia 21 de março de 2007, afirmava que os empreendimentos não tinham “viabilidade ambiental” (grifos da reportagem):

Dado o elevado grau de incerteza envolvido no processo; a identificação de áreas afetadas não contempladas no Estudo; o não dimensionamento de vários impactos com ausência de medidas mitigadoras e de controle ambiental necessárias à garantia do bem-estar das populações e uso sustentável dos recursos naturais; e a necessária observância do Princípio da Precaução12, a equipe técnica concluiu não ser possível atestar a viabilidade ambiental dos aproveitamentos Hidrelétricos Santo Antônio e Jirau, sendo imperiosa a realização de novo Estudo de Impacto Ambiental, mais abrangente, tanto em território nacional como em territórios transfonteiriços, incluindo a realização de novas audiências públicas. Portanto, recomenda-se a não emissão da Licença Prévia.
Parecer TÉCNICO Nº 014/2007 – COHID/CGENE/DILIC/IBAMA.

Brasília, 21 de março de 2007.

Após a emissão do parecer, houve demissões na alta cúpula do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e no Ibama, que incluíram o secretário-executivo do MMA, Cláudio Langone, e o diretor de licenciamento do Ibama, Luiz Felippe Kuntz Jr.

O episódio ficou conhecido como os “bagres de Lula”. Explica-se: uma das perguntas não respondidas no Estudo de Impacto Ambiental das usinas era a quebra no ciclo de reprodução dos grandes bagres migradores, fonte de renda de milhares de pescadores da região. Após o parecer do Ibama apontar também um impacto ambiental negativo sobre os bagres, o então presidente Lula se queixou que “jogaram um bagre no colo do presidente”. Na visão do então chefe do Executivo, a preocupação com os peixes não era motivo para paralisar uma obra importante do seu governo, construída com recursos federais do Programa de Aceleração do Crescimento(PAC).

A presidente Dilma Rousseff fez sobrevoo de regiões alagadas em Rondônia. Fotos: Roberto Stuckert Filho/PR/Blog do Planalto
A presidente Dilma Rousseff fez sobrevoo de regiões alagadas em Rondônia. Fotos: Roberto Stuckert Filho/PR/Blog do Planalto

Atropelo

Após a dança das cadeiras desencadeada pelo incidente, o licenciamento das usinas saiu. Mesmo antes disso, o canteiro de obras já havia sido instalado. Licenças dadas com várias condicionantes não cumpridas, protestos dos atingidos e obra concluída em 2013.

A licença prévia foi dada durante a gestão de Marina Silva. As licenças de Instalação das duas usinas foram emitidas durante a gestão de Carlos Minc à frente do Ministério .

Após o início das operações, uma nova guerra por mais megawatts jogou as duas usinas, construídas há 110 km de distância uma da outra, numa batalha judicial para aumentar a própria capacidade de geração de energia.

“Lembro que o leilão de Jirau foi feito para outra localidade. E depois do leilão, por decisão do empreendedor, ratificada pelo poder público, se aceitou dar aquilo que chamamos de licença móvel, ou seja, foi alterado o local da licença, o que gerou uma reação em cadeia por parte do outro empreendimento, que resolveu usar uma cota mais alta e não se estudou o que isso implicava”, diz Roberto Smeraldi. O novo local escolhido pelo consórcio ficou entre 7 e 8 km abaixo do local de origem, mais próximo de Santo Antônio e reduzindo o reservatório desta hidrelétrica vizinha.

Santo Antônio passou então a brigar para conseguir aumentar o nível do seu reservatório, e não perder energia devido à proximidade de Jirau. E teve sucesso. Em julho do ano passado, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) arbitrou em favor da Usina de Santo Antônio, ao permitir a elevação da capacidade do reservatório dela.

Distrito de São Carlos, em Porto Velho, debaixo da água. Foto: Daiane Mendonça.
Distrito de São Carlos, em Porto Velho, debaixo da água. Foto: Daiane Mendonça.

Hidrelétricas se defendem

Em fevereiro, após o rio Madeira registrar cheia histórica, representantes dos dois empreendimentos começaram a trocar acusações sobre quem é responsável por parte de Rondônia estar debaixo d’água.

A briga chegou à publicações especializadas. De acordo com documento vazado pelo Jornal de Energia, o Consórcio construtor da hidrelétrica de Jirau acusa a hidrelétrica de Santo Antônio de prejudicar o empreendimento vizinho ao operar acima do limite estabelecido pelo projeto. As duas usinas brigam para ampliar a capacidade de produção de energia.

Duas semanas após o início das cheias, o Operador Nacional do Sistema (ONS) determinou a paralisação da Usina Hidrelétrica Santo Antônio, uma maneira de esvaziar o reservatório e evitar mais inundações.

A Energia Sustentável do Brasil (ESBR), concessionária de Jirau, negou a briga com Santo Antônio.

De acordo com assessoria de imprensa do consórcio Santo Antônio Energia (SAE), concessionária desta usina hidrelétrica, o empreendimento está preparado para contestar todos os pontos divulgados pela mídia que responsabilizam a empresa por “os impactos decorrentes da cheia histórica em Porto Velho e região, de acordo com institutos especializados, ocasionada pelas chuvas torrenciais e inéditas na Bolívia e no sul do Peru, na bacia de captação do rio Madeira”. A empresa se vale das próprias licenças ambientais de que dispõe — as mesmas contestadas pelos ambientalistas — para se defender: “já que todos os estudos utilizados para elaboração do EIA/RIMA foram analisados, avaliados e aprovados pelos órgãos licenciadores”.

O Ibama, órgão licenciador das duas hidrelétricas, também é réu na Ação Civil Pública iniciada pelo Ministério Público Federal.

Voluntários ajudam no resgate aos desabrigados das enchentes. Foto: Governo de Rondônia
Voluntários ajudam no resgate aos desabrigados das enchentes. Foto: Governo de Rondônia

Já a concessionária Energia Sustentável do Brasil (ESBR), que administra Jirau, afirma que a cheia no Madeira é um fenômeno natural, “não havendo qualquer relação, do ponto de vista técnico com a implantação da UHE Jirau, tendo em vista que o empreendimento opera a fio d’água, sem capacidade de armazenamento de água”. De acordo com a empresa, a “UHE Jirau foi dimensionada para possibilitar a passagem segura de uma cheia decamilenar (maior vazão prevista para acontecer a cada 10 mil anos), ou seja, para vazões superiores e condições muito mais críticas do que as encontradas atualmente. Neste sentido, não há qualquer risco quanto à capacidade do empreendimento em permitir a passagem de vazões afluentes da magnitude das observadas neste momento”.

Marco Antônio Oliveira, superintentende do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), no Amazonas, não acredita que as barragens de Santo Antônio e Jirau estejam interferindo na cheia, porque utilizam turbinas de fio d´água, com reservatórios pequenos. Segundo ele, as cheias são um fenômeno meteorológico.

“Essas barragens não podem controlar o fluxo de água, reduzindo o volume de água que passa por elas, como fazem outras barragens”. Por isso, ele acha importante discutir o uso deste tipo de turbina na Amazônia.

À espera da Justiça

Desde 2007, a ONG Amigos da Terra impetrou 3 Ação Cívis Públicas contra o licenciamento das 2 Usinas. Até o momento, nenhuma delas foi julgada.

Em 2012, os réus (Empreendimentos e Ibama) pediram a anulação das ações por ausência de objetos, já que as Usinas já haviam sido construídas, mas teve o pedido negado pela Justiça Federal (Link).

No Brasil, além de Rondônia e Acre, as enchentes afetam municípios do Amazonas, como Manicoré e Humaitá.

Imagens da cheia em Rondônia

 

*Com reportagem de Vandré Fonseca.

 

 

Saiba Mais
Parecer TÉCNICO Nº 014/2007 – COHID/CGENE/DILIC/IBAMA
Projeto complexo, mega riscos: Riscos Financeiros do Complexo Rio Madeira

Leia Também
Hidrelétricas do Madeira: a guerra dos Megawatts
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Os bagres de Lula
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O que duas usinas não fazem

 

 

 

  • Daniele Bragança

    Repórter e editora do site ((o))eco, especializada na cobertura de legislação e política ambiental.

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